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Postado em 04/03/2024 - 5:52
Lo-fi e feminismo
Tobi Vail, baterista da Bikini Kill, banda precursora do Riot Grrrl, fala sobre a histórica turnê, e como elas estão usando esse momento de retomada para apoiar a luta pela Palestina Livre

Quando Kathleen Hanna era uma estudante de fotografia, ela passou a frequentar um grupo de apoio  a mulheres que vivenciaram situações de violência. Ali também era um espaço seguro para se debater as pautas de gênero. Paralelamente, Hanna frequentava a cena punk local, em Olympia, Washington, onde conheceu Tobi Vail por meio da Jigsaw Fanzine, uma autopublicação sobre a cena punk escrita sob a perspectiva de uma garota.  As duas trocavam textos de teóricas feministas e faziam circular esse conhecimento em fanzines, até que em 1990 convidaram a baixista Kathi Wilcox e o guitarrista Billy Karren [1] para formar a Bikini Kill. Em meio aos lançamentos dos singles e cassetes, elas continuaram suas autopublicações a fim de promover o movimento Revolution Girl Style Now, nome do álbum demo de 1991.

Tobi Vail durante show no Greek Theatre, em los Angeles, 2022 [Foto: Sophie Prettyman-Beauchamp / Marquee Marauders Club]
[1] Billy Karren saiu da banda e Sara Landeau assumiu a guitarra na turnê atual.
Capa da Jigsaw zine no. 4, do verão de 1991. [Foto: Arquivo do MoPOP Permanent Collection]

Aquele espaço seguro de trocas se amplificou e a Bikini Kill assumiu o risco do confronto. As letras das músicas, as diagramações das capas dos discos, das fanzines e dos cartazes, somadas à performance da banda ao vivo, subverteram ideias geralmente associadas às mulheres. Bikini Kill contestava o machismo na música, em especial na cena punk, quando isso não era recorrente e nem socialmente aceito. Suas letras denunciavam situações reais vividas por elas e por suas amigas e, assim, elas inventaram formas de resistir dentro da própria comunidade. Seus shows eram um chamado para outras garotas se organizarem de maneira estratégica. Aos poucos, essas mensagens que pareciam circular apenas em Olympia, uma cidade que hoje tem cerca de 55 mil habitantes, ganharam dezenas de países.

“I like fucking” (em português: Eu gosto de foder) é um exemplo. A música foi lançada no compilado The Singles, da Kill Rock Stars, em 1998. Nela, elas relatam como é viver em um mundo cheio de estupros, e perguntam: “Does that mean my body must always be a source of pain? (Isso significa que meu corpo deva ser sempre uma fonte de dor?), gritando como resposta: “Não, não, não!”. Alguns versos adiante, elas convocam outras companheiras: “What we need is action/strategy” (O que nós precisamos é de ação/estratégia) e, por fim, recorrem ao próprio desejo para dizer: “I believe in the radical possibilities of pleasure, babe” (Eu acredito nas possibilidades radicais de prazer, querida).

“NOSSO TRABALHO É TOCAR A MÚSICA E FAZER COM QUE AS PESSOAS VENHAM. MAS O QUE QUEREMOS É QUE UMA FEMINISTA DA PALESTINA TENHA UMA PLATÉIA COM INGRESSOS COMPLETAMENTE ESGOTADOS E QUE ESSE PÚBLICO, QUE TALVEZ NÃO SAIBA NADA SOBRE ISSO, ESTEJA LÁ PARA OUVIR O QUE ELA TEM A DIZER”


A linguagem
riot contorceu o valor depreciativo de palavras como slut (vadia) e dyke (sapatão), que muitas vezes eram usadas para adjetivar garotas que queriam experimentar o sexo e o corpo quebrando as barreiras de gênero. Para isso, elas incitaram um ativismo feminista afirmado pelo grito “grrrlpower, sendo que os três erres soam como um rosnado raivoso.

