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Postado em 20/06/2012 - 9:19
Mulheres de plástico
João Carrascosa

Barbie e Ângela Bismarchi, duas histórias que se encontram

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Legenda: Fotos: Paulo Vainer

Barbie nasceu em 1959 num laboratório nos Estados Unidos e há 52 anos vem tentando sair do plástico para o real. Ângela nasceu numa maternidade em Cascadura e há 39 anos vem tentando sublimar o real através da plástica. Em algum momento, no meio do caminho, essas duas trajetórias ainda vão se encontrar

1959: Nasce Barbie, seios e formas definidas

Em 1959, Ruth Handler, proprietária da Mattel Toys, teve a ideia: uma boneca inspirada na vida real, com formas muito próximas às de uma pessoa comum. Enfim, uma boneca humana. Mais do que isso, uma boneca adulta, com seios e formas definidas. Nasce a Barbie, assim batizada em homenagem à filha pré- adolescente de Ruth. Aos 15 anos, sem seios ou formas definidas, Barbara Handler foi a primeira menina a ter nas mãos a tal boneca longilínea e peituda. A partir daquele momento, a pequena Barbara ganhou um problema: um padrão tirânico a seguir. E, como ela, várias outras bárbaras espalhadas pelo mundo. As medidas, o corpo e o guarda-roupa da Barbie definiriam comportamentos estéticos e de consumo pelos próximos 50 anos. Mas essa ainda não era a boneca quase gente que conhecemos hoje. Para chegar até aqui ela passou por sucessivas remodelações, para se aproximar cada vez mais do mundo real.

1965: Joelhos flexíveis 1968: Olhos que abrem e fecham

Jack Ryan, o designer que desenvolveu o corpo longilíneo da Barbie, já tinha feito sucesso antes com os também longilíneos mísseis Sparrow e Hawk – que até hoje definem as medidas de nove entre dez bombas que caem sobre o Oriente Médio. Jack foi o Pigmaleão da vez. Costumava dizer que estava criando a mulher perfeita e que era o único homem na sua vida. Nos anos 1960, coube a ele a tarefa de humanizar ainda mais a boneca. Em 1965 criou os joelhos flexíveis. Em 1967 deu movimento à sua cintura.

Em 1968, olhos que abriam e fechavam. Tudo isso combinado permitia a Barbie dançar ao som dos Beatles, enquanto piscava para o namorado Ken – sim ela já tinha um namorado, extraído de sua costela. Como efeito colateral, as poses limitadas e nada naturais dessa Barbie articulada foram imediatamente assimiladas pelos editoriais de moda – e continuam ainda muito em voga entre modelos de carne e osso.

1968: Fala frases inteiras

Em 1968 Jack Ryan grita Parla! e Barbie ganha uma voz, avançando vários passos em direção ao real. Criou-se um mecanismo que permitia à boneca falar frases inteiras e não apenas grunhir ou chorar, como a maior parte de suas companheiras de vitrine. Era o momento certo: no mundo todo jovens iam às ruas para ser ouvidos, queriam ter voz para falar de liberdade, política, sexo, revolução. A também jovem Barbie ganhou o poder da fala. O problema era o que ela dizia: “Tenho um encontro. O que devo vestir?”. Naquele momento, a boneca que queria ser gente não podia estar mais distante da realidade. Pobre Barbie, andou vários passos para trás.

1969:  Pele negra

Vozes inúteis, movimentos articulados e olhos piscantes foram aos poucos deixados de lado. Barbie invadiria o mundo real não por suas opiniões ou por sua capacidade de mexer os quadris. Se ela não pode se transformar, por imagem e semelhança, numa pessoa de verdade, as pessoas de verdade é que devem se parecer com ela. Ela tem poder para isso: nesse exato segundo, pelo menos três bonecas Barbie estão sendo vendidas em algum lugar do planeta. E é assim a cada segundo de cada minuto. O sucesso comercial fez dela um dos personagens mais influentes no século 20. Seu corpo virou o padrão definitivo da beleza feminina americana. Em 1969, surgiu Christie, a primeira Barbie negra. Começa a produção da linha étnica. Barbie agora não está pronta para a realidade, mas para as realidades. Em qualquer parte do mundo, qualquer criança pode se identificar com a sua Barbie. Mas, do Japão ao Ceilão, muda apenas a cor da pele e os cabelos. Permanecem as medidas tirânicas, o mesmo narizinho fino, a mesma pequena e discreta bunda branca anglo-saxônica. O mundo real que se adapte.

