Foi somente diante da fachada da Casa Natura, em São Paulo, que me dei conta da coincidência de nomes entre o vocalista da banda que dentro de poucos minutos subiria ao palco para celebrar os 50 anos de seu disco mais emblemático – Ave Sangria – e o viajante que Italo Calvino escalara para protagonizar o livro Cidades Invisíveis: Marco Polo.
Me pus então a relembrar da noite anterior, da mulher que executava improváveis noturnos de Chopin no piano do hall do Hotel Mercure enquanto, por alguma razão, a televisão transmitia a imagem de ondas quebrando na praia. Uma colagem e tanto, pensei, e ainda não me ocorrera relacioná-la com os arquipélagos, as tundras e as cadeias de montanhas atravessados pelo herói veneziano, da mesma forma como não tinha percebido a correspondência entre o nome do hotel na rua Artur de Azevedo com aquele trecho da canção “Momento na Praça”, em que outro viajante, este nascido na Vila dos Comerciários, na periferia do Recife, diz: “E os violões brilharam sobre a noite/ enquanto as lâmpadas de mercúrio/ iluminaram a praça.” Eu tampouco poderia citar, naquele instante, os trechos deste velho exemplar das Cidades Invisíveis que releio e me tranquiliza em relação às coisas cujo sentido se revela apenas depois de vividas: “Aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado.”
Foi Ricardo, o atual produtor da banda, quem me tirou do transe. Ao seu lado, alto, bem vestido, usando um chapéu que lhe sombreava o rosto, estava Almir de Oliveira, que, tão logo nos cumprimentamos, pôs a mão em meu ombro e disse, em tom confidencial, que ainda que o hall do Mercure estivesse barulhento demais para realizarmos a entrevista, a atmosfera o remetia às tardes de sua juventude na Vila dos Comerciários, quando ele morava entre a casa de dois pianistas e os dias transcorriam junto às sonatas e aos cantos dos pássaros. Imaginei que essa experiência houvesse, pelo menos em parte, o influenciado a enveredar pelo caminho da música, e observei seus dedos compridos refletidos no espelho do elevador – os mesmos que, 50 anos antes, haviam tocado contra-baixo na gravação de um disco histórico. Décimo primeiro andar, décimo terceiro, décimo sétimo. Marco Polo estava nos esperando na porta do quarto.
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Quando fui convidado pela celeste para escrever um texto sobre os 50 anos do álbum de estreia da banda pernambucana Ave Sangria, que seriam celebrados em uma série de shows pelo país, busquei fazer minha parte e ler tudo quanto podia de artigos e entrevistas realizados ao longo deste meio século. Tirando o material impresso da época – organizado em um acervo acessível no site oficial da banda –, todos os textos que encontrei me pareceram restritos demais ao léxico da década de 1970. Os que não os taxavam de “Rolling Stones do agreste”, embora fossem da zona metropolitana, chamavam atenção para os cabelos compridos, as roupas coloridas e a aura de liberdade e rebeldia que irradiavam, reforçando o estereótipo da cultura hippie originado pelo flower power norte-americano mas que no Brasil clama por outra abordagem, considerando as duas décadas de verdadeiro terror instaurado pela ditadura militar na forma de perseguições, torturas e assassinatos de estudantes e artistas, entre outros vários grupos. É fato que o álbum de 1974, com a formação original da qual participa o guitarrista Paulo Rafael (1955-2021), está inscrito na tradição do rock psicodélico brasileiro ao lado de discos como Flaviola e o Bando do Sol, do grupo homônimo, e No Sub Reino dos Metazoários, de Marconi Notaro, clássicos indiscutíveis do gênero, mas que, hoje, soam muito mais datados do que a estreia do Ave Sangria. Já suspeitava que a vitalidade das canções da banda provinha de uma qualidade imprevisível das construções poéticas nas letras. Eu conseguia compreender, digamos, a musicalidade de arranjos que vão do honkey-tonkey ao samba de breque, passando por heavy-metal e baião, mas sem escala, sem graduação, com cortes secos, prefigurando a cultura sampler que apareceria anos mais tarde, também no Recife, sob a visão revolucionária de Chico Science – mas o que me inquietava era como Marco Polo fizera o que tinha feito, o que ele poderia ter lido ou consumido para construir um vocabulário tão explosivo.
