Luisa Strina conta como construiu uma das maiores e melhores galerias de arte contemporânea do Brasil, que completa 40 anos em 2014, e diz que o gosto no País ainda é muito conservador
Legenda: Fotos: Bob Wolfenson
Ela poderia ser apenas uma dondoca, como pensou Cildo Meireles no dia em que a conheceu, em 1976. Cildo tomou um longuíssimo chá de cadeira e até assistiu a moça tricotar, antes de sair frustrado da galeria aberta dois anos antes na sobreloja de uma esquina das ruas Padre João Manoel e Oscar Freire, nos Jardins, onde antes havia sido ateliê do pintor Luiz Paulo Baravelli. Cildo não sabia, mas o tricô era uma válvula de escape de Luisa Strina, que temia ser sequestrada por ele. O dia estava agitado para ela, que tinha se esquecido do visitante que estava ali por recomendação do marchand carioca Paulo Bittencourt, interessado em expor em São Paulo.
Cildo é hoje um dos 40 artistas da galeria, assim como Antoni Muntadas, Jorge Macchi, Olafur Eliasson e Renata Lucas, entre muitos outros. Trabalham juntos há 32 anos. “Com Luisa nunca assinei documento. Nossos acordos são sempre de boca, cumpridos rigorosamente”, elogia ele, que é um dos artistas mais reputados do País. Quando Cildo quer falar com ela, liga para a galeria e pergunta se Luisa está “calabresa ou milanesa”, numa referência à origem italiana de seus pais. Se a resposta for “calabresa”, ele deixa a conversa para depois.
Profissional intuitiva, tem fama de sangue-quente e não é raro que levante a voz. A idade, porém, parece temperar Luisa. Reconhecida como uma das mais importantes galeristas de arte contemporânea do País, está com a agenda repleta de viagens, que documenta pelo Instagram, e prepara a programação dos 40 anos de atividade que completa no ano que vem. Nesta entrevista, ela relembra erros e acertos em suas compras, conta que desistiu de ser artista porque mais copiava do que criava, que chegou a presentear amigos no Natal com trabalhos de Mira Schendel antes de sua incrível valorização, e que, se fosse mais jovem, entraria no mercado de Hong Kong.
Foi por estímulo de seus professores de arte na Escola Brasil que abriu a galeria. Os primeiros artistas com quem trabalhou foram justamente seus professores: Baravelli, Carlos Fajardo e Wesley Duke Lee, com quem foi casada. Dona de uma coleção expressiva de cerca de mil obras – ela tem cerca de 40 trabalhos de Cildo Meireles emprestados para uma exposição em itinerância internacional, e sete obras de Mira Schendel emprestadas para a individual da artista na Tate Modern –, Luisa Strina foi uma das principais agentes da profissionalização e da internacionalização do mercado de arte e viu o cenário artístico brasileiro mudar radicalmente.
As comemorações dos 40 anos de galeria começam em 17 de dezembro próximo, com a coletiva Secret Codes, com curadoria do espanhol Agustin Pérez Rubio, e terminam em dezembro do ano que vem, com curadoria de sua sobrinha, Fernanda Arruda.
seLecT: Você queria ser artista, estudou na Fundação Armando Álvares Penteado e depois na Escola Brasil. Como descobriu que não era uma artista? Não pensar em voltar a fazer arte?
Luisa Strina: Eu mais copiava os outros do que fazia uma coisa pessoal. Eu fotografo, mas não faço arte. Sou cúmplice dos artistas. Faço um trabalho com o Alexandre da Cunha, dos bordados em sacas de café e arroz. Juntos nós definimos o que será bordado, e eu bordo. Nós assinamos juntos. Esse é um trabalho que questiona os nossos papéis e discute o mercado. O que eu sou? Sou o vendedor, sou o artesão, sou o artista?
seLecT: Qual é a sua parte na venda dessa obra?
