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Postado em 11/10/2024 - 3:11
Liberdade ao brazil

Um abaixo assinado tem rodado canais de comunicação virtual propondo a proteção e tombamento das setenta estátuas da liberdade construídas em território brasileiro junto às lojas de departamento Havan1. O documento – que não possui legitimidade jurídica mas constitui-se como instrumento legítimo de demonstração de força política popular – surge com o intuito de defender monumentos que têm se tornado alvos de depredação por membros da sociedade civil que não se identifica com o significado que alguns destes símbolos carregam2. Revela  o alcance ao campo das artes por parte de forças políticas polarizadas que têm suscitado embates culturais variados na última década. Retoma-se, com ares abrasileirados, uma disputa em torno de uma obra de arte “pública”, semelhante ao que assistimos em território estadunidense com o famoso caso do Tilted Arc, protagonizado por Richard Serra.

O Brasil é hoje o país com o maior número de Estátuas da Liberdade do mundo. É também uma das estátuas da liberdade das lojas Havan reconhecida enquanto monumento mais alto erguido em território nacional. Em meio à retomada da atenção popular ao peso da figura dos monumentos, me propus a entrevistar, em nome da revista Select, a artista estadunidense Patricia Hofer, a quem atribui-se a autoria do projeto de instalação das estátuas, reconhecido pelo Guiness World Record enquanto o projeto de arte site specific de maior dimensão já produzido – que estipula enquanto site o território de um país inteiro. Meu interesse, enquanto crítico e pesquisador da cultura contemporânea, é alcançar práticas que, ao olhar de quem carrega consigo preconceitos e anseios regidos por um crivo estético intelectualizado, deveriam ser minadas e ignoradas.

O caso mobiliza questões diversas: Como obras de arte pública intervém em nosso cotidiano? Como a disputa em torno do trabalho artístico se associa à dimensão política nacional? O embate se refere à estátua ou a uma disputa mais ampla? Como o artista deve se posicionar diante do caso?

Para além de questões voltadas ao ocorrido, me parece relevante aproximar-nos do trabalho da artista e compreender melhor a sua obra. Contatei Patricia, que topou conceder-nos uma entrevista3.

[1] Patricia, bom dia! Para dar início ao nosso diálogo, poderia contar rapidamente algo sobre você que o público brasileiro ainda não saiba?

Bem, um pouco sobre mim… Penso que tenho uma posição diferente da maioria dos artistas… Minha intenção é produzir obras que atinjam públicos distintos, não me interessa muito moralizar nossa profissão.

A arte tem essa vantagem diante de outras práticas, temos mais liberdade, somos livres de cuidados metodológicos… torna-se mais possível experimentar, me parece que deveríamos fazer mais uso dessa liberdade… levar ao extremo algumas relações, despida de preconceitos, para entender o que se passa, em lugar de produzir uma arte que almeje um circuito específico… ou que atue apenas na promoção do embelezamento da paisagem. Estou ciente dos perigos que estas intervenções acarretam, mas estou disposta a arriscar (risos).

[2] Entendo. E sobre o seu interesse na Estátua da Liberdade, como surgiu? Conte-nos mais.

Então, eu estava fazendo meus estudos em arte e um dia tivemos uma aula sobre o tema decolonial. Me pareceu curioso que o termo utilizado serviria, nos moldes do que é explicitado, para identificar trabalhos muito anteriores à tendência decolonial atual. Foi voltando no tempo que pensei: “A Estátua da Liberdade é o símbolo mais ideológico da cultura norte-americana da liberdade. Se a isolamos de seu meio, percebemos que é verdadeiramente o símbolo mais anti-colonialista que temos! Não estaríamos colocando em prática os tais preceitos decoloniais ao reproduzir esse símbolo na América do Sul?”

Além disso, tirar a estátua de seu local original e reproduzi-la em outros lugares, em locais mais pobres, é bastante significativo. Quero dizer, a reprodução do símbolo meio que diminui sua soberania… entende?

[3] E como surgiu a ideia de trabalhar com a Havan?

Devo começar explicando que sou intensamente influenciada pelo trabalho de Marta Minujin. Marta extravasa os limites entre arte e vida, é uma super-artista. Seu estilo e a maneira provocativa como ela fala sobre o colonialismo desde o início de sua carreira, quando a ideia do decolonial nem mesmo existia… Além disso, ela é uma artista de sucesso mulher, num espaço então dominado por figuras masculinas.

Então, segui seu exemplo e tentei executar meu trabalho – Marta entrou em contato com o McDonald’s quando estava tentando realizar a obra da Estátua da Liberdade Coberta de Hambúrgueres, em 1979.

Tudo aconteceu muito rápido. Eu estava procurando imagens da bandeira brasileira na internet e então encontrei essa foto de um homem usando um terno com as cores do Brasil (verde e amarelo). Ouvi falar dessa empresa que estava crescendo rapidamente e que tem muito orgulho da cultura brasileira, de um jeito contraditório. Eles são ótimos! (risos) Vêm de uma cidade pequena e todos os funcionários usam uma camiseta com as cores da bandeira para trabalhar todos os dias. Existe um nacionalismo curioso ali…

[4] Você pode nos contar como o trabalho se expande da estátua para a arquitetura da loja? Também foi ideia sua?

