Estou na minha cama, recostada na parede, com o computador no colo, em meio aos meus três travesseiros: dois atrás das minhas costas e um debaixo dos meus joelhos. Hoje é domingo de manhã, faz um pouco de frio e não está nublado. Fiz um café preto bem quente, moro num lugar silencioso, enchi a caneca e fui tomando pequenos goles intercalados por espaços de tempo, ora maiores, ora menores, pensando no que escreveria aqui. Uma criança joga bola no térreo enquanto o cachorro da vizinha late. Uso óculos desde os dois anos e meio, e essa me parece uma informação da maior importância, tendo em vista que cada gole de café faz nascer uma cortina de fumaça nas lentes. A tela do computador está dividida em duas metades: do lado esquerdo este texto e do lado direito um desenho de Morgan O’Hara de 2017. Morgan nasceu na cidade de Los Angeles em 1941, eu nasci em Belo Horizonte no ano de 1991. Existe entre nós uma linha de exatamente meio século, ou cinquenta linhas de um ano, ou, ainda, aproximadamente dezoito mil linhas de um dia –
– nosso desenho particular.
Resultado da Live Transmission Venezia Gabbiani – Video of Drawing in Progress, o desenho de sobreposição de linhas registra uma revoada de gaivotas lutando pelas sobras de um mercado de peixe, em Veneza, após seu fechamento. Em 2017, ela foi para a cidade italiana e, com alguns lápis em cada mão, sem desviar o olhar da batalha das aves por restos de comida, fez nascer uma revoada de linhas, um ensaio de olhar, um teste de linhas – não linear – de desenho.
O desenho é uma função do olho ou da mão?
Tudo depende de quem vê.
Morgan se desloca.
Desloca o que vê para a linguagem do desenho.
Ao fazer isso, ela leva a ver o desenho das coisas. Pela janela do meu quarto, vejo uma mulher estendendo roupas de criança na grade da varanda do prédio vizinho; um pássaro atravessa a cena. Há um acumulado de linhas nesses movimentos de mãos que pegam as pequenas peças dentro do balde e as pendura
na varanda do terceiro andar
um traço decidido atravessa este acumulado de linhas
entre grades
um voo sólido.
Volto meus olhos para a tela do computador e para o desenho de 2017 que traz para o meu quarto, em 2024, as gaivotas de Veneza, batalhando por restos de peixe. Morgan desloca para o papel a luta do bando – penso na necessidade da distância temporal, a artista desloca temporariamente a batalha. Estou em 2024 e precisei de sete anos para ver. Abri os olhos e o computador lentamente. Vi sobre o papel um acumulado carregado de traços –
– movimentos no canto inferior direito com diferentes gradações de grafite. O acúmulo fica menos denso aos poucos no canto superior esquerdo enquanto algumas linhas
escapam.
Numa de suas Live Transmission, em 2014, Morgan foi à Londres. Em 2014 eu também fui à Londres, mas não me encontrei com ela. Penso nos caminhos que nos trouxeram até aqui e gostaria que você que lê esse texto agora fizesse esse exercício comigo:
imaginar os caminhos que nos trouxeram até aqui como um acumulado de linhas
A QUEBRA E O SOM DAS LINHAS
A ponta da minha linha se desencontra pela primeira vez com a ponta da linha de Morgan, o acumulado dela tem 50 anos a mais que o meu e contém dois desencontros nossos; o primeiro supracitado mas, sobre o segundo, não falarei aqui. Morgan registrou, em Londres, o movimento dos músicos John Edwards, Mark Sanders e John Tilbury performando. Quando vi o desenho, distante da performance
percebi que três regiões do papel estão com aglomerados mais fechados de linhas. Olho para o desenho por horas
de repente
algo aparece: uma performance inteira em três amontoados diferentes. Um, à direita, num formato próximo ao circular, faz nascer a percussão de Mark, outro mais oval, à esquerda, com traços que escapam nos eixos vertical e horizontal, me mostram os acordes de John no baixo, e um terceiro, na parte de baixo do papel, numa espécie de cilindro horizontal, acrescenta o piano.
Os traços ecoam os instrumentos.
Precisei de uma distância, temporal também, para fazer uma leitura do que já estava ali; precisei ler essa imagem em 2024 para ver cada um dos músicos como um acumulado de linhas performando. Fiz uma viagem à Londres em 2014 e outra neste instante, do meu quarto, onde acabo de assistir à performance através do registro do movimento das mãos de Morgan
mais um deslocamento.
Olho para uma ligação entre duas coisas: os desenhos de Morgan junto às performances, os desenhos de Morgan deslocados da performance, um eco das performances nos traços. Os títulos descritivos de seus desenhos fazem os ecos gritarem alto. Os títulos dão a ideia de caminho, seus traços são os caminhos:
O enxame de linhas guarda a luta por restos de peixe de um bando de gaivotas.
O enxame de linhas guarda a performance dos músicos John Edwards, Mark Sanders e John Tilbury.
O enxame de linhas guarda um enxame de linhas.
Me desloco para a cozinha para pegar um pouco mais de café, volto para o quarto segurando a caneca com as duas mãos e me vejo exatamente na mesma posição que estava no primeiro parágrafo deste texto. Dou mais um gole e, enquanto seguro a caneca, olho mais uma vez para o desenho das gaivotas, penso que encontrei a analogia perfeita para um desenho de Morgan. Olho o canto superior esquerdo do trabalho de Veneza, algumas linhas escapam do papel e não consigo ver o que aconteceu. Dou mais um gole e penso que ver seus desenhos é como estar de óculos e num dia nublado tomar um gole de café bem quente: minhas lentes embaçam, algo escapa diante dos meus olhos.
Luiza Camisassa participou do Laboratório de Escrita Crítica e Editorial da seLecT_ceLesTe na plataforma Zait. É engenheira ambiental, artista plástica, poeta e pesquisadora