LS: Eu ganho mais que ele, porque ganho como galerista e como artesã (ao galerista cabem 50% da venda).
seLecT: Começou como colecionadora antes de abrir a galeria?
LS: Sim, eu tinha 16 ou 17 anos. Fui a um leilão do Bacaro e comprei uma gravura do Livio Abramo. Veio um galerista, que já morreu, e disse: “Você fez uma péssima compra. Você pagou caríssimo”. Daí, quando fui trocar a moldura, o moldureiro rasgou a obra e adulterou a assinatura. Foi um desastre. Era para nunca mais comprar nada.
seLecT: Qual é, hoje, o tamanho e o foco da sua coleção?
LS: Acho que tenho cerca de mil obras. Comecei só com artistas brasileiros. Naquela época, nem se pensava em ter obras estrangeiras, porque nada entrava ou saía do País. Com o tempo, comecei a comprar internacionais, mas sempre tive interesse em obras que tenham uma relação com o Brasil ou com a arte brasileira. Por exemplo, tenho uma obra do Damián Ortega que representa uma favela do Rio.
seLecT: A coleção é toda de arte contemporânea?
LS: Algumas das peças brasileiras mais antigas que tenho são de Lygia Pape e Hélio Oiticica, dos anos 1960. Mas tenho estrangeiros mais antigos: Boetti, Man Ray, tenho quatro gravuras maravilhosas de Duchamp. Mas a coleção tem de ser renovada sempre. O que eu penso hoje não é o que eu pensava quando tinha 16 anos. Então me renovo. A última obra que comprei foi da Doris Salcedo.
seLecT: Tem algum plano futuro para a coleção?
LS: Pensei em ter uma instituição, mas não tenho dinheiro para bancar.
seLecT: Como você escolhe os artistas com os quais trabalha?
LS: Hoje tenho 40 artistas, o que é uma loucura. Todos têm de ter um viés conceitual.
seLecT: Você foi uma das primeiras pessoas no mercado de arte brasileiro a expor em feiras internacionais. Como foi?
LS: O Thomas Cohn já fazia. Fui pela primeira vez a uma feira quando o galerista João Sattamini me chamou, porque o Ludwig estava no Brasil e queria conversar com a gente. Ele contou a seguinte história: tinha ido a Brasília falar com o presidente Sarney, porque queria fazer um museu em Brasília com arte brasileira. Ele queria comprar US$ 5 milhões em arte brasileira. Ou seja, com esse dinheiro, em 1987, ele compraria toda a arte brasileira e mais alguma coisa. Mas precisava de uma terra para fazer o museu. O museu deveria se chamar Ludwig, que é o que ele faz no mundo inteiro. Mas o Sarney disse que aquilo seria uma invasão alemã. Ele ficou furioso, veio pra cá e disse que queria comprar arte brasileira conosco, mas teríamos de ir para a feira de Colônia. E nós fomos, em 1989. Eu, João Sattamini, Thomas Cohn, um pool de galerias brasileiras. Ele comprou uma coisa ou outra lá. Naquela feira, apareceu a diretora da feira de Basel e me convidou para ir no ano seguinte para a Suíça. Depois comecei a fazer feiras na América Latina: Argentina, México (Guadalajara). A feira de Miami ainda não existia.
seLecT: A feira é fundamental para a galeria?
LS: Para o faturamento não, mas sim para mostrar para curadores, galerias internacionais, museus. Em Basel, demorou para eu começar a vender. Em 1989, o mercado de arte estava em sua maior alta. Em 1990, ele despencou. Até 1993, em Basel, ficávamos vendo futebol na televisão. Nesse período não se vendia nada, nada, nada. O mercado só voltou a aquecer em 1995, 1996.
seLecT: E não caiu mais? E agora, o mercado dá sinais de estagnação?
