O conflito entre a razão e o corpo é descrito no campo matafórico iluminista como um enfrentamento entre “o mais elevado” e o “mais baixo”. Entendem-se por superiores as forças da razão: parcimônia, prudência, responsabilidade, disciplina, autocontrole etc. Aos instintos baixos associam-se o corpo, a lascívia, a raiva, o ócio, a inconstância, o desejo, a carnalidade… Na sociedade patriarcal que se estabelece com a burguesia emergente do século 16, couberam à mulher os lugares mais baixos. Em Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva (Editora Elefante, 2020), Silvia Federici mostra que os processos de inferiorização e demonização da mulher começaram com a desvalorização de seu trabalho e sua condição social, quando privada do direito de realizar atividades econômicas por conta própria, tomar decisões, fazer contratos, representar a si mesma em tribunais.
Reivindicar a possibilidade de viver plena e felizmente nos territórios altos e baixos da vida talvez seja uma forma de definir o programa da obra plástica e literária de Leonora Carrington (1917-2011). Esse intuito se revela cedo, aos 23 anos, em 1940, quando, após uma temporada no inferno de um hospício na Espanha, ela escreveu o relato autobiográfico Lá Embaixo (Editora 100/cabeças, 2020) e pintou um óleo sobre tela homônimo.
QUEDA
Foram tortuosos os caminhos que levaram Leonora Carrington ao sanatório de Santander. O aprisionamento aconteceu em Madri, após um surto psicótico, depois de sofrer um estupro coletivo. Internada à força, ela seguiria sendo violentada e obrigada ao disciplinamento de suas vontades e corpo com aplicações de drogas que induziam a convulsões epilépticas e singulares visões de quedas.
“Foi, tenho quase certeza, uma noite antes da injeção de Cardiazol que tive essa visão: o lugar parecia o Bois de Boulogne; eu estava no alto de uma pequena encosta bordejada de árvores; a uma certa distância abaixo de mim, na estrada, havia uma cerca como aquelas que eu tinha visto muitas vezes nos torneios de hipismo; ao meu lado, dois cavalos grandes atrelados juntos; eu estava impacientemente esperando que eles saltassem sobre a cerca. Depois de muitas hesitações, eles saltaram e galoparam encosta abaixo. De repente, um cavalinho branco se separou deles; os dois cavalões sumiram e não sobrou nada na trilha além do potrinho, que rolou pela encosta até lá embaixo, onde permaneceu deitado, de costas, morrendo. Esse potrinho branco era eu mesma.”

O relato autobiográfico é um encadeamento vertiginoso e fascinante de memórias, alucinação, ficção e narrativa onírica. Ao longo das páginas e dias, Carrington elabora uma cosmologia fantástica e uma geografia imaginária, composta de pavilhões que nomeou de Villa Covadonga (Egito), África, China, Villa Pilar e Abajo (Lá Embaixo), que era “o maior e mais luxuoso deles”. Lá Embaixo vivia uma cigana chamada Angelita, que um dia apareceu em seu quarto juntamente com o médico Luis Morales, lhe dizendo que Lá Embaixo era delicioso e todos eram felizes. A cigana e o potro eram muito provavelmente alter egos, entre tantas outras personagens que habitavam nela e se revelavam em pinturas, vestidas com máscaras. Em trecho da autobiografia, ela define a máscara como “meu escudo contra a hostilidade do Conformismo”.
Entre vigílias e perdas de consciência, “acreditava estar sendo submetida a torturas purificadoras para que pudesse alcançar o Conhecimento Absoluto e, a partir desse ponto, eu poderia morar Lá Embaixo. O pavilhão com esse nome era para mim a Terra, o Mundo Real, Paraíso, Éden, Jerusalém”, escreve Leonora sobre o pavilhão onde ficavam os internos mais próximos da cura. Quando, finalmente, conseguisse chegar Lá Embaixo, sentia que, “pela ação do Sol”, se converteria em “um andrógino, a Lua, o Espírito Santo, uma cigana, uma acrobata, Leonora Carrington e uma mulher”.
