Brasília Agora. O título pode remeter a uma manchete de plantão jornalístico, a uma amostra do que acontece hoje, a uma retrospectiva. A sede institucional e política do Brasil é sinônimo de alarde e de informação urgente. Há tempos, porém, que a urgência se detém a assuntos específicos, enquanto muitos caminhos ainda são negligenciados.
Em momentos tensos e esperançosos de reconfiguração do panorama político, que se vincula a um pensamento geral acerca de Brasília, esse acúmulo de assuntos ainda não tratados, pontas soltas da modernidade, é tema da exposição coletiva que acontece na galeria Index, com o trabalho de dez artistas que nasceram ou desenvolvem trabalhos na região: Alberto Lamback, Azul Rodrigues, Bruna Sperling, Igu Krieger, Janet Vollebregt, Kim R. Martins, Pedro Lacerda, Thiago Pinheiro e o duo Gal Cipreste Marinelli e Rodrigo Masina Pinheiro.
Os trabalhos de Alberto Lamback versam sobre as contradições e as complexidades da imagem na contemporaneidade – fotografia e pintura, digital e analógico, erudito e popular, colorido e preto-e-branco. Desenvolve pinturas em que revisita o tema canônico da natureza-morta de maneira turva, como uma fotografia sem foco – ou cuja memória esvanece, em uma reavaliação sobre o natural e o artificial. Sobre essas imagens que atritam o campo da fotografia e da pintura em sua interseção sobre a memória, Lamback realiza coloridas intervenções com materialidade espessa e de tom autobiográfico.
Na exposição, o artista apresenta trabalhos que optam por uma visualidade diferente de suas produções recentes, embora sigam com a discussão sobre memória e comunicação, além do provocativo confronto entre códigos visuais aparentemente divergentes. Sem Título (2022) retrata uma paisagem do cerrado, onde a única intervenção humana aparente é uma placa apregoada com o dizer “Só Jesus salva”, em uma espécie de elogio às visualidades não-academicistas que construíram – e constroem – Brasília. Além da pintura, expõe uma instalação com uma larga bandeira de anúncio pintada por um letrista brasiliense, fixada por hastes de madeira em tijolos de concreto, onde se lê “Artista” e um número de telefone, cujo contato permite uma visita ao ateliê de Lamback. Justapõe o pré-moldado industrial com o minucioso trabalho manual dos pintores que produzem esse tipo de cartazes, espalhados de forma profusa pela cidade.
A natureza da publicidade em Brasília também estrutura a série Disponíveis (2017-2019), de Pedro Lacerda, em que uma série de fotografias registra outdoors que sofreram intervenções, seja pela retirada das impressões, pela deterioração, pela aplicação posterior de outros anúncios improvisados ou pela exibição da superfície vacante, pronta para receber novos anúncios. As imagens, feitas em rodovias entre o Distrito Federal e Goiás, apresentam um tempo parado e permanente em oposição à rapidez do sistema viário da região. Com tom humorado e crítico, a série também retrata propagandas que divulgam oportunidades para anunciar naqueles suportes disponíveis, em um diálogo com as discussões sobre cidade e publicidade propostas por Denise Scott Brown e Robert Venturi.
Lacerda também mostra duas outras fotografias (Sem Título e Leito, ambas de 2020-2021), que, junto a uma lâmpada tubular azul, compõem uma instalação. A partir de uma série de trabalhos intitulada Noite Azul, desenvolvida no período mais rigoroso do isolamento durante a pandemia do Covid-19, o artista explora a relação de elementos de sua casa em possíveis interações com o mundo exterior, com o consumo digital de imagens e com percepções pessoais de cunho melancólico e experimental.
Compartilhando o tom intimista, Kim R. Martins participa com a obra Retratos Sintetizados (2022), composta por uma foto Polaroid sobre um volume de concreto branco com alto falantes. O trabalho recria um ambiente audiovisual que se conecta ao momento em que a fotografia instantânea foi feita, além de discutir as possibilidades de suporte de obras sonoras em espaços expositivos convencionais. Martins centra sua prática nas relações de percepção entre os espectadores e suas obras, investigando arte sonora e visual com ênfase nas contingências sensoriais não-lineares.