LS: Não, absolutamente. Em 2008, quando tivemos a outra crise, alguns jornalistas diziam que seria o caos, que ninguém venderia mais nada. Mas o mercado estourou. Com essa subida do dólar, obviamente o crescimento deu uma parada no Brasil, mas continuamos vendendo. Em tempo de crise, a arte é um ativo. Se os juros estão baixos, opta-se por outro investimento.
seLecT: Muitos clientes estão fora do Brasil?
LS: Meus clientes maiores são estrangeiros. Com a alta do dólar, a arte ficou cara para os brasileiros, porque os preços são fixados em dólar. Mas para os estrangeiros nada mudou.
seLecT: O que move os novos colecionadores?
LS: Com a explosão do mercado, todo mundo quer comprar um artista e torcer para ele virar uma Adriana Varejão ou uma Beatriz Milhazes. Mas eu sempre digo que o Brasil esteve 50 anos atrasado. E continua. Mas agora arte virou moda. Os museus estão lotados. No domingo, você não consegue entrar na Pinacoteca. Houve um aumento expressivo do interesse por arte no Brasil. Isso é um ponto pacífico.
seLecT: Então como esse atraso se manifesta?
LS: Aqui há um gosto ainda muito conservador. Eu faço uma exposição como a de Eduardo Basualdo e vendo para fora. Mas está melhorando. Tenho poucos e ótimos colecionadores brasileiros.
seLecT: Alguns compradores reclamam que há galeristas arrogantes. Você escolhe comprador?
LS: Lógico. Se há um colecionador privado e um museu interessados pela mesma obra, eu vendo para o museu. É mais importante para o artista ficar dentro do museu, onde sua obra será mais vista.
seLecT: Ouvi de um galerista que para determinados compradores ele simplesmente não vende. Isso acontece com você?
LS: Pode até acontecer, mas é muito raro.
seLecT: E por que acontece?
LS: Porque ele vai colocar em leilão em seguida.
seLecT: Isso seria ruim?
LS: Sim, claro. Há galerias nos EUA que, ao comprar, você assina um papel se comprometendo a não colocar a obra em leilão por cinco anos. Poder leiloar incentiva a especulação. Tive um cliente que fez isso: vendeu no dia seguinte três vezes mais caro. Nunca mais vendi para ele.
seLecT: Você se sente responsável pela carreira dos artistas?
LS: Somos cúmplices do artista. O galerista é um estrategista, deve saber em que galeria vai colocar lá fora, quantas… Em geral, o que interessa é ter uma galeria nos EUA, uma na Europa e uma aqui. Mas há artistas que se deslumbram e querem ter três na Europa.
seLecT: É verdade que na primeira vez que o Cildo Meireles veio à sua galeria você desconfiou e chamou a polícia?
LS: Que história absurda. Quem inventou isso?
seLecT: É folclore?
LS: Teve uma história parecida. O Luiz Villares me ligou e disse: tem um artista jovem que eu quero que você conheça. Aí chegou aquele cara barbudo, com uma mala desse tamanho e sentou. Eu estava trabalhando com alguém, pedi para ele esperar, mas depois me esqueci dele. Ele era supertímido, ficou lá. Eu fiquei o dia inteiro atendendo outras pessoas. No fim do dia, ele sentou na minha frente, pegou uma revista e ficou lendo. Eu pensei: qual é a desse cara? Ele vai querer me sequestrar. Fiquei apavorada, mas foi só isso. Peguei até o tricô, de tão nervosa que eu estava. Quando foi dez para as oito ele perguntou: será que agora você pode ver meu trabalho? Aí comecei a tremer pela minha loucura: de ter esquecido dele e de quem ele era. Mas aí eu já estava tão nervosa que fiquei incapacitada de qualquer coisa. Foi um crescendo de ansiedade entre mim e ele. Pedi que ele voltasse outro dia. Sei que ele saiu dizendo que eu era louca.
seLecT: Com quem gostaria de trabalhar e ainda não trabalhou?
