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Preta Velha, da série Riscos (2021); e Preto Velho, da série Riscos (2021), de Alexandre Alexandrino
Postado em 08/11/2022 - 11:11
Imagina que a cidade é uma tela
Paulo Galo, Musa Michelle Matiuzzi, Yhuri Cruz e Alexandre Alexandrino mobilizam as simbologias ancestrais do fogo para constranger e enfrentar o estado brancocêntrico vigente

Dentre de casa, um homem risca um fósforo e acende uma vela. Refazendo o gesto tão comum, banal, próprio dos seus, herdado daqueles que ensinaram que no Estado de Maafa é importante pedir proteção.

O Estado de Maafa é, hoje, o Estado do encarceramento em massa, da criminalização da pobreza, da concentração de renda, do agronegócio, do genocídio do negro e do indígena, da censura e da violência contra lgbtqiap+, do neoliberalismo e das dinâmicas e sofisticadas formas de exploração do outro. O outro, essa peça maleável, plástica: um produto da colonialidade.

A colonialidade pode ser entendida como a colonização do imaginário e do saber por meio da manutenção do poder de uma elite supremacista branca em territórios marcados pela colonização imperialista europeia. Ao deterem o poder de organizar e hierarquizar o mundo ao seu redor, esses grupos sociais lançam imperativos de controle ao estabelecer lógicas de significação a partir da organização binária do mundo. Esse binarismo, pelo qual opera a colonialidade, define os lugares à mesa de um grande banquete. Mas, mais que definir quem é convidado a sentar, se deliciar e saciar suas necessidades e desejos, a colonialidade define aqueles que ficam de fora.

É nessa definição que encontramos a outridade. Ao projetar no outro aquilo que o eu, o sujeito branco, o centro, não quer associar a si, a branquitude, essa imponderável estrutura de poder, produz, e reproduz, um imaginário que encerra as existências não brancas e periféricas na precariedade. Patricia Hill Collins explica que essa dinâmica binária imposta pela colonialidade implica a compreensão da diferença humana fundada na definição desta em termos opostos. Ou seja, as partes envolvidas nessa ordenação, o eu e o outro, relacionam-se somente em termos de oposição. Esse Outro-objeto, além de depósito da negação de si para o eu-sujeito, é construído como manipulável e controlável, portanto, plástico e classificável. Sua identidade, história e existência são elaboradas a partir de sua relação com o eu-sujeito, em uma lógica que serve à colonialidade e ao imaginário que trata o branco como universal, civilizado, detentor do mundo, enquanto o negro, o indígena e aquelas que não correspondem às expectativas binárias do mundo colonial são constituídos como seu oposto em uma relação de superioridade e inferioridade.

O outro, que na lógica colonial é o depósito das frustrações, violências e do recalque de uma supremacia branca, é, na realidade, a chave que fará esse mundo girar.

EITA MUNDO BOM DE ACABAR!
Este trecho de Jesus Chorou, música do álbum Nada Como Um Dia Após o Outro (2002), dos Racionais MC’s, reflete a ruína da colonialidade como modo de pensar e organizar os lugares à mesa no banquete servido pela agência coletiva. No reconhecimento da existência do outro como fundamental para a sua própria, são históricos os movimentos e as organizações sociais no Brasil que hoje olhamos e podemos reconhecer, ou denominar, como decoloniais. Podemos pensar em como essa ação de desmanche, derrubada, negação, queima, busca, escavação, também se dedica à reorganização do simbólico.

O mundo que é bom de acabar leva consigo as instituições, os modelos e lógicas classificatórias e os limites em que guardávamos as agências coletivas. O papel de artistas, nesse sentido, seria o de enfrentamento do ressentido silêncio da cultura dominante. O sistema de arte, a história da arte e todas as suas instituições (museus, universidades, galerias) são ferramentas ativas da colonialidade. Basta perceber a maneira como alguns artistas são considerados os expoentes e preferidos do mercado, o desejo de ter a materialidade que comprove a condição de aliado das novas disputas de narrativas, ou as tentativas de controle desses corpos e produções. A cultura dominante, a supremacia branca das artes e mesmo a história da arte branco-brasileira, há muito tenta representar o irrepresentável e silenciar o que brada.