A pesquisa da artista Bruna Sperling se atenta à relação com o espaço e à descoberta de uma geografia de si. Formada em arquitetura e urbanismo, a atuação de Sperling como cenógrafa também permite um diálogo franco com a espacialidade e com os fluxos que pautam Brasília, mas refletem os distanciamentos e aproximações da artista – que hoje mora em São Paulo – com sua cidade natal, com seu próprio processo criativo e com narrativas pessoais de formação de identidade e linguagem. Com elementos cromáticos e formas que aparentam maleabilidade, a artista apresenta a escultura Tem Coisa Que Passa e Fica (2022), em que duas sinuosas formas anelares se entrelaçam – uma com cores escuras e terrosas, enquanto a outra exibe cores luminosas e saturadas – e Teve uma Hora Que Achei Que Ia Morrer (2022), políptico de pintura sobre papel que apresenta fluxos por meio de suas continuidades e rupturas individuais em cada trecho do conjunto.

O duo composto por Gal Cipreste Marinelli e Rodrigo Masina Pinheiro expõe duas fotos da série GH, Gal e Hiroshima, com grande repercussão em prêmios internacionais. Utilizando uma estética propositalmente plácida, as fotografias versam sobre a violência inerente à vida de pessoas trans não-bináries, como a imposição ou a inadequação de vestuários atrelados à feminilidade e a incitação à brincadeira com objetos com formas bélicas a crianças que se tornariam, segundo uma suposta normalidade, homens violentos. Com intensa carga autobiográfica, as imagens almejam utilizar de um senso estético pré-estabelecido como dócil e atrativo para endereçar a hostilidade sob as quais vivem pessoas que não obedecem ao binarismo cisgênero.
Uma série de olhos são desenhados sobre papel em pastel oleoso e carvão pela artista Azul Rodrigues no políptico Pé de Guaraná (2022). O título se relaciona à narrativa tupi-guarani sobre a origem do guaranazeiro: vítima da inveja de Jurupari, deus da escuridão, um querido menino foi morto e teve seus olhos enterrados pelos pais em luto por ordem de Tupã, deus do trovão. Nasceu dali uma árvore cujo fruto, o guaraná, se assemelharia aos olhos do menino morto. Rodrigues também apresenta gravuras que, assim como a obra supracitada, segue o tema explorado em sua recente individual no Museu Nacional da República, 124 Córneas e Meridianos Imaginários, em que centra o estudo da representação do corpo humano em um aspecto menos anatômico e mais observante, na subjetividade e na reflexividade que o olho desempenha na prática artística.
Janet Vollebregt desenvolve seu trabalho em diálogo com cristais e metais, apresentando-os em formas geométricas puras e em estado bruto. Objetiva destacar as relações energéticas e sensíveis com esses materiais, como na obra Entre o Bruto e o Polido Se Encontra o Amor (2022), feita de quartzo rosa bruto e polido. A artista também exibe dois trabalhos intitulados Superquadras, em que confronta o rigor geométrico da forma natural da pirita com a ortogonalidade do projeto urbanístico do plano piloto de Brasília. Há poucos meses, o Museu Nacional da República também recebeu Vollebregt na individual Esférica.
O artista Igu Krieger, em Cartografia Mimética da Casca de Melaleuca (2021), também se debruça sobre o estudo de estruturas formais de elementos naturais, em conexão com um sistema estético popular. Trama, com linha sobre aramado de ferro, padrões encontrados na observação das fibras da casca da planta, utilizada como erva medicinal. Em contraposição ao grid formado pelo arame, referente à quadrícula urbana da cidade, propõe um direcionamento de atenção para o conhecimento popular como possibilidade de cura viva e alternativa epistemológica.
Seguindo o tema do desmanche de formas industrializadas e do embate geométrico tradicionalmente explorado por artistas brasilienses, Thiago Pinheiro mostra trabalhos que conectam a severidade dos traços cartesianos impostos pelo urbanismo da cidade, que acentua suas desigualdades, com fios de arame farpado (como em Entrecruza nº E, de 2022), além de explorar as características intrínsecas aos materiais utilizados nas obras, como a irreversibilidade e a falta de elasticidade (como em Fole, também de 2022). Pinheiro incita questionamentos sobre as possibilidades de plataforma e uso dos materiais na produção contemporânea.
A exposição Brasília Agora segue em cartaz até o dia 29/10, véspera do segundo turno das eleições presidenciais, na galeria Index (SCS Qd 01, térreo do Ed. Morro Vermelho, Asa Sul, Brasília).
Mateus Nunes é doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, com período na Universidade de São Paulo (USP), onde é professor convidado. Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, é pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa (ARTIS) e professor do MASP.