Nós achamos que a arquitetura da loja deveria trazer algo da cultura norte-americana. A intenção foi fortalecer o deslocamento cultural, por meio de um viés ainda mais teatralizado da proposta. Começou como uma provocação, uma maneira de jogar com o poder que temos [nós, estadunidenses]… no final fomos nos convencendo de que faria sentido… Hang se empolgou muito com todas as minhas ideias, construímos uma relação de confiança, então eu propus a ele “o que você acha de usar na sua loja a linguagem da Casa Branca?”.

O trabalho é feito inteiramente junto a eles. Discutimos e conversamos muito… Eles têm seus profissionais de marketing que estavam trabalhando na marca Havan. Algo que era uma grande preocupação para Hang… a conexão com o público é a chave do sucesso deles. Hang é uma pessoa pública… como uma figura pop. Um Andy Warhol do nosso tempo (risos). Você pode ver isso na maneira como ele fala, na maneira como ele se veste. Ele próprio carrega símbolos que revelam valores muito quistos aos brasileiros.

Então… voltando à sua pergunta… eu não poderia ignorar a arquitetura. Além disso, me interesso pelo tema. Encontrei ali outra chave para pensar a intervenção, consciente de que o tom jocoso seria percebido apenas por alguns…. Preciso ser um pouco acadêmica agora… Depois de todas as mudanças que aconteceram ao longo do século XX, com a discussão sobre os limites da arte e da arquitetura e como deve haver uma integração entre as duas práticas, estamos meio que perdendo isso. E o Brasil fez muito nesse sentido, sabe, vocês têm Brasília, uma cidade feita por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer junto à Athos Bulcão e Alfredo Volpi. Enfim, essa era uma prática modernista que ainda permanece hoje, mas os limites da integração alcançaram outro nível na segunda parte do século passado. Os artistas começaram a invadir as discussões dos arquitetos – Hal Foster diz que Richard Serra foi o grande arquiteto que tivemos. Foi a época da “arte pública”, quando murais e esculturas começaram a aparecer no meio da cidade. Além disso, o aspecto “público” estava sendo questionado e o “monumento” se tornou um objeto de interesse de muitos artistas, que passaram a desenvolver trabalhos que questionavam a exaltação de alguns símbolos  – Marta é uma delas.

[5] Marta sugeriu a derrubada do Obelisco de Buenos Aires. Você sugere que a reprodução da Estátua da Liberdade dissolve seu poderio. Pode nos contar sobre a diferença dessa ação?

Está claro, creio eu, que o trabalho não é a construção dos monumentos em si. Não é um trabalho plástico… A intervenção abrange muito mais do que isso. Os monumentos são instrumentos, símbolos apropriados com a intenção de gerar um impacto que se difere da imagem carregada por ele. Me parece que a população está consciente disso, muitos acham graça, ao mesmo tempo em que compram a proposta… curiosamente, não parecem se incomodar com o peso que a intervenção tem no espaço público.

[6] Você está feliz com os resultados da sua intervenção?

Muito feliz! Estou também muito surpresa, não poderia esperar tanto sucesso! Temos mais de 70 estátuas no Brasil agora. As estátuas marcaram a paisagem brasileira, especialmente porque muitas estão instaladas próximo a rodovias, onde há espaço para avistá-las.

A Estátua da Liberdade está, de certa forma, se tornando um símbolo lá. É curioso… Quero dizer, é clara a confluência com as forças e crenças norte-americanas… as pessoas se identificam com esses ideais. E não é só isso. Talvez muitos não parem para pensar no que ela significa, e isso é outro experimento (risos).

[6] Patricia, para encerrar. Você tem algum comentário a fazer em relação a depredação de algumas das estátuas?

Vibrei com o incêndio! Peço desculpas a Hang por isso… Não há como negar o sucesso do trabalho. Me interessa o alcance público da intervenção. É incrível a dimensão que tomou, a ponto de tornar-se um tema de disputa.

Como comentei, o trabalho atingiu seu objetivo… Há os que desgostam, os que gostam e os que não se importam – o que revela também um posicionamento. Agora… aos que depredaram as estátuas, uma provocação: não entendo porque tanto ódio. Existe uma razão para que os brasileiros se identifiquem com ela. Esse é um tema que pode ser investigado por pesquisadores da cultura do seu país. Me resguardo ao meu papel de artista. Está claro que a indignação não se dirige a mim. Nem mesmo ao Hang, ou a loja… Se depredam um símbolo com o qual a população se identifica, é a eles mesmos que buscam atingir…

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1 Abaixo assinados têm convergido também num sentido oposto, com a intenção de evitar a instalação de estátuas, a exemplo do ocorrido na cidade de Canela-RS (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/estatua-da-liberdade-da-havan-e-pastiche-e-afronta-diz-arquiteto-agredido-por-luciano-hang-por-abaixo-assinado-em-canela-rs/).

2 Estátuas da Liberdade das lojas foram danificadas em diferentes cidades do Brasil. A Estátua da filial da Havan em Porto Velho (RO) foi incendiada; Hang ofereceu uma recompensa financeira de R$ 100 mil para quem compartilhasse informações sobre o criminoso.

3 A entrevista ocorreu virtualmente (Patrícia nunca esteve no Brasil). Foi feita em inglês e traduzida por mim para o português.