Há uma dimensão coletiva nas artes negro-brasileiras que se implica na reorganização do simbólico. A artista Musa Michelle Mattiuzzi escreve, como quem convoca à desobediência em face das visualidades brancocêntricas: “Desobediente, proponho encarnar essas narrativas fracassadas com o intuito de constranger e de silenciar o opressor. E encarnar, para mim, significa sobreviver às catástrofes e silenciar às noções de civilidade”. É enunciando aquilo que não se pode dizer e na volta crítica às imagens que delimitam uma existência subalterna que se constrói a possibilidade de reinscrever a cartografia da intolerância pelo viés da estética. Trata-se do constrangimento do opressor a que se refere Mattiuzzi.

O constrangimento do opressor está naquilo que escapa de seu pretenso controle e universalismo. Desde a felicidade cotidiana, a vela acesa com a chama do reconhecimento dos ancestrais que construíram este país, no pretoguês que falamos, na vibração do corpo que dança, respira e não sucumbe. Mas está também na negação de outros limites na colonialidade: o limite do que pode ou é considerado arte, por exemplo. Yhuri Cruz, artista visual, escritor e dramaturgo carioca, escreve, na publicação ensaio-cena PRETOFAGIA, que “você precisa desobedecer às deixas do Yurugu”. As deixas e os limites do Yurugu são ultrapassados quando baterias de escolas de samba comunicam com seus surdos e tamborins pensamentos decoloniais de muito refinamento e complexidade: desde 2019, cantamos todos que chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e Malês.

No Carnaval carioca de 2022, o Carnaval de Exu, agremiações trouxeram em suas alegorias o desejo, a proposição e a imagem da derrubada de monumentos da colonialidade. No desfile da Acadêmicos do Salgueiro, de enredo Resistência, o último carro trazia uma representação do que podemos identificar como uma das históricas praças do Rio de Janeiro. Havia nele um obelisco adornado com a palavra racismo que foi repetidamente derrubado ao longo do cortejo, enquanto a multidão completava o desfile vibrando a cada derrubada.

Ruas e praças são adornadas com monumentos ao racismo, a genocidas, coronéis, ditadores e, em uma maldade sem-fim, à bondade cruel da princesa libertadora. Só que a liberdade é um dragão no mar de Aracati.

Xangô, da série Riscos (2021), de Alexandre Alexandrino

IMAGINA QUE A CIDADE É UMA TELA
A proposição é de Paulo Galo, fundador do movimento Entregadores Antifascistas, no Fogo Cruzado Como Descolonizar os Monumentos?, do qual participaram também Aline Motta e Giselle Beiguelman, no Teatro Ruth de Souza, do Museu Afro Brasil, em abril. O homem que risca o fósforo e acende uma vela também vê que a proteção está na chama da vela acesa que partilha com o outro. A fagulha que ganha corpo no encontro. No princípio de solidariedade, tão distante da caridade cristã, é possível visualizar uma proteção que só acontece coletivamente. A proteção através da ação. Se, dentro de casa, fósforos e pontos são riscados e cantados, é na rua que as chamas acesas se encontram, ganham corpo, se mobilizam e tomam o espaço, o ar, a vida e gargalham. Gargalham, dançam, vibram, amam e botam fogo.

É comum, na recente arte contemporânea brasileira, a elaboração de imagens e proposições estéticas que projetam o desmonte, a ruína e as cinzas da colonialidade e de suas ferramentas e fabulam outras concepções do que pode ser o país. Se, em alguns momentos, essas proposições podem ser mais diretas, em outros, a ruína do mundo brancocêntrico está na elaboração de símbolos e no reconhecimento de outros códigos de vida e cosmogonias.

