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Postado em 24/10/2024 - 5:26
Inhotim em Três Tempos
Novas exposições do Instituto Inhotim trazem Rivane Neuenschwander, Pipilotti Rist e Rebeca Carapiá

O lago em frente à Galeria Mata, ao fim da rota amarela de Inhotim, se torna espelho. A água reflete 20 formas desenhadas em metal, com aproximadamente 5 metros cada, suspensas e espalhadas por sua superfície. Apenas depois da chuva (2018), obra de Rebeca Carapiá comissionada para ocupar o lago, é carregada de processo, como destacam os curadores Beatriz Lemos e Deri Andrade. Após desenhar as formas em uma imersão na Serra da Capivara, no Piauí, a artista os traduz ao ferro em uma colaboração com a equipe da serralheria de Inhotim e com o Seu Gabriel, funcionário hoje aposentado que liderou a serralheria por muitos anos.

O resultado é um desenho duplo em transformação. O metal, que se coloriza com a oxidação, e seu reflexo, que muda conforme a própria água. Ao visitar a obra na sexta-feira do dia 18/10, dia de sol, a água turva produzia um reflexo superficial, tingido pelo verde eutrofizado do lago. No dia seguinte, as gotas de chuva dançavam a superfície e o lago estava opaco e borrado. Apenas depois da chuva, de fato, é que se formou o espelho d’água. Como comentário sobre a relação entre água e registro, os tempos da obra são como a ação das águas sobre as memórias e marcas humanas: apaga e lembra, borra e define.

A instalação de Carapiá faz parte das aberturas de Outubro do Instituto Inhotim, junto com a mostra Tangolomango, de Rivane Neuenschwander, e a instalação imersiva de Homo sapiens sapiens (2005), de Pipilotti Rist. Obras da trajetória de Neuenschwander foram curadas e organizadas na Galeria Mata, em frente à obra de Carapiá, e o vídeo de Rist, gravado há vinte anos nas dependências do Inhotim, é exibido pela primeira vez no local em montagem na Galeria Fonte. Em fala para a imprensa, a diretora artística Júlia Rebouças reforça nas escolhas expositivas aquilo que também é mote institucional de Inhotim: propiciar uma relação entre arte e a natureza, mediada pela paisagem singular. 

Tangolomango é um recorte preciso da trajetória artística de Neuenschwander. Passando por temáticas e meios diversos, o fio expositivo não se explica pela temática da direção artística geral: em apresentação da mostra, a curadoria (por Júlia Rebouças, Beatriz Lemos e Douglas de Freitas) preferiu ressaltar os jogos entre sutileza e violência, memória particular e política, a linguagem da infância e a da arte – jogos que permitem com que a artista aplique uma linguagem lúdica e por vezes nostálgica para evidenciar seu contraste com a barbárie social e política. 

Cabra-Cega (2016), de Rivane Neuenschwander

Essas duas faces do medo – o lúdico e a barbárie – estão centralizadas pela expografia através de Alegoria do Medo (2018), instalação interativa e permeável que remete a um playground em cores, formas e construção espacial. Composta por paredes com formas pintadas em diálogo com formas projetadas, a obra convida ao visitante que rearranje as transparências nos projetores espalhados. Em vez de personagens infantis, temos palavras e imagens representando medos comuns, em algo mundanos, que invocam reflexão sobre o medo como afeto mobilizador dos indivíduos. Espelhos convidam os visitantes a se colocar nas imagens, se fotografar, socializar algo íntimo que deixa de ser particular.

Alegoria do Medo (2018), de Rivane Neuenschwander

A ligação que o medo tece entre o lúdico e o violento é sobretudo histórica. Nascida em 1967, a infância da artista é concomitante ao período da Ditadura Militar brasileira. Oscilamos aqui entre o medo fantasioso da criança e o terror repressivo que tenciona toda a sociedade. Com a ascensão do fascismo e, portanto, da onipresença do medo, a realização da obra em 2018 cria uma ponte entre o nosso passado mal resolvido e nosso presente caótico. É assim também em História e Infância (WAR) (2017), em que bandeiras do jogo de tabuleiro se tornam territórios a serem conquistados pela exploração marítima, e em Cabra-Cega (2016), onde desenhos infantis de monstros e de guerras se misturam freneticamente em uma sala escura com projeção em quatro paredes. 

“O Colecionador de Pedras”, detalhe de O Alienista (2019), de Rivane Neuenschwander

A relação entre arte e natureza existe, é claro: o filme Sou uma Arara (2023) desenvolve essa relação no cenário de sua falta, em plena metrópole paulistana. A Arara do título e outros animais, representados por atores fantasiados, carregam placas de manifestações que propõem conceitos e utopias, oferecem pequenos objetos revolucionários aos passantes do centro da cidade e carregam com solenidade e silêncio, mas também com ironia e humor, uma invocação dos espíritos dessas espécies que remete ao xamanismo. Em obras como O Alienista (2019) e J.B. (Piracema: uma transa pós-amazônica) (2023), Neuenschwander trata da temática da exploração da natureza sempre em chave histórica e política, criando uma paródia cartunesca da devastação e seus agentes. A natureza em sua obra não está para contemplação, pois está em vias de ser dizimada.

J.B. (Piracema: uma transa pós-amazônica) (2023), de Rivane Neuenschwander
Alegoria do Medo (2018), de Rivane Neuenschwander

Poderíamos dizer o contrário de Homo sapiens sapiens, de Pipilotti Rist, trazido para ser exibido no local de filmagem vinte anos depois. O vídeo transforma as interações dos corpos nus de Rist e Ewelina Guzik com o cenário paradisíaco da mata de Inhotim em uma viagem lisérgica. 

Ainda do lado de fora, a trilha sonora de Rist e Anders Guggisberg convida o visitante a entrar na Galeria Fonte. Com vidros coloridos que distorcem a paisagem externa, a primeira sala se torna uma antessala onde o visitante deve deixar os sapatos para entrar na instalação, no coração da galeria. Para assistir ao vídeo, exibido em uma enorme tela suspensa no teto, é necessário deitar sobre as almofadas organizadas no chão. Esse processo quase ritualístico de imersão leva o visitante à fruição de uma natureza distorcida em cores, montagens, enquadramentos. O filme de Pipilotti Rist de fato nos chama à contemplação, mas não sem mediações, já que a natureza aqui é fantasia psicodélica. Não mais a natureza de Inhotim, mas outra – seja ela de vinte anos atrás, ou de um longínquo mito de criação refundado (um “Éden sem Adão”, nas palavras do curador Douglas de Freitas), ou da imaginação de uma utopia. Ao retornar da instalação e calçar os sapatos na antessala, os vidros coloridos nos convidam a questionar a natureza do lado de fora: o quanto ela tem de mediado, de construído, de controlado e, principalmente, de retórico.

Instalação de Homo sapiens sapiens (2005), de Pipilotti Rist