“Qual o som do famoso embate corpo/obra?”, pergunta Ricardo Basbaum, para meu absoluto espanto, seguido de uma suspensão de pensamentos. O eco surdo desse enigma na minha mente faz com que eu observe com outros olhos (e ouvidos) as estruturas e diagramas dispostos na galeria Marli Matsumoto, em São Paulo. Estamos na montagem da exposição O que É…?, que abre nesta terça, 13/8, e oferece algumas respostas à pergunta de Basbaum.
Voltaremos ao som dos embates. Falemos, antes, de efemérides. No ano em que se tenderia a comemorar (relendo criticamente) a mítica mostra coletiva no Parque Lage, Como Vai Você, Geração 80? (1984), ninguém está celebrando nem revisando a década de reabertura política, aquecimento do mercado de arte e “volta à pintura” no Brasil. Alguém ainda considera a década de 1980 nas artes brasileiras como a do “retorno à tela”?! Exceto por uma ou outra manifestação pontual sobre a celebração de 40 anos do evento, e sem maiores interpretações sobre o sentido disso, não se faz alarde da tal “geração 80” em 2024. Sintoma cultural?
O que É…? reúne obras realizadas entre 1984 e 2024. Aqui celebramos 40 anos de uma trajetória singular deste que é o poster boy do “artista de artistas”. Além das comemorações pelos 40 anos de um participante de Como Vai Você? — um que, exceção para confirmar a regra, não expôs pinturas na mostra —, aqui também se celebram 30 anos de um objeto de arte singular, o NBP. O que é o NBP? É uma ação artística que consiste em receber e hospedar, por um determinado período de tempo, uma escultura relacional (ou seja, que convida a estabelecer com ela relações). Ação, relação, instauração, proposição, provocação. NBP – Novas Bases para a Personalidade (1990) começou a circular como objeto em 1994, daí a segunda efeméride que a exposição na Marli Matsumoto representa.
Corta para 2001. Uma jovem curadora visita dezenas de ateliês em São Paulo para realizar o mapeamento regional do programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais. Percebe que vários artistas da cidade acabam de fazer, estão realizando ou pretendem experimentar suas ações artísticas sobre a ação artística de Ricardo Basbaum. À época, a jovem não conhecia RB, portanto fixa na memória a sigla NBP, o nome enigmático (Novas Bases para a Personalidade) atribuído àquele recipiente, meio banheira, meio vaso, que tantos artistas estão às voltas com encher, soterrar, destruir, doar. Eu sou aquela jovem. Conheci o NBP antes de saber da existência de seu autor. Considerei, no início da minha trajetória, a proposição mais disruptiva das artes naquele momento.
As experiências vividas e compartilhadas com o NBP hoje somam 190, segundo Basbaum, referindo-se às que foram documentadas. “É um projeto longo, que organizo em fases”, conta o artista. A primeira, nos anos 1990, consiste no período em que RB precisava difundir a proposta. “Eu tinha de produzir interesse no início; a segunda fase é o período em que o objeto circulava sem que eu precisasse desempenhar esse papel”, explica. A fase 3 corresponde a uma mudança de escala, que acontece quando Basbaum participa da documenta de Kassel em 2007, ocasião em que são produzidas 20 unidades da peça, aumentando sua circulação. A fase mais recente, de número 5, diz respeito às negociações com um museu que propõe adquirir a obra: “A natureza de circulação do trabalho determina que não possa pertencer a uma instituição”, explica. Cada nova fase gera novos elementos no diagrama que mapeia as relações entre artista, público e participantes.
Os diagramas plotados em paredes da exposição permitem desvendar parte dos conceitos envolvidos nesse épico da arte conceitual que é NBP – Novas Bases para a Personalidade, e a outra entrada privilegiada para a obra são suas sonoridades. Das palavras desenhadas nas paredes, que produzem sons mentalmente, às palavras performadas em Conversas Coletivas, orquestrações roteirizadas de vozes, a oralidade é uma chave de acesso à pesquisa de Ricardo Basbaum. “O NBP é uma estrutura mnemônica. Interessava naquele momento pós anos 1980 inscrever o trabalho em outro registro de memória, que circulasse como um vírus no corpo, contaminando outro corpo, e a oralidade me parecia a melhor estratégia, que é a estratégia da música popular, de seus refrões – o refrão é muito importante na minha trajetória”, reflete.
Os refrões das novas bases para a personalidade são o som do embate do meu corpo com a obra de Ricardo Basbaum.