Enquanto o sistema da arte global se expande em feiras, leilões de cifras milionárias e mega exposições repletas de objetos cujo destino final é quase sempre o mercado, algumas práticas críticas ao capitalismo sugerem outras formas de arte, menos atreladas ao consumo, propositoras de experiências íntimas de regeneração. Ainda que artistas como Joseph Beuys ou Lygia Clark tenham apontado, no século 20, para caminhos de zelo e de cuidado por meio de suas proposições, o entendimento da relação entre arte e cura hoje se expandiu.
Apoiados no pensamento anticolonial e da desobediência epistêmica, artistas contemporâneos, em especial do Sul Global, pensam a arte como uma ferramenta de restauração. Suas criações, geralmente interdisciplinares, envolvem temas de transformação anímica, interação, apoio mútuo, resgate cultural, transformação comunitária, saúde mental e outros, borrando fronteiras entre arte, terapia, ativismo e prática social que priorizam relacionalidade e empatia.
Ocupados em entender o presente e futuro históricos para além da narrativa moderna de progresso civilizatório, artistas indígenas, queer, afrodescendentes e periféricos reivindicam formas que fogem dos moldes do Ocidente. Seus posicionamentos diluem a régua da modernidade que separou corpo e mente, arte e vida, razão e emoção, natureza e cultura. Para eles, ainda que o mercado seja fonte de sustento legítima, suas práticas não se limitam a narrativas literais da realidade nem à confecção de produtos.
A necessidade de ser e fazer arte é compreendida dentro de um processo restaurador, individual e coletivo, como um território de memória, encantamento e reexistência. As criações desses artistas recuperam tradições e formas ligadas à oralidade, ritual, corporeidade ou ecologia. Visam a construção de um futuro que resgata outros passados – ancestrais, não-brancos – para fechar feridas e preencher lacunas deixadas pela violência da colonização.
Em meio às tantas mostras na agenda cultural berlinense atual, uma delas, menos espetacular mas gigante em significado, chama a atenção justamente por promover cuidado e cura coletiva como ato político e estético. Trata-se de Activist Choreographies of Care: perfocraZe International Artist Residency, no espaço cultural cooperativado nGbK, fundado em Berlin Ocidental em 1970, dedicado a exposições de teor ativista e colaborativo.
A exposição é coordenada por Va-Bene Elikem Fiatsi [aka crazinisT artisT], uma mulher trans que usa o pronome sHit ou She, fundadora da residência perfocraZe International Artist Residency [pIAR]. A iniciativa, localizada em Kumasi (Gana), tem como objetivo radicalizar as artes e promover o intercâmbio entre artistas internacionais e locais, ativistas, pesquisadores, curadores e pensadores. Va-Bene vive atualmente em Gana e trabalha internacionalmente como “artivista” multidisciplinar, curadora, filantropa e mentora.

A mostra conecta Kumasi à capital alemã entrelaçando histórias queer contadas a partir desses locais, integrando instalações, performances e ações ao vivo em um programa de eventos que evocam o espírito comunitário e restaurador da residência. Em Berlin, a pIAR se apresenta neste espaço satélite temporário como exposição. Embora não seja extensa, a mostra é uma tocante declaração de como a arte pode servir para construir redes de apoio e sobrevivência.
A pIAR define-se como um espaço seguro, auto-organizado, para pessoas LGBTQIA+ de Gana. É um projeto corajoso diante da dura lei homofóbica em tramitação no país, que promove ditos “Direitos Sexuais Apropriados e dos Valores da Família de Gana”. Aprovada pelo Parlamento em fevereiro de 2024, é uma das leis de criminalização à comunidade LGBTQIA+ mais duras no mundo. Seu texto criminaliza as identidades LGBTQIA+, a promoção dos direitos e atividades dedicadas às pessoas dessa comunidade e persegue todos aqueles que possam dar suporte à uma pessoa LGBTQIA+, incluindo parentes, locatários e empregadores. A pena para os “infratores” é de prisão por seis meses a dez anos. Embora a lei ainda não tenha sido implementada, o novo parlamento planeja incluir o seu conteúdo violento e discriminatório em currículos escolares. Uma política institucionalizada de ódio cuja ressonância é notada também em outros países nos quais os governos negam décadas de lutas pelo direito de existir fora da normatividade.
No meu último texto escrevi sobre a sensação de anacronismo do termo arte e política para as novas gerações. Contudo, aqui temos um exemplo de como o político pela arte se atualiza. O futuro é ancestral, e essa ancestralidade regenerativa é uma potência para mudanças estéticas e, sobretudo, sociais.