Com o passar dos anos, essas e outras pautas feministas, brancas e cisgênero foram sendo pasteurizadas pela absorção da indústria do entretenimento, incluindo a da música pop. Em 1997, a Bikini Kill acabou e suas integrantes seguiram em outros projetos, como Le Tigre, Julie Ruin, Girlsperm, Frumpies, The Casual Dots, entre outros. E mais recentemente, de 2019  em diante, a banda vem realizando shows que marcam uma turnê de retomada. Esse reencontro histórico passa por lugares onde nunca tinham se apresentado, como o Brasil, onde dois shows estão marcados nos dias 5 e 14 de março, na Audio, em São Paulo.

Na entrevista a seguir, Tobi Vail, que se afirma como feminista interseccional, comenta o impacto do movimento Riot Grrrl nas pautas de gênero, fala sobre o uso da banda como ferramenta para amplificar outras lutas e diz que a alternância das quatro integrantes no palco, que se revezam com seus instrumentos, é uma posição política contra a exigência do profissionalismo na arte. A baterista também elabora sobre o que seria uma produção punk rock e “faça-você-mesma” com as tecnologias que temos hoje.

Carime Elmor: O movimento Riot Grrrl alterou o debate sobre gênero nos anos 1990 e abriu caminhos para bandas de garotas se colocarem à frente na história da música. Três décadas depois, tendo em mente toda a revolução propiciada por bandas como Bikini Kill, como você observa as contribuições do movimento Riot Grrrl no debate de gênero atual, que é muito mais interseccional, decolonial e plural?

Tobi Vail: Nós começamos dentro de uma comunidade muito pequena de músicos punk, basicamente formada por pessoas que conhecíamos em nossa cidade e, talvez, algumas que queríamos conhecer e que moravam em cidades diferentes. Então, acho que a contribuição inicial que nós, através da Bikini Kill, tivemos foi a de começar a discussão sobre sexismo na música e criar uma comunidade de mulheres feministas que queriam mudar a cultura dentro da música. Obviamente, ao longo dos anos e por meio da mídia e de tudo o que aconteceu, isso teve um impacto muito amplo. Mas é difícil avaliar, porque, na verdade, nós não tivemos a experiência disso no mundo todo. Nós apenas experimentamos isso com a nossa banda. Então é difícil falar sobre isso especificamente. Eu acho que hoje as coisas estão muito melhores na cena punk, na minha comunidade local e em muitos outros lugares, as coisas estão mais inclusivas. Falando do feminismo hoje, há mais consciência da importância da interseccionalidade, há mais questionamento sobre gênero binário e sobre qual é o papel do feminismo nisso. Tudo isso é muito positivo.

A Bikini Kill sempre foi uma banda com pautas políticas bem marcadas em suas atitudes e letras. Além do mais, o punk sempre foi anticolonialista e anti-fascista, certo? Recentemente vocês fizeram um show beneficente para um fundo de ajuda às crianças da Palestina. Como você se sente podendo usar a sua arte para contribuir com uma pauta humanitária tão urgente?

Para mim tem sido horrível observar o que está acontecendo. Fui a uma manifestação e a uma vigília pró-Palestina aqui mesmo nessa rua e comecei a conversar com pessoas daquele grupo. Até que encontrei Therese Saliba, uma escritora feminista árabe-estadunidense que foi minha professora quando voltei para a faculdade. E ela disse: “Ei, e se a Bikini Kill fizesse um show beneficente para o Palestine Children’s Relief Fund (PCRF; Fundo de Ajuda às Crianças da Palestina)?”. Eu estava tipo: “Therese, isso não vai acontecer. Nós não moramos aqui. Eu sou a única [da banda] que mora aqui, você sabe”. Então ela disse:  “Bem, vamos conversar com The Rachel Corrie Foundation, vamos falar com a Jewish Voice for Peace, vamos conversar com o Coletivo Feminista Palestino”. E juntos fizemos acontecer. Arrecadamos cerca de 18 mil dólares, o que é incrível. Isso ocorreu muito rapidamente. 

