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Frame da obra em processo Curupira e a Máquina do Destino, de Janaina Wagner (Foto: Cortesia da artista)
Postado em 04/05/2021 - 10:00
Janaina Wagner: A Curupira na estrada fantasma
Em produção, filme da artista paulistana conecta mitologia, literatura e cinema alertando sobre o desmatamento na Amazônia

Em seu projeto de doutorado, em curso pelo Le Fresnoy e pela Universidade de Lille, na França, Janaina Wagner desenvolve uma pesquisa prático-teórica sobre a figura da Curupira. Wagner já vinha pesquisando elementos do imaginário que atuam na realidade material – a lenda do Lobisomem relacionada à mineração, por exemplo. No caminho encontrou a Curupira, que originou a pesquisa que envolve a reelaboração do imaginário sobre a Amazônia e o interesse global sobre esse território. “Não é um lugar que eu tenha algum tipo de relação de base, mas as tensões que isso produz dizem respeito ao presente global, e a ficção permite que eu, como branca, trabalhe na Amazônia e trace novas linhas de fuga”, diz Janaina Wagner à seLecT.

O objetivo é produzir um curta-metragem que misture citações a Graciliano Ramos, Jorge Bodanzky, José de Alencar, referências às mitologias grega e indígena, em um procedimento de colagem. A atualização dessas personagens para o presente indica o entrelaçamento cíclico entre progresso e extrativismo, entre outras questões reiteradamente repetidas e não elaboradas no contexto sociopolítico brasileiro no que diz respeito à Amazônia.

Frame da obra em processo Curupira e a Máquina do Destino (Foto: Cortesia da artista)

Trazer a Curupira para a realidade
Jornalista de formação, Wagner usa a apropriação e a associação de elementos já dados na cultura como estratégia de reflexão crítica sobre a realidade. E Realidade, inclusive, é o nome de uma das vilas onde o filme será gravado. Com ruas de terra, baixa infraestrutura e altos índices de extração madeireira, Realidade é localizada entre Porto Velho e Manaus, na BR-319, que liga o Norte ao Sul do País e é conhecida como Estrada Fantasma.

Essa estrada – uma cicatriz na floresta – sofreu ataques de comerciantes na época de sua construção, nos anos 1970, por acabar com o transporte fluvial, tendo todo seu asfalto destruído, o que dificulta o trânsito da população local. Se o asfalto é o sonho daquela comunidade por possibilitar o deslocamento, também é a facilitação do escoamento de madeira, fruto do desmatamento ilegal. A crença no “progresso” vindo do extrativismo também faz com que aquela comunidade se veja representada nos discursos políticos da extrema-direita, em uma complexa relação de interesses. Outra localidade onde o filme é realizado é São Gabriel da Cachoeira, última cidade do Rio Negro, ponto de convergência de 23 etnias indígenas. Nessa comunidade, não há limites entre a mitologia da Curupira e seus efeitos na realidade.

“Há uma certa exotização dos franceses em relação ao meu projeto. Eles têm esse imaginário da Amazônia como uma grande floresta maravilhosa. De fato, é um lugar idílico, mas com muita violência. São Gabriel é uma cidade onde o capitalismo entrou sem barreiras, com violência, abandono, alcoolismo e consumo desenfreado. É o lugar com o maior índice de suicídios indígenas”, problematiza a artista.

Progresso ao inverso
Curupira é uma palavra tupi e alguns a compreendem como mãe da mata. Outros nomes possíveis são Namu e Caapora. Ninguém vê a Curupira; quem a vê desaparece. Só é possível escutar os seus indícios. Caçadores costumam colocar tabaco e cachaça na entrada da floresta, como oferenda para se proteger de seus ataques. Ela tem o cabelo de fogo e os pés para trás e, se sua representação foi infantilizada e adocicada pela cultura de massa, mas na cosmogonia das populações locais, ela é a força que protege a floresta.

Os pés para trás são usados no projeto de Janaina Wagner, intitulado Curupira e a Máquina do Destino, como uma metáfora crítica das “evoluções” do mundo moderno e das ideias do progresso. Já o cabelo de fogo abre muitas possibilidades de interpretação: de uma chama interior ao controle do homem sobre a natureza. “Minha ideia é fazer um mito de Prometeu ao contrário. Quando pega o fogo dos deuses, ele começa a civilização. Vou abrir o filme com uma imagem de Cubatão filmada com drone, o fogo saindo por uma chaminé de uma das cidades mais poluídas do País.”

O projeto usa novas tecnologias para reencenar personagens do passado. Algumas imagens desenhadas são uma manada de bois fantasmas na BR-319, um encontro entre a Curupira e o espectro da Iracema do filme de Bodanzky (um avatar criado em 3D) e um céu sempre vermelho, irradiando as queimadas e o pôr do sol eternos. O encerramento do filme propõe uma profecia para o futuro.

As filmagens acontecem a partir de janeiro de 2021, ao longo de cinco semanas. Os deslocamentos de Wagner para a Amazônia repõem a discussão sobre os artistas viajantes e de fronteiras, as assimetrias e os pontos de contato decorrentes desses processos. Os desmatamentos da Amazônia, no entanto, dizem respeito ao desequilíbrio climático causado pelo aquecimento global. A forma encontrada pela artista de repor a universalidade da questão é pelo imaginário: mitologias e ficções possibilitam conectar o próximo e o distante, o conhecido e aquilo que ainda não foi mapeado.

Frame da obra em processo Curupira e a Máquina do Destino (Foto: Cortesia da artista)