Orlando, Minha Biografia Política, de Paul Preciado, é exatamente o que o seu nome sugere: uma forma de biografar sua existência não no campo individual, mas no político. Nesse caso, o gênero é o marcador social que leva a experiência dos sujeitos retratados a tomar para si uma figura única: a de Orlando, personagem do romance homônimo de Virginia Woolf. O nome do filme carrega aquilo que ele é: um amálgama de ficção e documentário que toma a forma de manifesto político.
Preciado opta por contar a sua história como sujeito político através da personagem de Woolf, interpretada aqui por diversas pessoas trans e não binárias, com diferentes relações com o gênero, identidade e transição. Mas não ocorre que Orlando, ficcional, invade a biografia de Preciado, mas sim que a biografia dos atores invade Orlando, misturando tudo de maneira, por vezes, propositalmente indiscernível. Orlando torna-se uma existência polifônica, inconsistente e simbólica, e as incursões ao texto de Woolf levam ao transitar por essas experiências. Entremeado nesses muites Orlandos, Preciado, em narração em off, discorre sobre a realidade da não binariedade e da transexualidade.
ESTOU VIVO, DEIXEI SUA FICÇÃO
Preciado maneja a personagem de Woolf sem medo. Altera trechos, mistura outros com relatos de seus atores e escreve seus próprios desfechos. Em uma passagem do filme, Orlando reflete sobre sua própria obscuridade e sobre o “prazer de não ter um nome” e de não precisar corresponder às expectativas dos outros. Nisso encontra grande liberdade. Essa passagem existe, também, no livro, mas Preciado propõe uma alteração. Ele altera a condição de perpétua solidão da personagem, imaginando um encontro entre dois Orlandos – ou um encontro consigo mesmo:
“Mas, ao contrário do que você imaginou, Virginia, Orlando não estava sozinho.
– Quem está aqui?
– Existe alguém?
– Orlando?
– Eu estava esperando por você”.
Ao se desviar do texto original, Preciado traduz uma sensação que dá sentido ao filme: a identificação com o outro como encontro de si. Orlando de Preciado está revivido por causar, para quem se identifica como Orlando, a mesma sensação que Preciado relata ter sentido ao ler o texto de Woolf. Aí é que se justifica o jogo de atuações em que vários atores interpretam um único personagem, sempre precedendo o texto por “meu nome é tal, e, neste filme, eu serei Orlando de Virginia Woolf”. Não é uma afirmação de que “somos todos Orlando”, o que seria uma banalidade; é antes um mantra. Ele aponta para a insistência de ser, um “serei”, uma autodeterminação. A palavra ressoa como promessa de futuro.
ABRE-SE UMA JANELA
As transformações de Orlando de Woolf acontecem durante longos períodos de sono. Ao transicionar, Orlando dorme habitando um mundo e acorda em outro. No filme, insere-se a Orlando de Woolf narrando uma epifania: “Não posso mais respeitar a opinião dos homens sobre as mulheres. Ela é monstruosa. […] Eu reconheci a sensação indescritível de prazer que eu mesmo experimentei vendo uma linda mulher pela primeira vez, há cem anos”. Em sua narração, Preciado propõe que a transexualidade abre uma janela para assistir ao funcionamento do gênero como sistema de opressão.
Observar os dois lados desse sistema binário, mesmo sem se fixar em nenhum deles, é observar onde ocorrem as quebras, onde o que é arbitrário nessa construção leva a contradições internas insolúveis. A transição desnaturaliza a ausência de empatia do homem e a falta de voz da mulher; seus sujeitos descobrem que aquilo que parecia a condição humana era uma condição particular.
O filme, no entanto, discute as questões sociais do gênero de forma quase abstrata, através de proposições reflexivas. A tentativa que Preciado faz é de pluralizar a existência de Orlando com sua multi-individuação através dos atores, para evitar o apagamento dos sujeitos dentro de uma categoria. Orlando é vários, com vistas bem diferentes em suas janelas para o sistema de gênero. Porém, como ele mesmo diz, “toda a vida individual é uma história coletiva”, e a coletividade não aparece no discurso dos atores da mesma forma que no discurso de Preciado. O subjetivismo dos relatos não se converte automaticamente em legitimação como sujeito político, ainda que a política esteja implícita no desafio ao sistema patriarcal. Resta a Preciado desenhar essa relação.
ORLANDO, ME DIGA O QUE SONHAR
Me vem a questão: a quem se endereça o filme? Ele flerta com a fantasia e a utopia, mas a questão sobre o público parece pertinente aqui porque ela orienta o próprio filme. Para quem já teve experiências similares com a não binariedade (ou melhor, para quem também é Orlando), o filme suscita uma identificação imediata; mas ao recair em contar aquilo que esse público já sabe há anos, as pautas se rebaixam. O resultado é um texto desnivelado, que pende ora para o lado do didatismo, ora para a radicalidade da afirmação de uma existência que não faz concessões ao nível de compreensão da sociedade.
Esse desnivelamento afeta inclusive o horizonte utópico do filme. Em momentos mais radicais, a existência não binária aparece como óbvia, como socialmente objetiva, como festa, comunidade, futuro – ou seja, como possível. Aliás, mais que possível: inquestionável e inquestionada. Porém, entre esses momentos há um corte da realidade que suspende a utopia e rebaixa a imaginação de futuro ao imediatamente necessário. Na parte final do filme, por exemplo, temos Orlando tentando fazer o check-in em um hotel, mas tendo sua identidade negada por sua apresentação feminina em pessoa e nome masculino em seus documentos. Não se trata aqui de questionar o peso da negação para as pessoas trans, já que a negação é a experiência mais comum da transexualidade. Esta cena, para esse público, passa como déjà-vu. Mas justamente essa obviedade traz o questionamento: recontar a realidade das pessoas trans para as pessoas cis para que elas se compadeçam é o máximo que podemos almejar?
Para um filme que discute a arbitrariedade do gênero, falta colocar aquele que assiste na posição desconfortável de se pôr em questão. O filme evita universalizar suas proposições mais radicais, mesmo que apenas no plano da fantasia.
Não é um problema na escrita de Preciado, que consegue ser solene e insolente, inteligente e tocante. Em seus momentos mais poéticos, e também mais biográficos, ela encontra potência – não só artística, como também política. E também não é um mal manejo enquanto diretor, um simples erro. A verdade é que Preciado sabe o mundo que recebe seu filme, e faz desse filme um manifesto consciente de um mundo limitado.
Orlando, Minha Biografia Política foi lançado em 2023 e premiado internacionalmente. Chega ao Brasil em 2024 com distribuição por Filmes do Estação.