Quem o viu na noite seguinte sobre o palco, vestindo uma capa de lantejoulas pretas com mangas de franjas compridas e ostentando seu sorriso fáustico, talvez não adivinhasse; talvez chegasse perto, citando João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira, autores incontornáveis na formação de qualquer poeta brasileiro, especialmente em Pernambuco, mas dificilmente iria tão longe e arriscaria a poderosa trinca que, sentado ao lado de Almir no sofá do quarto do hotel, Marco Polo me apresentou: Federico Garcia Lorca, T. S Eliot e Arthur Rimbaud. As caravanas ciganas, uma terra arrasada, rios que se abrem para um barco bêbado – fazia sentido.
Marco Polo sempre gostou de escrever, publicou diversos livros de poesia por editoras independentes e, não obstante, me disse que uma coisa era escrever poemas e outra, bem diferente, era escrever canções. Ainda que toda a bagagem literária estivesse presente na criação das letras, nelas prevalecia seu lado mais emocional. “Afinal”, falou, “era música popular brasileira o que nós estávamos fazendo.” Além disso, grande parte das músicas foi composta em conjunto, isto é, as letras iam surgindo à medida que melodia e harmonia também se revelavam, e aqui entra uma característica do Ave Sangria que, ao longo de toda a conversa, Almir, por natureza mais quieto – porque talvez tenha encontrado na musicalidade uma melhor forma de se expressar –, fez questão de reforçar: no início da década de 1970, eles, os músicos da banda, moravam juntos, o que significa que estavam tocando e trabalhando o tempo todo. A simbiose que haviam alcançado, o nível de entendimento não-verbal adquirido por aqueles que se comunicam por meio de seus instrumentos, era o que dava à banda o caráter catártico que permeava suas apresentações ao vivo. É difícil definir o que sinto quando escuto que, para eles, o disco de 1974 apenas se aproxima do que o Ave Sangria realmente era. Mas eu entendo: o disco foi gravado em seis dias e sofreu com as diversas imposições da gravadora Continental, como por exemplo a de que nenhuma música poderia ultrapassar os cinco minutos. A partir do que me falaram, consigo imaginar o desespero do produtor, tão acostumado à gravação de conjuntos tradicionais, ao ser confrontado com a verve vanguardista “daquele bando de aves sangrias.”
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Assim que entrei na Casa Natura, após todos os trâmites para pegar a credencial de imprensa, encontrei um conhecido que não via há bastante tempo. Ele é um pouco mais velho que eu e, enquanto esperávamos na fila para retirar nossas bebidas, me contou que conheceu a banda por meio de uma comunidade do Orkut cuja descrição continha um link para baixar o disco, que na época poucos sabiam do que se tratava. Não era para menos: após todos os esforços para realizar a gravação, em poucos meses o disco fora recolhido das lojas pelos censores, a quem não havia agradado nem um pouco a construção a um só tempo formal e obscena da canção “Seu Waldir”, que mesclava o vocativo “senhor” com frases provocativas do tipo “eu quero ser o seu brinquedo favorito/ seu apito/ sua camisa de cetim”. Vale dizer que os agentes da ditadura não foram os únicos a se ofender com a música: Marco Polo diz que, no meio de um show da banda na época, um conhecido seu saiu no meio da apresentação, revoltado, o acusando de ser um homossexual. Uma confusão curiosa, segundo ele, já que a letra havia sido encomendada por uma produção teatral e quem iria cantá-la seria uma atriz, ou seja, uma personagem feminina.
O disco foi recolhido das lojas e permaneceu esquecido durante 40 anos – nos quais eles não deixaram de trabalhar, atuando como músicos, produtores e artistas em diversos projetos, além de suas carreiras na engenharia (Almir) e no jornalismo (Marco Polo) –, até que, inesperadamente, foi redescoberto graças à internet por uma nova geração que encantou-se com a obra e tornou-se sequiosa de saber quem eram aquelas pessoas. Foi esse o contexto do retorno da banda, que, em uma dessas coincidências felizes, se deu em uma livraria no Recife, no auditório da Livraria Cultura que, para surpresa de todos, lotou de jovens fãs que sabiam todas as letras de cor, o que levou o espaço a convidá-los para uma nova apresentação, também esgotada, e, por fim, estruturou a plataforma ideal para que a banda pudesse alçar novos voos.
Alguns anos depois, em 2019, gravaram um novo disco, dessa vez em condições muito melhores e gozando de uma liberdade criativa apenas merecida. Vendavais, brincou Marco Polo, foi gravado a partir do desejo de fazer um segundo disco como se não fosse estranho haver um hiato de 45 anos em relação ao primeiro. Quando comentei a situação política do Brasil pós-eleições presidenciais de 2018, ele riu e disse: “Acho que é uma espécie de sina nossa. Tenho até medo de lançar o terceiro.”
