O trabalho de Daniel de Paula (1987, Boston, EUA; radicado em São Paulo) busca informar sobre os vínculos intransponíveis entre indivíduos e instituições, sobretudo de infraestrutura, nas interseções entre política e geografia humana. Expõe complexas tramas de negociações e de pactos indissolúveis, sobretudo governamentais e legais, vinculados a imbricadas relações com a iniciativa privada, concessões, consórcios e a atuação de empresas estatais. Em suas obras, o artista atenta para o modo como somos subjugados por decisões tomadas por representantes políticos e poderosos agentes econômicos, sobre o que temos, como indivíduos, mínimo ou nenhum poder de contestação efetiva.
De Paula trata como material a negociação com as instituições e indivíduos com que consegue obter os materiais e as condições de elaborar e exibir seus trabalhos, negociação sem a qual o trabalho não acontece. A lista de materiais das fichas técnicas de suas obras recentes sempre começa com “negociação”, enfatizando a possibilidade de tensionar certas convenções do próprio circuito, que artistas geralmente não questionam, ou entendem como propriedades que não devem ser alteradas – como plataforma, data, modos de divulgação e registro.
Essa operação enfática quanto às negociações reverencia não apenas um aspecto conceitual de sua prática, valorizando as ações imateriais que precedem, estruturam e mantêm seus trabalhos, mas atesta a inescapabilidade de amarras que soterram a existência autônoma do indivíduo – a pôr em xeque, inclusive, a ideia romântica do artista recluso, alheio à realidade, politicamente neutro. Tudo é negociado.
CRUZEIRO DO SUL
Filho de brasileiros que imigraram ilegalmente para os Estados Unidos em busca de remunerações profissionais mais favoráveis, o artista nasceu em Boston, no estado de Massachusetts. Seus pais trabalhavam em empregos sem qualificação formal, como construção civil e limpeza doméstica, e optaram por voltar para o Brasil quando De Paula tinha 3 anos. Radicado em São Paulo, onde se graduou em Educação Artística pela Faap, sempre se pôs atento a circunstâncias impostas por mecanismos capitalistas globais que atropelam variantes culturais e repetem acontecimentos em diversos lugares do mundo. Desse modo, De Paula desenvolve trabalhos específicos às situações dos lugares onde os apresenta – o que chama de situation-specific, em detrimento ao site-specific –, embora enderece problemáticas macrocósmicas mantenedoras de um colonialismo atroz que incidem sobre outras partes do globo.
Guardadas as devidas especificidades, os desastres causados pela exploração de cobre no norte da Suécia refazem as tragédias ambientais resultantes da exploração de sal-gema pela Braskem em Maceió, no Nordeste brasileiro: uma postura voraz de exploração de recursos naturais finitos, em que a intenção de acumulação acelerada de capital negligencia e causa a aniquilação de vidas e entes ecológicos. Esses mecanismos de relação micro-macro acontecem reiteradamente na produção do artista, denunciando a ciclicidade que amarra indivíduo, território e natureza a imposições institucionais, infraestruturais e econômicas, e atravessando lugares com diferentes realidades sociais e geográficas.
“Sempre tive, na parede do meu ateliê, que agora muda muito de lugar, um fac-símile de Cruzeiro do Sul, do Cildo [Meireles], presente no catálogo da exposição Information, no MoMA, de 1970”. Meireles inicia o texto com: “Eu estou aqui, nessa exposição, para defender nem uma carreira nem qualquer nacionalidade”. De forma ambígua e autocrítica, tanto Meireles quanto De Paula endereçam os processos complexos na produção de um imaginário identitário brasileiro. Negam a afirmação desse estereótipo fetichizado tropical, ao mesmo tempo que reafirmam, de modo não anulador, que seus pensamentos partem do Brasil, no Sul Global, opondo-se a vícios eurocêntricos e estadunidenses. As interseções entre Cruzeiro do Sul, de Meireles, e as produções recentes de De Paula, referem-se a possibilidades político-geográficas que sobrepujam as cartografias oficiais, remetendo-se a um lugar cujas fronteiras são dúbias, arrevesadas, regidas pela experiência simbólica em vez da propriedade privada e das fronteiras coloniais.
INVERSÃO DA VIGILÂNCIA E IMPACTO NA TOMADA DE DECISÕES
Daniel de Paula participa da 24ª Bienal de Lulea, na Suécia, em exibição até 25/6, com o trabalho form (2017 – em andamento), cuja ficha técnica informa sobre sua composição: “Negociação; núcleos de rocha resultantes de expedições geotécnicas retiradas em Norrbotten para o acesso a depósitos minerais, andaimes, deslocamento de mobiliários de escritórios institucionais para o espaço expositivo, força de trabalho da Lulea Konsthall, seções do cabo submarino de telecomunicação SEA-ME-WE3”.