A melhor parte foi que Selma Al-Aswad veio de Seattle para falar. Ela está envolvida no Coletivo Feminista Palestino e falou durante 20 minutos para um público que estava lá para ver um show de rock, certo? Então tivemos um discurso político e pensamos: Na verdade, nós [da banda] não precisamos falar nada. Nosso trabalho é tocar a música e fazer com que as pessoas venham. Mas o que queremos é que uma feminista da Palestina tenha uma platéia com ingressos completamente esgotados e que esse público, que talvez não saiba nada sobre isso, esteja lá para ouvir o que ela tem a dizer. Porque nos Estados Unidos as pessoas não são muito bem informadas sobre a política global. E havia muitos jovens no local que deviam estar pensando: “Onde está a Palestina no mapa?”. Eles podem nem saber. Foi muito bom ter a oportunidade de fazer isso. Estive conversando com a Selma e ela vai — talvez seja muito cedo para dizer —, mas ela vai publicar o discurso que ela fez no show em uma zine. Então isso será documentado e esperamos que também possamos colocá-lo no YouTube, porque ela é realmente brilhante.

 

Poster de show beneficente da Bikini Kill, em 1992, no Teatro Santuário, em Columbia [Foto: Positive Force DC / Reprodução]

Vocês estão trabalhando em um novo álbum ou single para lançar depois da turnê?

Bem, não temos planos de lançar nada. Basicamente a banda se separou em 1997, 1998, e então fizemos uma música juntas em 2017. Tínhamos planejado fazer uma turnê mundial em 2020 e isso foi adiado por causa da pandemia. Depois, então, nós fizemos e finalizamos entre 2022 e 2023. Mas depois decidimos fazer mais, então estamos fazendo mais! Mas a questão é que não moramos perto uma da outra. Nós três vivemos em cidades completamente diferentes, estamos em todo o território dos Estados Unidos, o mais distante uma da outra que é possível imaginar.

Então o tempo que passamos juntas não é… não temos muito tempo juntas para fazer músicas novas ou algo assim. Se fôssemos fazer isso, levaríamos algum tempo. Mas, sim, estamos fazendo essa turnê e vai ser divertido. Iremos à Califórnia para ensaiar e depois vamos para a Cidade do México e então seguiremos nosso caminho.

Kathleen Hanna dançando durante show da Bikini Kill em 1992 [Foto: Lisa Davis / The Portal to Texas History]

Como a performance, vocal e corporal, contribui para passar a mensagem das músicas da Bikini Kill?

Uma coisa que sempre fizemos foi mudar de instrumento. Não sei se as pessoas percebem isso. Kathleen é a vocalista, Kathi é a baixista, Billy tocava guitarra e agora não está mais com a gente, mas Sara Landeau assumiu. Esse é o line-up. Mas nós vamos mudando. Às vezes eu canto e Kathi toca bateria, ou Sara toca bateria, ou eu toco baixo, ou Kathleen toca baixo e fazemos isso por razões políticas desde o início. Em parte porque pensamos: “E se apenas trocarmos de instrumento?”. Com isso, mostramos ao público que você pode fazer música mesmo quando não é um profissional especialista nisso. Tipo, eu não sei cantar. Eu ainda não sei cantar, mas consigo cantar bem o suficiente para transmitir uma ideia. É um pouco caótico e, você sabe, isso é punk rock. Kathleen, por outro lado, poderia cantar em um musical da Broadway. Ela realmente tem uma voz e ela praticou o canto. Então isso é uma coisa diferente. O que ela faz com a voz é muito poderoso. E quando eu estou cantando, eu fico tipo gritando, você pode querer tapar os ouvidos, talvez eu vá na nota errada. Mas isso realmente pode expressar algo de uma maneira diferente. Eu não sei. Eu venho de uma cena lo-fi muito punk rock aqui em Olympia, então é algo que eu sempre… desde os meus 14 anos era assim: “Ah, eu gosto muito dessa banda porque eles são músicos muito bons, mas essas outras pessoas não sabem tocar nada e também são muito bons”. Sabe? Espero que possamos fazer uma boa combinação.