Me pergunto se, na ocasião do show na livraria, quando os músicos se depararam, espantados, com a juventude que chegava para ocupar seus lugares no auditório, não haveria, por acaso, uma edição de Cidades Invisíveis exibida na vitrine. Caso houvesse, e, caso alguém, antes do início do show, resolvesse folheá-la, digamos, para matar o tempo, se depararia com as longas conversas entre Kublai Khan e Marco Polo sobre cidades, que, apesar de tudo, crescem com leveza.
AQUELE BANDO DE AVES SANGRIAS
É sabido que o primeiro nome da banda foi Tamarineira Village, uma brincadeira com o Greenwich Village, centro da contracultura nova-iorquina da década de 1960, e o Hospital da Tamarineira, equivalente ao Pinel carioca, localizado na zona norte do Recife. Igualmente, são muitas as lendas em torno da razão da mudança. Algumas versões dizem que o motivo foi mais uma entre tantas imposições da Continental e outras dizem que a ideia surgiu de uma cigana no interior da Paraíba, que, ao ver a caravana de músicos passando, começou a praguejar, chamando-os de “bando de aves sangrias”. A verdade, explicou Marco Polo, não poderia ser mais distante. Aconteceu em uma viagem que fez à Caruaru, cidade natal de sua namorada na época, durante um momento de ócio em que ele visualizou, de maneira cristalina, a imagem dos prédios cinzentos de São Paulo, cidade que sempre o fascinou e onde morou durante dois anos, sendo invadida por uma enorme ave vermelha. Pôs-se então a brincar com as palavras: Ave Sangrenta, Ave Sangrando, Ave Sagrada – Ave Sangria. Agradava-lhe, sobretudo, a qualidade herética do nome, sua ressonância com a oração de Ave Maria. Um provocador. Quanto à cigana da Paraíba, faz parte da mitologia pessoal da banda, criada, em grande parte, pela noção de que, às vezes, é preciso fazer uso da ficção para se alcançar a verdade do fato. Ao me ouvir dizendo que “ave sangria” é uma expressão utilizada para se referir a pessoas que seguem um caminho próprio, longe do bando, Marco Polo se limitou a sorrir, dizendo – são leituras. Leituras apenas.
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Uma última história. Só porque não consigo deixar de pensar no que deve ter sentido Marco Polo ao ver a quantidade de jovens que saíram de suas casas para ir ao show de 50 anos da banda na mesma cidade que anos antes o presenteara com a visão de uma ave vermelho-vivo rasgando a paisagem cinza e opressiva. Reparo na moça ao meu lado, uma garota de não mais de 20 anos que começa a chorar de emoção ao escutar os primeiros acordes de “O Pirata”, talvez a canção mais famosa do primeiro disco e a qual o próprio Almir me disse ter recorrido várias vezes ao longo das décadas, quando precisava de motivação para seguir em frente: “Eu não tenho todas essas ilusões/ e apesar de ter tantos corações/ minha guerra nunca, nunca vai ter fim”. Preferi calar, mas poderia tê-lo contado das tantas vezes que fiz o mesmo, das tantas vezes que escutei a essa música quando tudo parecia perdido, e como ela me ajudou. A canção prossegue e a garota ao meu lado canta junto: “Minha casa é o reino do mal/ o meu pai é um animal/ minha mãe há muito que enlouqueceu/ só resta eu/ com a minha faca e a minha nau.” Alguns anos antes, me contou Marco Polo na véspera, durante uma viagem que fez a Portugal, conheceu um rapaz que tinha uma faca tatuada no antebraço direito por causa dessa música. Seu pai havia cometido suicídio, sua mãe tivera um surto psicótico e ele mesmo tinha tentado tirar a própria vida. Ao ouvir a canção, percebeu que havia como seguir em frente e marcou esse fato no corpo para nunca o esquecer – havia como seguir em frente.
Se é mesmo verdade que o passado do viajante muda à medida que ele avança, lanço aqui esse convite: vá ao show de 50 anos do Ave Sangria, essa banda que, ao seguir seu caminho, faz com que a história de todos nós se torne um pouco mais incrível.
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Serviço
Ave Sangria – 50 Anos
Festival Convida, Brasília/DF, 23/9
Festival do Sol, Natal, 30/11