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Tamanduateí Monumento (2024), de Daniel Caballero, no Viveiro Municipal Manequinho Lopes, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo [Fotos: cortesia do artista]
Postado em 12/11/2024 - 4:22
Ilhas de Cerrado
Daniel Caballero reinventa a paisagem rupestre de São Paulo em praça que concentra várias nascentes de rios, no bairro da Pompeia

“Deixa ver se entendi: o ponto de encontro será neste endereço. A partir de 9 horas vocês vão viajar para o Cerrado pra fazer trilha e plantio? Como seria isso exatamente? Não conheço ninguém, nem tenho carro. Não sei como contribuir. Poderia dar detalhes e clareza pfvr?”

O Cerrado Infinito, projeto do artista Daniel Caballero, em colaboração com muita gente que frequenta a Praça da Nascente (Homero Silva), na Pompeia, causa esse tipo de desassossego rápido em quem está chegando. Uma recriação da paisagem vegetal originária da cidade de São Paulo, o projeto ocupa a praça pública desde 2015, e já se desdobrou em outras três cápsulas de Cerrado em outros locais da cidade.

No portfólio da edição #deriva, acompanhamos o andarilho Daniel Caballero em suas trilhas e peregrinações entre as ilhas de Cerrado que ele contribui para recriar. O texto que acompanha as imagens é do próprio artista, retirado de posts no Instagram @Cerradoinfinito. O desenho de Caballero tem algo de R. Crumb e, jamais negando suas origens do HQ, ainda propôs realizar intervenções [em vermelho] nesta matéria. Confira:


Cerrado Infinito Parque da Nascente

Não é um jardim, não é um “paisagismo naturalista”, controladinho para nosso deleite com efeitos visuais. O Cerrado Infinito cresce como quer, empoderado de si, como antipaisagismo e território cultural.

Também não é uma restauração, pois, como curativo de um bioma, não pode trazer de volta uma ecologia que não existe mais, sem sua fauna para concretizar esse intento.

O Cerrado Infinito é outra coisa, trata-se de uma invocação, uma miragem feita pela vontade de ver, entender e sentir qual o contexto biológico anterior deste lugar que habitamos.

Da Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga até esta megalópole que capota sobre todos, pensar o “contexto biológico” por meio desta pequena paisagem construída não é pouca coisa.
Ela possibilita a cura da nossa amnésia da história, de um lugar que foi a porta de entrada da colonização para o interior, de onde se deu o grito da independência que instaurou o Brasil, da origem dos processos agrícolas, pecuaristas, industriais e urbanos, manifestações de um modelo de desenvolvimento que terminou por apagá-lo.

Com o Cerrado Infinito pela primeira vez os paulistanos passaram a plantar em vez de expulsar estas plantas, abrindo-se a um sentido de pertencimento de estar e viver neste lugar.

Ademais, o Cerrado Infinito é um templo natural, um laboratório e ateliê públicos sem fim, para quem tiver inteligência de utilizar e de pensar práticas de preservação da natureza do Brasil.

O Cerrado Infinito é um roubo que reivindica um pequeno território pelo direito de essas plantas originárias existirem.


Cerrado Infinito do Jardim das Camélias

O Cerrado Infinito da Escola Estadual Jardim das Camélias é um projeto desenvolvido ao longo de dois anos, com os alunos do ensino médio, a convite da artista e arte-educadora Silvia MH. A escola fica na Zona Leste, uma área vulnerável, desprovida de qualquer equipamento cultural; o mais próximo de lazer e cultura é o Shopping Itaquera.

A direção da escola aceitou rapidamente a iniciativa de fazer um Cerrado Infinito numa área de gramado no entorno do terreno do Jardim das Camélias, sem maiores questionamentos sobre como faria isso.

Eu levava as plantas às quartas-feiras de manhã e ensinava os alunos a plantá-las, explicava a história do Cerrado paulistano, sua relação determinante no desenvolvimento da cidade de São Paulo, e de como essas plantas foram sendo expulsas do centro até a periferia, num processo de substituição que desvalorizava o nativo em relação ao exótico, até sua completa aniquilação.

Ao longo do tempo fui conhecendo os alunos e, de alguma forma, as plantas e as atividades os engajaram. Alguns alunos eram realmente brilhantes e puxavam os outros. O Cerrado Infinito, aqui, funcionava como uma escola de artista, em que, a partir das plantas, conversávamos sobre cultura, história, segregação, colonialismo, arte, biologia, e o que mais surgisse do interesse deles. Nunca me coloquei como professor, eram conversas livres, de mão dupla, e quando o jardim foi concluído foi uma realização para todos!