Kathleen Hanna e Tobi Vail em show da Bikini Kill (1995); acima, camiseta da banda, onde está escrito “Menino branco, não ria, não chore, apenas morra” [Foto: Positive Force DC / Alice Wheeler ]

A forma que vocês encontraram para gravar nos anos 1990, usando poucos elementos e equipamentos, serviu para criar uma estética sonora para a banda bastante ruidosa e com baixa fidelidade. É perceptível a diferença de qualidade de produção entre a Bikini Kill e outras bandas de que boa parte das integrantes participaram, como The Julie Ruin e Le Tigre. Você considera que uma produção mais pop e rebuscada impacta na mensagem política passada pelas bandas, visto que o punk carrega o estigma de ser uma música sempre agressiva e lo-fi?

Esse é um bom ponto. Os discos do Le Tigre e do The Julie Ruin, sim, têm uma qualidade de produção diferente. Acho que o último disco da Bikini Kill, “Reject All American” também tem uma qualidade de produção muito alta. É mais um álbum pop, um álbum de estúdio, mas ainda é punk. Sim, acho que todos nós da Bikini Kill, desde o início, amamos música pop. Nos primeiros discos nós não tínhamos dinheiro. Não havia computador para gravar em alta qualidade, para se autogravar em alta qualidade. Nós apenas tivemos que fazer com o que tínhamos acesso e isso meio que virou a nossa estética. Tínhamos uma estética “bagunçada”, porque pensávamos: “Isso é apenas um documento de como nossa banda soa. Vamos compartilhar com as pessoas. Por que não?”.

Olympia parece ser uma cidade muito efervescente em nível cultural quando adentramos os universos da Bikini Kill e das gravadoras K Records e Kill Rock Stars. Muitas K7s com gravações demo estão disponíveis na internet e quando escutamos dá uma sensação muito pura do real sentido do “do-it-yourself”. São músicas sem filtro, registradas livre e espontaneamente. De que maneira esse ambiente cultural de Olympia impactou a Bikini Kill? E qual mensagem vocês passariam a quem quer começar a fazer música?

Nos anos 1990, quando estávamos começando, a gente não tinha dinheiro, mas tínhamos acesso às gravações em cassete, 4-tracks, talvez alguém aqui tivesse um reel-to-reel mais caro, uma máquina de fita. Isso era a que nós tínhamos acesso. E hoje em dia você deve usar aquilo a que tem acesso também. Eu não sei, às vezes é mais fácil gravar no computador ou pelo celular. Isso é totalmente ótimo. E você pode disponibilizar em um site e é isso o que você tem. Não precisa fazer uma fita cassete para vender pelos Correios e lidar com tudo isso. O DIY muda. Acho que é interessante, não é? Porque hoje em dia, em Olympia, ninguém tem dinheiro para viver aqui. Não é barato mais, nós enfrentamos uma crise imobiliária. Então o que estamos vendo é cada vez menos bandas tendo amplificadores altos e sets de bateria. Estamos vendo mais artistas solo, baterias eletrônicas, amplificadores com menos potência e guitarras mais processadas com o uso de pedais e coisas assim. E acho que isso tem relação com o mercado imobiliário. Sinceramente, assim, tudo sempre vai mudar ao longo da história e isso vai afetar a estética. Eu acho que realmente o ambiente em que você vive cria a estética que faz brilhar a verdade através da sua música.

Carime Elmor é jornalista especializada em escrita de não-ficção e mestranda em Artes Visuais na ECA/USP.

Referências:

COOKE, Marisa. How the Riot Grrrl Movement Scandalized America and Launched Third-Wave Feminism. Último acesso em 27 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://confluence.gallatin.nyu.edu/context/first-year-writing-seminar/revolution-girl-style-now-2

CORCORAN, Nina. Interview: Kathleen Hanna. Último acesso em 29 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://allstonpudding.com/interview-kathleen-hanna/

LEITE, Flávia Lucchesi de Carvalho. Riot Grrrl: capturas e metamorfoses de uma máquina de guerra. 2015. 321 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. Último acesso em 27 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/3669 

MARCUS, Sara. Girls to the Front: The True Story of the Riot Grrrl Revolution. Harper Perennial. Nova York, 2010. Ebook Kindle.

Outros: j i g s a w. Disponível em https://jigsawunderground.blogspot.com/