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Suspenso (2022), de Jarbas Lopes, instalação site specific realizada com a comunidade ribeirinha local
Postado em 24/06/2022 - 2:49
Meia-noite no mundo inteiro
Curadoria de Elfi Turpin e Filipa Oliveira da Bienal Anozero pontua metamorfose e transmutação globais

Para promover uma reflexão sobre o significado simbólico e efetivo de ser uma localidade detentora da classificação de Patrimônio Mundial da Humanidade, o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra propôs, em 2015, a iniciativa de colocar em confronto arte contemporânea e patrimônio, por meio do programa de ações intitulado Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra.

No circuito mundial de bienais e de grandes exposições internacionais, Anozero é o único evento concebido, coordenado e organizado por profissionais ligados a uma academia, por ser uma associação preparada em conjunto entre a Universidade e a Câmara Municipal. Porém, sua singularidade e relevância se expandem para além das questões acadêmicas. O ambiente central escolhido para sua realização, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, propicia circunstâncias e condições para embates e discussões de bastante interesse no âmbito da arte contemporânea, que ultrapassam a reflexão sobre um contexto local e de patrimônio.

A cidade de Coimbra, antiga capital do país, até 1255, situada nas colinas que formam o vale do Rio Mondego, região central de Portugal, abriga a universidade que é a mais antiga da Península Ibérica. Fundada em 1290 e instalada definitivamente no Paço Real da Alcáçova em 1597, hoje chamado de Paço das Escolas, a Universidade de Coimbra ocupa três polos formados por oito faculdades, 18 museus e um Jardim Botânico. É considerada a universidade mais cosmopolita de Portugal e foi declarada Patrimônio Mundial pela Unesco em 2013.

O Paço das Escolas, centro da atividade acadêmica da cidade, ponto mais alto da colina nas margens direitas do rio, abriga diversos edifícios. Entre eles a Casa da Livraria, biblioteca que é o tesouro da universidade, construída em 1728, patrocinada por D. João V, e que hoje é chamada de Biblioteca Joanina, em homenagem ao seu patrono.

Emblematicamente, a Biblioteca Joanina foi erigida para exaltar a riqueza do Império e pretendia ostentar o poder do domínio colonial e a posse do conhecimento, combinando uma coleção de livros raros, das melhores edições da Europa, com a arquitetura esplendorosa do estilo barroco, utilizando materiais exóticos e ouro provenientes do Brasil.

No outro lado do rio, na margem esquerda do Mondego, situa-se o Convento de Santa Clara-a-Nova. Os habitantes de Coimbra apelidaram esta zona da cidade de “Japão”, jocosamente referindo-se à oposição da região, concreta e simbólica, em relação ao Paço das Escolas e o centro da cidade.

Os primeiros edifícios construídos para abrigar o Mosteiro de Santa Clara foram patrocinados pela rainha Isabel de Aragão, em 1330, para substituir um pequeno convento de monjas fundado em 1286 à beira do rio. As frequentes inundações tornaram as habitações insustentáveis e, em 1677, o rei D. João IV patrocinou a construção de um novo edifício sobre a colina, a salvo de enchentes. As novas instalações da ordem religiosa — cuja igreja abriga os restos mortais da rainha e é dedicada a ela — passaram a ser chamadas de Mosteiro de Santa Clara-a-Nova.

No século 19, as tropas napoleônicas ocuparam parte dos edifícios monásticos e, finalmente, com o decreto de extinção das Ordens Religiosas em Portugal e a morte da última freira, em 1886, o Mosteiro passa a ser ocupado pelo Ministério da Guerra, que instala ali alguns serviços militares, em 1910. Chama atenção que, depois de 200 anos de ocupação exclusivamente feminina, o ambiente religioso passe, pelos cem anos seguintes, a ser de uso masculino e militar.

No fim dos anos 1990, início dos 2000, o Mosteiro começou a ser restaurado, mas seguiu abandonado até que, em 2015, o Círculo de Artes Plásticas conseguiu autorização municipal para abrigar no local a primeira edição da Bienal de Coimbra. Desde então, os belos edifícios que compõem o conjunto monástico, seus ambientes internos azulejados e os jardins, recebem obras de arte contemporânea e são abertos ao público a cada dois anos.

No momento atual, pressionado pela especulação imobiliária que o mercado global está exercendo no país, o Estado Português pretende ceder o lugar, uma área que abrange cerca de 13 mil metros quadrados, para que a iniciativa privada transforme o espaço em um hotel de luxo. A bienal entende a importância da valorização e da expansão imobiliária para a cidade e região, porém trabalha, com dificuldades, para a manutenção do patrimônio cultural universal, e precisa conseguir aprovação, financiamento e patrocínio para a continuidade das ações do Anozero – Bienal de Coimbra, no sentido de manter e preservar os edifícios históricos e de valor artístico como espaços públicos de Arte, para que não sejam eles, mas o seu entorno, a ser cedidos para empreendimentos privados de construção de um hotel.

A quinta edição da Bienal de Coimbra, inaugurada em 9/4, com encerramento em 26/6, é intitulada Meia-Noite e propõe que a noite seja considerada um espaço-tempo fluido e aberto à transformação, metamorfose e transmutação. A centelha ativadora desse pensamento noturno é o fato de que a Biblioteca Joanina abriga uma pequena colônia de morcegos, que encontraram ali as condições ideais para a sua sobrevivência. No silêncio da noite, os morcegos têm liberdade ilimitada para sair de seus esconderijos e se alimentar dos insetos e lagartas presentes nos quase 55 mil livros, ajudando na conservação do espólio. Na concepção crítica das curadoras Elfi Turpin (França) e Filipa Oliveira (Portugal), a noite é sugerida como espaço de experimentação de dimensões sensoriais, espirituais, ritualísticas, transgressivas, sexuais e oníricas. Também é considerada território de liberdade, audácia, quebra de normas, metamorfose e resistência, aberto a outras possibilidades de visão e interação. A meia-noite é considerada proposição política, metafísica e vivencial.