Na volta das férias escolares, cadê o jardim? Ou, pelo menos, boa parte dele? Araçás, carquejas, macelas, orelhas-de-onça, chamaecristas todas cortadas até o chão. Quem teria feito isso?

A direção da escola mandou um jardineiro roçar o gramado, se é que podemos chamar assim, na verdade quase tudo era capim braquiária. O jardineiro, especialista em roçar terrenos baldios, quando viu o jardim certamente pensou – Uau, como deixaram essas plantas de terreno baldio crescerem desse jeito? E cortou tudo. Uma curiosidade era a língua-de- tucano que sobreviveu no meio da devastação, ela era a planta de estimação de todos, muito comentada e desenhada.

Esta foi a versão oficial da escola. Outras versões diziam do incômodo de o mato estar alto e poder servir de esconderijo para alunos fazerem coisas ilícitas, como namorar ou se drogar etc. Um pouco estranho num jardim de 5×5 metros, mas essa cultura do matagal como um lugar de sujeira e perigos é bem presente não apenas na periferia, no Cerrado Infinito da Praça da Nascente foi uma questão muito debatida inicialmente, que demorou para se resolver.

O lixo, os carros roubados, os cadáveres, o sexo, as drogas e o que mais de ruim que vemos ou imaginamos não nascem das plantas, evidentemente. Cada região tem seu cotidiano, incompreensível para pessoas de outros lugares da cidade, mas mudar essa relação com a vegetação era um dos exercícios propostos. Aprendi muito com os alunos, acredito que eles comigo e todos com as plantas. Fim.


Cerrado Infinito da Borda do Caaguaçu

Passei o ano de 2022 inteiro plantando, e um dos resultados disso é o Cerrado Infinito da Borda do Caaguaçu, que fica no Ed. Armando Petrella, na Alameda Jaú. Como o nome diz, ele fica onde terminava o bosque de Mata Atlântica do Caaguaçu, hoje extinto, do qual sobraram apenas algumas árvores seculares no Parque Trianon, na Avenida Paulista. Por sua vez, nesse local começava o Cerrado, que descia a Consolação até o Largo da Batata.

A expressão borda é utilizada para designar a fronteira entre a Mata Atlântica e o Cerrado, por exemplo Santo André da Borda do Campo, ou Santo Amaro da Borda do Campo. No caso deste Cerrado Infinito, ele funciona como um projeto de paisagismo naturalista, controladinho e com todos os deleites e efeitos visuais possíveis, para atender às necessidades da frente do edifício, mas tangenciando, com sua utilidade, o mote de descolonizar a paisagem vegetal, ampliando sua provocação para novas leituras ou, no mínimo, para provar rapidamente que essas plantas, culturalmente consideradas ervas daninhas, podem ter um resultado estético estonteante e com muito mais sentido do que os jardins pasteurizados do entorno.

Também propõe um percurso, embora não para interagir, mas simbólico.
Não existe nada parecido na cidade, este é o primeiro jardim de plantas ruderais, com, aproximadamente, 45 espécies sobreviventes dos antigos Cerrados da cidade, feito para construir um tipo de diorama vivo da visualidade pré-colonial.


Cerrado Infinito Antiga Fábrica Matarazzo

A Jiboia Barricada se espalha!

No meio dos cânions de concreto ela estabelece pequenas ilhas, que recolonizam o território, como uma guerrilha vegetal silenciosa, para possibilitar um retorno da vegetação pré-colonial da cidade de São Paulo, trazendo de volta os campos de Cerrado de Piratininga.

A convite do Térreo Ateliê, um arquipélago rupestre flutua em um trecho da trilha infinita, esperando para se espalhar e renaturalizar a antiga fábrica dos Matarazzo. A industrialização foi o canto do cisne da paisagem nativa. A partir desse lugar, a cidade cresceu, se urbanizou, e o Cerrado foi desintegrado e apagado da mente das pessoas.

Uma cidade enorme que destitui o chão e as raízes dos seus habitantes… Com o Cerrado Infinito, busquemos a reparação e a coexistência…

O fim é apenas uma vírgula no infinito, estamos preparando um recomeço, um novo processo ruderal e, talvez, se um número suficiente de pessoas ajudar… surja um novo Cerrado Infinito… da Casa das Caldeiras.

Vamos plantar tudo de novo?