LS: Francis Alÿs, Bruce Nauman.
seLecT: Qual o seu artista preferido?
LS: O artista anônimo que construiu Veneza.
seLecT: Namorou muitos artistas?
LS: Nenhum (risos). Já imaginou a briga? Com o Wesley Duke Lee, com quem me casei, era uma briga louca. Não dá certo. Tive algumas tentativas, mas abortei na hora.
seLecT: Por que internacionalizar a galeria é prioritário?
LS: Porque o mercado é internacional.
seLecT: Há espaço para galerias estrangeiras no Brasil?
LS: A White Cube (galeria inglesa) está aí. Acho uma bobagem, quem compra arte internacional viaja para as feiras. Quase pensei no ano passado em abrir uma galeria em Berlim, tentei até. Mas estou velha para isso. Não vou também para a feira de Hong Kong, que acho que é um mercado que só vai começar a funcionar daqui a cinco ou dez anos, e é tarde para mim.
seLecT: Ser marchand é uma atividade lucrativa hoje?
LS: Depende. Não dou números. Mas eu vivo disso. Dá para viver bem. Eu também compro muita coisa. Comprei muitas peças do Cildo por US$ 5 mil e que estão asseguradas na exposição de Madri por vários milhões. Aliás, dois banqueiros brasileiros me falaram este mês que tiveram mais lucro com obras de arte do que com a atividade deles. E é verdade: nada dá tanto dinheiro quanto arte, se for bem escolhida.
seLecT: O galerista é responsável por fazer o preço?
LS: Juntamente com o artista.
seLecT: Um leilão pode ser um risco para o preço de um artista, caso a obra não seja vendida?
LS: Sempre acho que, naquele dia, o comprador não estava lá.
seLecT: Você iria a leilão recomprar um trabalho para não deixar o preço do artista cair?
LS: Depende, se tiver 20 trabalhos no leilão, não dá para segurar. Não dá para segurar obras de US$ 2 milhões ou US$ 3 milhões. O Cildo tinha uma peça que ia a leilão na Christie’s e eu sabia que várias pessoas queriam. Eu entrei. O que aconteceu? Ficou aquele silêncio, eu dei um lance e a moça falou: “É seu”. Dois meses depois, em uma feira, uma pessoa me disse que estava no avião indo para o Japão e não conseguiu telefonar, perdeu. Outro, de um museu, estava na Suíça. Três pessoas tentaram, mas, por um acaso, caiu para mim. Leilão às vezes é sorte. Achei que essa peça seria vendida por muito mais, achei que não conseguiria comprar. Outro dia, teve um Leonilson maravilhoso que estava em leilão e não foi vendido. Comprei no dia seguinte.
seLecT: Como você avalia a qualidade das feiras de arte no Brasil?
LS: Acho a SP-Arte muito boa, ela se profissionalizou bem. A ArtRio ainda tem um caminho pela frente, é novinha.
seLecT: Qual a melhor compra que já fez?
LS: A compra que eu não fiz foi a caixa de viagem de Duchamp, Boîte-en-valise, que custava US$ 3 mil e eu não comprei porque faltava uma pecinha…
seLecT: Já comprou obras falsas?
LS: Já. Comprei em uma feira no Rio uma aquarela da Maria Helena da Silva. Mandei para espólio da artista e a resposta foi assim: “Ou nós rasgamos a obra e mandamos picadinha para você, ou nós vamos à Corte”. Eu falei: “Corta, corta!”
seLecT: Curiosamente, o desfecho das comemorações dos 40 anos da galeria é com pintura, mídia que você não costuma trabalhar.
LS: A Fernanda (Arruda) vai fazer uma exposição de pintura. Não gosto de pintura. O que me dá prazer é uma exposição como essa (do conceitual Basualdo). Ter uma galeria tem de ser para valer. Ousar.
seLecT: Ousar é a sua diversão?
LS: É o meu hobby.