FANTASMAS E POEMAS
A mostra estende-se por vários locais espalhados pela cidade, porém o núcleo central da exposição está no Mosteiro de Santa Clara, cuja história está profundamente ligada ao rio, ao misticismo, à vida monástica feminina e militar masculina. No Mosteiro, os fantasmas e seres que existem no local coabitam com as obras. Os 42 artistas e as obras selecionadas pelas curadoras pretendem provocar o espectador e levá-lo a se libertar das narrativas e do dualismo do pensamento moderno, que geram fraturas sociais e discriminações.

Na escuridão, onde tudo se confunde, alguns artistas funcionam como faróis. Nenhuma novidade, esse é mesmo o mecanismo da Arte. O interessante aqui é a singularidade do ambiente e os confrontos possibilitados entre as circunstâncias e as obras.

Estudo para a pintura de Santo António (1902), de Aurélia de Souza

A pintora luso-chilena Aurélia de Souza, conhecida em Portugal por pintar cenas domésticas, foi pioneira no questionamento de gênero, já que em seu tempo artistas mulheres eram muito pouco reconhecidas. A sua célebre pintura Santo António (1902) é, na verdade, um autorretrato. A fotografia que serviu de estudo para a pintura, uma imagem em preto e branco da artista travestida em santo, está colocada logo na entrada da mostra, e também espalhada em diversos cantos do Mosteiro, como se fosse um fantasma que habita os cômodos e nos acompanha no percurso.

Logo em seguida à fotografia da entrada, no longo corredor central que corta toda a edificação, cuja largura é a mesma do rio, está instalada a obra I Would Like to Live Asleep within the Sweet Noise of Life (Gostaria de Viver Adormecido no Interior do Doce Ruído da Vida, em tradução livre), de 2022, da italiana Elisabetta Benassi. O trabalho é composto de dois holofotes colocados sobre tripés, cada um situado num extremo do corredor, que acendem intermitentemente, um em resposta ao outro, alternando luz e escuridão, comunicando entre si um diálogo amoroso em código Morse, num texto criado pela artista a partir de um poema do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. A comunicação invisível funciona como um túnel do tempo, aproximando e presentificando todos os seres que habitaram e habitam aquele lugar.

No grande salão azulejado, que originalmente servia de refeitório, a francesa Julie Bená instalou a obra Miles (2021), composta de uma série de esculturas de metal e três filmes, uma trilogia sobre o corpo em que a artista encena diálogos que criticam o sexismo e a exaltação fálica praticados no mundo da arte. As esculturas representam cavalos, pedras, uma árvore morta, uma carruagem, que desenham uma paisagem espectral e queimada em contraponto ao ambiente ao redor. Seni Awa Camara, artista senegalesa revelada ao mundo ocidental na pioneira exposição Les Magiciens de la Terre, em 1989, apresenta uma série de figuras esculpidas em terracota representando seres fantásticos que evocam uma dimensão de maternidade e uma noção de família. Algumas das figuras são autorretratos em que ela se representa grávida ou cercada de crianças, como uma forma de exorcizar a impossibilidade de ter filhos.

Escultura em terracota Sem Título (2017), de Seni Awa Camara

O brasileiro Jarbas Lopes passou 20 dias trabalhando com a comunidade ribeirinha local, a convite do Anozero, que resultou em Suspenso (2022), escultura de uma fogueira suspensa por uma grande rede. A fogueira é um objeto de profundo simbolismo, motivo de contemplação e referência ao momento primordial da invenção do fogo — a primeira tecnologia dominada pelo Homem. Aqui, a fogueira suspensa funciona como reflexão acerca do tempo presente, da busca pelo progresso desenfreado e pelo controle das tecnologias, as consequentes feridas do mundo e a pandemia. A ativação do trabalho está ainda em processo, com a ação do programa educativo, que incentiva os jovens visitantes a fazer intervenções em carvão sobre o piso.

DESTERRO
O português Carlos Bunga apresenta duas obras. Na primeira, o artista registra em vídeo o depoimento de sua mãe sobre sua saída violenta e traumática de Angola. O outro trabalho está instalado na cisterna do Mosteiro e só se pode ver do alto. Através de uma pequena porta, iluminados por um feixe de luz na escuridão do salão vazio, como num porão de navio, vê-se lá embaixo um conjunto de diversos móveis revirados e destruídos, símbolos do desterro e do afundamento de todos os sustentos. Os dois trabalhos são bastante impactantes.

Vídeo de Carlos Bunga

De modo geral, o espaço é protagonista em todas as edições da Bienal de Coimbra. Mas, definitivamente, o que chama atenção nesta quinta edição do evento é o alinhamento propositivo da mostra Meia-Noite com o enunciado Faz Escuro Mas Eu Canto, verso ativador da 34a Bienal de São Paulo, e também com a mostra Traverser la Nuit (com curadoria de Noelig Le Roux, em cartaz no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa (Maat), que sugere a ideia de um percurso noturno que compreende o crepúsculo até o amanhecer através de uma seleção de obras de artistas importantes de diversos momentos da história da arte dos séculos 20 e 21. As três mostras reivindicam a necessidade da arte como um campo de resistência, ruptura e transformação, enfatizando a necessidade de ultrapassar o medo que a escuridão da noite traz, e apostar na arte como território de imaginação, inventividade e inovação, tão necessárias em tempos em que o aprofundamento das crises ambientais, sociais, econômicas e políticas torna os dias cada vez mais sombrios.