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Still do documentário Leona Vingativa, O Filme (Foto: Cortesia Clara Soria)
Postado em 05/04/2021 - 9:16
Leona Vingativa: Narrativas contra-hegemônicas e viralização
Cantora, atriz e uma das primeiras youtubers do Brasil, a artista paraense integra crítica social, cultura travesti, aparelhagem e paródias da música pop internacional

No fim dos anos 2000, um grupo de crianças da periferia de belém reencenava trechos de novelas mexicanas, gravava com o celular e publicava no Youtube. Leona Vingativa, na época Leandro dos Santos, tinha quase 10 anos e já viralizava com suas atuações e com a declamação do seu nome. “Meu nome é Nati Natini Natiê Lohanny Savic de Albuquerque Pampic de La Tustuane de Bolda, mais conhecida como Danusa Deise Medly Leona Meiry Cibele de Bolda de Gasparri. A mulher jamais falada. A menina jamais igualada. Conhecidíssima como a noite de Paris. Poderosíssima como a espada de um samurai. Eu sou apertada como uma bacia. Eu sou enxuta como uma melancia. Tenho dois filhozinhos, um zolhudinho, outro barrigudinho. Casei com o dono da Parmalat. Virei mamífera. Só mamo. Pertenço à família imperial brasileira Orleans e Bragança. Penetração difícil. Eu não sou a Graziele do corpo dourado, eu sou a Leona da cor do pecado.”

Leona foi proibida judicialmente de produzir vídeos por quatro anos, devido à idade e aos conteúdos de seu canal, voltando às redes por volta de 2016, como cantora e atriz. Daquela ação inicial com seus amigos mantiveram-se o modo de operar com paródias, remixes e deboche, o baixo orçamento e a alta energia.

DESCENTRALIZAÇÃO DA INTERNET
Se hoje os youtubers são um fenômeno generalizado, naquele momento seus canais eram uma atividade pouco experimentada, especialmente por crianças, que hoje usam (ou são usadas) na exploração do potencial econômico da plataforma. Também chama atenção a possibilidade de descentralização que a internet proporciona, sendo a viralização dos vídeos de Leona Vingativa e seus amigos um exemplo claro das hipóteses da artista alemã Hito Steyerl sobre as “imagens pobres”. Para a autora, há simultaneamente um aspecto democrático e conservador na alta circulação de imagens de baixa resolução que são continuamente reelaboradas. Experiência que ganha contornos específicos no Brasil, em especial vinda de uma artista da periferia de Belém do Pará.

A reencenação de novelas mexicanas, por um lado, é um sintoma da estereotipia da cultura de massa e seus aspectos colonizadores. A estrutura codificada dessas narrativas e características classistas, por vezes sexistas e racistas, no entanto, ganha nuances quando aquele grupo de crianças do bairro do Jurunas, um dos mais populosos de Belém, passa a embaralhar lugares de gênero e classe. A viralização de seu trabalho também coloca em questão o poder de disseminação da imagem, ainda que a estrutura material de seus vídeos evidencie as assimetrias econômicas e a má distribuição de renda.

O impulso inicial de reencenar as novelas também pode ser compreendido como uma forma de elaborar e metabolizar aquelas narrativas hegemônicas. Mas, em um segundo momento, quando Leona Vingativa começa sua trajetória na música, esse procedimento de reencenação passa a ser usado como estratégia crítica.

DEBOCHE
Ao observar seu conjunto de músicas e clipes, é fácil perceber a pressão de diversas experiências sociais. Desigualdade econômica, religião, travestilidade, sexualidade, racialidade, precariedade, trabalho, política, somados à falta de saneamento básico, como os lixões a céu aberto, comuns na periferia de Belém. O deboche opera aqui como elaboração crítica de todos esses problemas inter-relacionados e como proposição de saída pelo bom humor. Sem preocupação de encaixar as traduções e versões nas métricas das músicas originais, Leona parte de hinos da Copa do Mundo, canções de Anitta, Gaby Amarantos ou do Daft Punk para produzir seu repertório, misturando pop e aparelhagem, pajubá e carimbó. Além das críticas sociais, há indicações bem-humoradas sobre o uso de preservativos ou o descarte adequado de lixo.

Há autoironia, inclusive, com comentários debochados sobre a própria construção dos vídeos no final de cada um, mostrando erros de filmagens e acidentes de percurso. A metalinguagem também é um recurso usado quando, nos clipes, a personagem Aleijada Hipócrita, que aparece nas reencenações iniciais, ressurge cumprindo outros papéis. Ou quando, já adulta, Leona dá continuidade às narrativas que encenava quando criança, mas agora com roteiros autorais.

Essa miscelânea, que encontra sínteses próprias na trajetória da artista – pela especificidade de sua experiência com a cidade de Belém, as periferias, o meio ambiente, a travestilidade, a raça, a ostentação etc. –, pode ser compreendida como um traço da cultura brasileira de um modo mais amplo, da música comercial à arte contemporânea.

Sua história foi contada na peça Leona Vingativa – O Espetáculo (2019), de Tiago de Pinho, e no minidocumentário Leona Vingativa – O Filme (2019), de Clara Soria e Hugo Resende. Ambos os títulos aprofundam a reflexão sobre a autoexposição e a ostentação, assuntos tão discutidos em sua música como afirmação da presença de pessoas trans na cultura mainstream. Em 2016, a artista apresentou uma performance no Ateliê397, na exposição TransAmazônica, com curadoria de Adler Murada, e, em 2020, ela participou do programa IMS Convida, mostrando os interesses do meio de arte em sua produção, assim como sua amplitude de circulação. “A internet é minha história, o YouTube é minha vida, a web sou eu”, disse em entrevista para o Instituto Moreira Salles.

A POLÍTICA
Embora tenha uma circulação midiática relativamente alta, há poucas análises críticas sobre sua relevância para além das entrevistas anedóticas e textos informativos. Na análise Leona Vingativa: Explicitamente Política, o pesquisador Álvaro Andrade discute como a política é uma linha que conecta toda a sua prática, em clipes, comentários sobre problemas locais ou mesmo vídeos de panfletagem, em defesa ou crítica de certos agentes. Na esteira de outros artistas que passam a atuar no campo da política, Leona foi candidata a vereadora em 2020, mas não foi eleita. Em seu texto, Andrade aponta como o sobrenome Vingativa foi suprimido da campanha, como forma de evitar tensões e ambiguidades. Fica a pergunta sobre quais estratégias e efeitos de sua ação no campo cultural – o deboche, a liberação, a mistura – seriam aplicados nas leis e projetos diretamente sociais.