Alexandre Alexandrino, artista visual, arte educador, historiador e antropólogo, tem focado sua produção artística em processos de construção de visualidades afro-ameríndias. Na série Riscos (2021) o artista pinta representações de um objeto significativo para as culturas afro-brasileiras como centralidade na busca pelos orixás. A vela, tão presente em rituais e práticas em barracões, em celebrações que marcam ciclos de vida, tem a existência marcada pelo desaparecimento que sinaliza um ciclo em si: a chama consome seu portador. Assim, ao invocar o fogo, Alexandrino nos leva a repensar uma cultura material, modos de representar, e abre um caminho: acender a chama ancestral para acender as ideias e visões que tornarão cinzas as ameaças, projetos e visualidades da colonialidade.

Ao voltar criticamente a essa imagem e ao uso do fogo como ferramenta e proposição estética, o artista também entra em contato com o significado histórico do fogo no território que convencionamos chamar de Brasil. Se o fogo é símbolo de apagamento, morte e destruição – de nossos museus, povos e florestas –, ele também é a chama acesa que rememora aquilo que, de fato, nunca esquecemos.

No livro Na Senzala, Uma Flor (2012), o pesquisador Robert Slenes afirma que, no Brasil, o fogo doméstico de escravizados, além de exercer funções práticas, também era um meio de formar uma identidade compartilhada e uma estratégia de sobrevivência, conectando os indivíduos aos lares ancestrais, ordenando a vida em comunidade no cativeiro e possibilitando ações de revolta e liberdade. O fogo permanece nas poéticas contemporâneas como essa conexão ancestral, negação da condição de outridade e, principalmente, como uma proposição ética de Brasil.

LEVANTAR A CABEÇA CUSTA MUITO
Mas quem são os indivíduos ou coletivos a quem são dadas as possibilidades e/ou autorização para propor e realizar ações que visam o redesenhar das cidades, rearranjar os lugares à mesa e redistribuir o banquete? No jogo da colonialidade, alguns corpos e mentes não pertenceriam ao lugar do fazer artístico e intelectual. No momento em que quebram os acordos que regem políticas de respeitabilidade e driblam as imagens de controle, sujeitos e grupos tensionam e desestabilizam o que entendemos e classificamos como arte. Mesmo a arte contemporânea. “O que nóis fez no Borba Gato foi arte”, disse Paulo Galo no debate. No dia 24 de julho de 2021, o movimento Revolução Periférica promoveu o ato de atear fogo na vergonhosa estátua do bandeirante Borba Gato, na Zona Sul de São Paulo. A ação, considerada por parte do poder público, que criminaliza movimentos sociais, como crime, possui uma carga política inquestionável, mas, com muita força, é também uma proposição estética e, portanto, artística. Há o gesto de encarnar uma narrativa fracassada, o projeto hegemônico de Brasil, constranger o olhar brancocêntrico, silenciar as noções de civilidade e radicalizar a visão da cidade como uma tela. A cidade é um espaço de fabulação, não somente de conformação, e Paulo Galo, os entregadores anti- fascistas e o Revolução Periférica têm em sua luta diária e em atos nitidamente mais simbólicos, como a queima da estátua do Borba Gato, uma prática que o tempo todo se distancia do lugar da outridade. A linguagem artística que Galo atribui à queima de 2021 é fruto de um projeto de reformulação do espaço urbano, do desenvolvimento de uma ética que não se distancia de uma estética e de uma reorientação do ódio.

O ódio que a colonialidade despeja sobre sujeitos pobres, pretos, indígenas, periféricos e lgbtqiap+ pode ser elaborado e devolvido. Nessa elaboração, o fogo queima como o ódio, vira cinzas, retira camadas, abre espaço para outras possibilidades de vida.

Como disse Paulo Galo, tem ódio pra carai, que não acaba mais.

Dentro de casa, um homem risca um fósforo e acende uma vela. Na rua, um homem organizou o ódio e enxergou a cidade como uma tela.