O artista propõe uma série de deslocamentos: a obra, específica para aquele contexto, provê um lugar de trabalho temporário para a equipe administrativa do museu. De Paula coloca em exibição o que geralmente se encontra protegido nos bastidores: estão expostas, ali, as pessoas tomadoras de decisão. Reuniões que não são performances, estratégias confidenciais de negociação agora são desveladas abertamente ao público. O espaço expositivo, portanto, deixa de portar uma passividade distante de onde são materializadas decisões tomadas fora daquele ambiente, mas o torna o próprio fórum, ativo, aberto e vulnerável. Avança, inclusive, sobre uma inversão dos sistemas de vigilância: enquanto a população em massa é rastreada por uma minoria dominante, pessoas com poder institucional são postas em exibição de modo a ser possível observar as abas privadas abertas em seus computadores, as mensagens trocadas quando usam seus celulares. As redomas de proteção, sejam elas físicas ou simbólicas, tornam-se escudos burocráticos mantenedores de poder. As decisões, certamente, não chegariam nos mesmos desfechos se fossem sempre abertas – imaginemos, em um cenário próximo e urgente, as discussões de planejamento e ação de ataques militares genocidas em Gaza, por exemplo.
Embora as testemunhas geológicas sejam robustas e pesadas, de matéria incontestável, De Paula as apresenta ambiguamente, nesse contexto, como diagramas, infográficos puros, em uma provocação sobre a possibilidade de construir algo formal com informação.
DINHEIRO NÃO FAZ O TEMPO VOLTAR
A extração do cobre torna-se prioritária por interligar os sistemas de infraestrutura tecnológica: o metal é um dos principais condutores para a produção de cabos que levam e trazem informação. Está no SEA-ME-WE3, cabo de telecomunicação mais longo do mundo, cujos pedaços também são utilizados pelo artista na instalação: com 39 mil quilômetros, conecta o norte da Alemanha ao Japão e à Austrália. As atividades mineradoras, além de causarem impactos ecológicos avassaladores, infligem condições laborais alarmantes.
Em abstract time (2019 – em andamento), De Paula endereça a violência imposta a corpos proletários de forma pungente: exibe um relógio de pulso de um trabalhador morto em acidente laboral, com ponteiros girando em sentido anti-horário, a marcar um tempo irreversível, em torno de um maço de cédulas equivalentes ao salário mínimo de um minerador na Suécia. O bolo de cédulas que forma o corpo que substitui o pulso humano pode remeter a uma perspectiva exploradora em que o corpo humano – e seu labor – é visto como dinheiro, como possibilidade rentável sem sujeito.
O volume do montante em coroas suecas, seja pela quantia, seja pela variedade de notas em diversos valores, também atenta para certas discrepâncias acerca dos direitos trabalhistas em países que se adaptam ao estado de bem-estar social, como na Suécia: é uma valia robusta se comparada a outros países com remunerações ínfimas, o que faria o maço menor; ou nações com inflações gravíssimas e moedas desvalorizadas, o que faria o bolo muito maior. Curioso pensar também que um maço de dinheiro que teria o valor impresso nas próprias cédulas custa muito mais quando deslocado e exibido como um objeto de arte comercializável, revestido por uma ideia que eleva seu valor de mercado. abstract time cria zonas críticas sobre os argumentos postos a instigar como o trabalho mudaria formalmente em diferentes contextos socioeconômicos, em um vetor inverso a obras de arte conceitual, em que, a priori, a forma prevalece e não muda, mas os argumentos lançados se acumulam.
ARAME FARPADO
Tanto na Bienal de Lulea quanto na exposição canibal spirits / do violence to words, na galeria Lumen Travo, em Amsterdã, recentemente encerrada, e na exposição infraestrutura, instituição, indivíduo, na Galeria Jaqueline Martins, em São Paulo, no segundo semestre de 2023, Daniel de Paula apresenta a série de trabalhos anti-epiphany. São pinturas sobre fundo branco com diagramas com palavras em preto, cujas sombras em cinza projetam palavras diferentes das escritas no primeiro plano – com binômios como “aparência/essência”, “fetiche/feitiço”. Há, entretanto, aspectos outros das obras que as estruturam materialmente: junto às tintas, são diluídos aromas que simulam cheiros de cadáveres para cães farejadores no treinamento de detecção de corpos em escombros de desastres infraestruturais.
Alguns dias antes da abertura da exposição na galeria em São Paulo, o artista levou treinadores com cães farejadores ao espaço expositivo. O odor, imperceptível à maioria dos olfatos humanos, por estarem muito diluídos, causaram intenso alerta nos cães, que avançavam sobre as pinturas, com furiosos latidos e dentes à mostra. As imagens desse acontecimento – que De Paula não propõe como uma performance ou uma ativação – foram utilizadas apenas na divulgação da exposição, que circularam amplamente na internet. Novamente, o artista tensiona os aparatos orbitantes à produção artística, não somente nas fichas técnicas: atesta que os argumentos conceituais podem infiltrar estruturas que cercam o sistema da arte, como as imagens de comunicação e mídia, entendendo todos os fluxos como veículos de informação, a esticar limites convencionados e a tentar superar as insuficiências linguísticas e comunicacionais.
Nas pinturas da série anti-epiphany, assim como no odor para os cães, está ali de forma gritante o que nós, humanos, não percebemos, e outros seres não humanos, como os cachorros que De Paula homenageia, não compreendem: os princípios e os limites da propriedade privada.