O território mais baixo da prisão de Santander era, portanto, o lugar da cura e da libertação. Possivelmente, o mesmo lugar onde estão reunidas as seis personagens enigmáticas representadas na pintura de mesmo título, realizada em 1940-41. “Esta tela é a ilustração de uma experiência limítrofe que, à medida que se recorre a Lá Embaixo, passa por uma identificação de Carrington com um mundo em guerra visto como um corpo doente e com diversos personagens imaginários, seres andróginos que parecem travar, nos jardins exteriores do sanatório, uma estranha sacra conversazione (no caso, uma conversa interior, de todas as vozes que habitam dentro dela)”, escreve o curador Carlos Martín no catálogo da exposição Leonora Carrington: Revelación, em cartaz na Fundación Mapfre, em Madri, de fevereiro a maio de 2023.
FUGA
O mapa da fuga de Leonora Carrington da hostilidade, do conformismo, da domesticação, da anulação da vontade, da submissão e da inferioridade impostos às mulheres passa por cidades de cinco países. Trata-se, segundo Marcus Rogério Salgado, professor de literatura da UFRJ, em texto para a tradução brasileira do livro, de “uma viagem psicanalítica, rumo à morte ritual de todos os pais”. Antes de chegar, aos 25 anos, no destino que seria o seu lugar até a morte, ela cumpre um roteiro de alta ansiedade que sai de Londres, passa pela Cornualha, Paris, Saint-Martin-d’Ardèche, Perpignan, Andorra, Barcelona, Madri, Lisboa, Estoril, Embaixada do México em Lisboa, Nova York e termina na Cidade do México.

Estudante de arte, aos 19 anos, Leonora conhece Max Ernst, que estava em Londres para a Exposição Internacional do Surrealismo de 1938, por quem se apaixona e com quem desaparece do mapa de sua família aristocrata. Entre os poucos pertences que leva, carrega para Paris a pintura The Inn of the Dawn Horse (Self Portrait) (1937-38). Lá frequenta o círculo surrealista, sem se deixar rotular pelos tratamentos que os homens surrealistas aplicavam às suas musas: femme-sorcière, femme-enfant. “Não tive tempo de ser musa de ninguém. Estava muito ocupada me rebelando contra a minha família e aprendendo a ser uma artista”, disse certa vez.
Embora rótulos tentem enquadrá-la ora em um “surrealismo gótico”, ora em um “surrealismo celta” – em referência à linhagem materna –, talvez a ideia que chegue mais perto dos significados da vida e da obra de Carrington venha de sua amiga íntima, a pintora ítalo argentina Leonor Fini, que a descreveu como “nunca uma surrealista, mas uma verdadeira revolucionária”.
Com Max Ernst vive uma temporada idílica em uma casa de pedra do século 17, em Saint-Martin-d’Ardèche, no sul da França. Ali cultiva um cotidiano mágico, que envolvia experimentações alquímicas na cozinha (que viriam a ser recuperadas no México, com o uso de plantas mágicas juntamente a Remedios Varo e Kati Horna) e a invenção de toda uma cosmogonia de seres andróginos, fluidos e híbridos humano-animais, que habitam os textos, desenhos, pinturas e esculturas do casal. “Loplop, o pássaro superior” era o alter ego de Ernst, e Leonora identificava-se com o cavalo, um ícone da liberdade. Na ilustração do prefácio que Ernst escreve para o primeiro livro de Carrington, The House of Fear (1938), ela é representada como uma mulher com cabeça de cavalo.
A narrativa de Lá Embaixo começa em maio de 1940, sob o impacto da prisão de Ernst, suspeito de espionagem por ser alemão, em Saint-Martin-d’Ardèche. O desenrolar de situações de dor, angústia, medo e loucura que se seguem transmite com visceralidade o horror da iminência da Segunda Guerra Mundial. O relato que Carrington faz de sua fuga de uma França prestes a ser ocupada pelo nazismo, acompanhada por um casal de amigos, na calada da noite, sem vistos de viagem, em carros enguiçados em estradas margeadas por fileiras de caixões de pessoas assassinadas por alemães, é um filme de terror noir.
