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Frame de Urgente (2020), de Lia Chaia
Postado em 30/07/2020 - 9:49
Lia Chaia e a emergência de um presente indeterminado
Novo vídeo da artista produz a obsessiva repetição de um alerta sobre a escalada das urgências cotidianas
Paula Alzugaray

De repente, não tem São João, não tem Carnaval, nem romaria, nem parada gay. Adiaram o ano novo para março, abril ou maio? Ainda sem previsão. Como aponta o cronista do jornal, estamos presos em 2020. De repente, a cidade ganha a escala da tela do celular. A corrosão das noções de tempo e de espaço, sob a crise do coronavírus, pede que o calendário e o mapa múndi sejam redesenhados.

No assustador e premonitório Há Mundo Por Vir? Ensaio sobre os Medos e os Fins (2017), os pesquisadores Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro afirmam que “uma coisa é saber que a Terra e mesmo todo o universo vão desaparecer daqui a bilhões de anos, ou que, bem antes disso, em um futuro ainda indeterminado, a espécie humana vai se extinguir. (…) outra coisa, bem diferente, é imaginar a situação que o conhecimento científico atual coloca no campo das possibilidades iminentes: a de que as próximas gerações (as gerações próximas) tenham de sobreviver em um meio empobrecido e sórdido, um deserto ecológico e um inferno sociológico”.

Nas eleições presidenciais de 2018, o discurso apocalíptico foi eleito democraticamente, a emergência se tornou realidade cotidiana e a distopia se instalou. Quando se extinguiram todos os meios que a sociedade brasileira tinha para burlar, disfarçar ou tentar se safar dos sinais e evidências do fim do mundo, a luz vermelha acendeu. Sob o estado de emergência, Lia Chaia produz o vídeo Urgente (2020). Seu alarme soa de forma mecânica, ao som repetido de um carimbo golpeando o papel. 

No vídeo, há diferentes escalas da palavra “urgente”. Há urgências em tamanho P, M e G, representando apocalipses em escala de um a dez. Os diferentes tipos de urgência aparecem em tensas relações; alguns momentos o Urgente pequeno aparece na frente enquanto o Urgente grande é carimbado no fundo. Portanto existem confusões entre as diferentes escalas das palavras, mistura esta que gera o paradoxo entre as diversas urgências”, diz Chaia à seLecT.

Qual a dimensão do alarme? O que determina prioridades na escalada dos alarmes cotidianos? O que coloca o presente em estágio “mais terminal” do que a realidade de um ano atrás? Para citar um exemplo prático definitivo no atual quadro de colapso político, moral e ambiental, só na escalada de desmatamento da Amazônia, já é possível visualizar as dimensões P, M e G do problema: aumento de 25% de janeiro a junho de 2020, comparado ao mesmo período do ano anterior. O número é alto, mas pode ser maior: aumento de 64% no acumulado dos últimos 11 meses. O quadro é grave, mas pode ser ainda mais: em junho de 2020, focos de queimadas no bioma foram os maiores para o mês nos últimos 13 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Altas temperaturas
Em 2019, Lia Chaia discerniu sobre um mundo ardente, para produzir os trabalhos que fizeram parte de sua individual Febril, na galeria Vermelho. “Na última exposição, os corpos humano e global estavam ainda febris, ou seja, entre a melhora e o avanço da doença. Apresentei então os sintomas. Me parece agora que a febre deu lugar a explicitação dos graves problemas do corpo global – daí a necessidade de insistir nas urgências como forma de atenuar conflitos e tensões”, diz. 

As altas temperaturas que atingem os biomas florestais se espalham, afetando todas as áreas da vida. A mancha vermelha se adensa no mapa do Brasil e no papel enquadrado pela câmera de Lia Chaia. O som mecânico do carimbo se prolonga no tempo e torna o presente indeterminado. 

Mas toda urgência tem limite? Sim, até ela ser superada pela seguinte – maior ou menor do que a anterior. Se, há 20 anos, em Desenho-Corpo (2001), o limite da ação filmada em vídeo era o fim da carga da caneta, o que determina o fim da ação em Urgente?

“Em Urgente o tempo é curto, o agora é urgente e tudo que é urgente deve ser resolvido de forma rápida, sem demoras. Entretanto, no caso dos conflitos em sociedade a urgência é permanente. Não há tinta suficiente para encerrar as urgências”, dia Chaia. 

Na poética da artista, há um embate entre a repetição mecânica do gesto e o desenho orgânico. Nenhuma das duas prevalece diante da difícil sociabilidade do tempo pandêmico. Em seu mais recente trabalho, o papel, no final da ação, é o mapa mental de uma artista que lida com a imprevisível e indeterminada escala do real.