Cruzada a fronteira com a Espanha, Leonora entra em um estado de euforia e entusiasmo, até ser envolvida em uma trama macabra por um tal Van Ghent, holandês ligado ao nazismo, e por oficiais de uma milícia monarquista católica, tradicionalista e antimarxista espanhola; culminando no estupro e na perda completa da razão. Ainda assim, ela tenta reagir, como relata no seguinte trecho: “Um acordo entre Espanha e Inglaterra me pareceu a melhor solução. Assim, telefonei para a Embaixada britânica e me encontrei com o cônsul. Tentei convencê-lo de que a Guerra Mundial estava sendo travada hipnoticamente por um grupo de pessoas – Hitler e companhia – que era representado na Espanha por Van Ghent; que, para derrotá-lo, bastaria entender seu poder hipnótico; nós então interromperíamos a guerra e libertaríamos o mundo, que estava ‘enguiçado’, como eu e o Fiat de Catherine”.

Capturada em Madri “pelos inimigos da humanidade”, entre os quais se incluía seu pai, poderoso empresário de uma indústria química britânica – “Papai Carrington e seus milhões”, como se referia a ele –, Leonora é despachada para Santander. Sete meses depois, é declarada lúcida (leia-se dócil, passiva, domada) e recebe uma liberdade condicional. De volta a Madri, recebe a visita de um emissário da família, com a notícia de que haviam decidido enviá-la a um sanatório na África do Sul, onde ela “seria muito feliz porque era um lugar adorável”. O roteiro para o fim do mundo passava por Lisboa, onde a artista foi recebida por um “comitê da Imperial Chemicals”, de quem, poucos dias depois, consegue escapar pela porta lateral de um café, tomando um táxi para a Embaixada do México.
A pintura Lá Embaixo (1940-41) é dedicada à pessoa que facilitaria sua fuga da Europa para sempre, o mexicano Renato Leduc, com quem se casa na Embaixada, em Lisboa, a fim de atravessar o Atlântico. No verso da tela, lê-se a dedicatória: Santander. Para ti, Renato, en nombre la magia, el verde, que es mi color.
TRAUMA E REGENERAÇÃO
A pintura Lá Embaixo é tão hermética quanto uma ciência secreta, uma tradição oculta antiga, um hieroglifo. A cor verde, além de corresponder ao estado de espírito da artista, remete à paisagem úmida do norte da Espanha e à cor da Tábua de Esmeralda, o texto que deu origem à alquimia. Também são verdes o cavalo e a mulher de corpo viscoso e brilhante como uma serpente. A figura de pé, que veste um manto que a faz parecer um anjo ou uma mariposa, é frequentemente identificada à própria Carrington. A mulher mascarada de corpete, o homem sem braços e a mulher-pássaro não são menos intensos e perturbadores e o mais certo é pensar que cada uma dessas seis figuras seja a faceta de um só autorretrato.
Híbridas, assustadoras e sensuais, as seis personas parecem ser portadoras de poderes e informantes de saberes femininos há séculos sequestrados pela sociedade patriarcal. Ao longo das quase oito décadas de sua produção artística e literária, Carrington vai buscar, no matriarcado ancestral de uma Europa pré-capitalista e de uma América pré-colombiana, a autonomia da mulher que a caça às bruxas sequestrou.
Com a reincidência no tema do andrógino, Leonora é visionária ao fazer uma crítica aos binarismos (entre homem/ mulher, humano/ animal, terra/ universo) e ao defender a equivalência entre o humano e todas as formas de vida e natureza. Isso a faz se aproximar, nos anos 1960, de grupos feministas que cultivavam uma crítica às extrações de recursos naturais, tornando-se uma pioneira do ecofeminismo e uma precursora das teorias interespécies.
De volta à autobiografia de sua temporada no inferno – ditada, em agosto de 1943, para sua amiga Jeanne Megnen, e publicada pela primeira vez na revista surrealista VVV, em Nova York, em fevereiro de 1944 –, logo no segundo parágrafo, Leonora diz que a experiência que está prestes a narrar corresponde a um “embrião de conhecimento”. Em outras palavras, trata-se aqui de literatura iniciática, onde se permutam forças da razão e do corpo, indicando que tudo aquilo que está em cima é exatamente igual ao que está embaixo.