1970: Denúncia de cópia da boneca inflável Lili

Nos anos 1970, a boneca cai na real. Afinal, a vida de verdade não é assim tão fácil. No auge do sucesso, com um guarda-roupa de mais de 1 bilhão de pares de sapatos e uma coleção de modelos assinados por Dior, Armani e Versace, Barbie descobre a inveja. Seus detratores anunciam: Barbie é uma filha da puta! E provam, trazendo à tona sua verdadeira origem: ela seria cópia da boneca erótica Lili, personagem de quadrinhos do jornal alemão Bild-Zeitung e ícone do pós-guerra, mulher de vida fácil, sempre de lingerie preta e salto agulha em busca de milionários incautos. No fim dos anos 1950 Ruth Handler teria dado de cara com uma boneca Lili numa tabacaria suspeita da Suíça. Levou pra casa, tirou a maquiagem pesada, suavizou a sobrancelha arqueada e os lábios rubros, deu-lhe um banho de loja e transformou uma alemã safada e decadente em mocinha americana de família. Os boatos, afinal, revelaram-se verdadeiros. Os respectivos direitos foram pagos ao fabricante da original Lili e nossa Barbie ganhou uma história menos rósea, mais crua, desmanchando sua aura de menina perfeita. E assim avançou vários passos em direção à vida real.

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1990:  Perdeu um pouco de seio, ganhou um pouco de cintura e quadril e ganhou um umbigo

É nos anos 1990 que Barbie dá o maior salto para a humanização. Foi obrigada a isso. Alguém teve a ideia de fazer uma projeção das proporções da boneca adaptando-as ao corpo humano. Resultado: se fosse uma mulher de verdade, mediria 2,13 metros, com 96 centímetros de busto, 45 de cintura e 83 de quadris. O peso disso, em carne e osso, seria de, aproximadamente, 50 quilos. A criatura não seria capaz de caminhar e provavelmente estaria agora estrelando um documentário da National Geographic.

De repente, o modelo de beleza que norteou quatro gerações de meninas no mundo inteiro prova-se inatingível. De onde feministas, psicólogos e antropólogos concluíram que era Barbie a culpada por todas as frustrações da adolescência, pelas anorexias e bulimias várias que assolaram o fim do milênio. A pobre boneca virou até nome de doença: o Complexo de Barbie, que define um transtorno da imagem corporal que leva mulheres insatisfeitas a alterar seus corpos em sucessivas cirurgias plásticas.

Antes que fosse tarde demais, o departamento de marketing da Mattel Toys movimentou designers, engenheiros e cientistas para salvar a imagem de sua boneca mais famosa. Uma manobra tão drástica quanto sutil: suas pequenas consumidoras não poderiam rejeitar as mudanças – afinal, estava em jogo uma economia que movimenta mais de US$ 2 bilhões por ano. Ainda que tivesse passado quase despercebida, essa foi a mudança mais radical já sofrida pela Barbie em seus 52 anos.

Para ficar mais realista, Barbie perdeu um pouco de seio e ganhou um pouco mais de cintura e quadril. A boneca que quer ser gente ganhou medidas mais humanas, de 14 centímetros de busto, 10 de cintura e 12,5 de quadril. E, detalhe fundamental, ganhou um umbigo – e tudo o que isso sugere.

Ângela

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Nascida em Cascadura, subúrbio pobre do Rio, Ângela deve ter tido uma infância sem graça: nunca teve uma Barbie. Conhecia a boneca só de vitrine. Do lado de fora da loja, ela sonhava com Barbie Malibu, o sucesso de então. Vinha com um novo bronzeado exclusivo e cabelos longos, muito mais ondulados. Na caixa, decorada com paisagens californianas, estava o slogan da época: Be Anything… Mas Cascadura não se parece nada com Malibu. É um lugar de vida real, quente e modorrento. Ângela deve ter tido também uma adolescência sem graça: perdeu a virgindade aos 20 anos. Casamento, filho aos 21, curso de instrumentação cirúrgica… Vida comum, vida chata. Até que um dia, finalmente, ela descobre o significado de Be Anything: se Cascadura não é Malibu, Ângela pode ser Barbie.

2000: 160ml nos seios

Ângela se despediu do passado em Cascadura no carnaval de 2000. Tinha acabado de fazer sua primeira intervenção cirúrgica: dois peitos de 160 mililitros cada um. E foi com eles que surgiu nua na avenida, pintada com as cores da bandeira do Brasil. O carnaval proporcionou o contexto irreal, o cenário de sonho. Exibida, orgulhosa de seus novos atributos plásticos, foi sucesso imediato – e sem volta. Os flashes dos paparazzi balizaram o caminho para uma vida extraordinária, cada vez mais longe do mundo real. Como Barbie Malibu, Ângela agora é celebridade.

Seios maiores, lipoescultura, sobrancelha levantada, dois furos no queixo

O primeiro percalço na sua trajetória. As mesmas próteses que abriram o caminho para a fama causaram-lhe também uma infecção de mama. O irreal cobra o seu preço. Ângela vai ao consultório do doutor Ox Bismarchi e encontra não só uma solução clínica, mas um enredo para a realidade paralela que começava a criar para si mesma. O cirurgião plástico se apaixona. Empresta-lhe um sobrenome de fotonovela e transforma seu 1,80 metro de carne e osso em canteiro de obras. Ox foi o Pigmaleão da vez.

Mais que artista e musa, o caso aqui é de criador e criatura. Juntos, Ox e Ângela brincam de deuses, remodelando a natureza: seios maiores, lipoescultura, uma sobrancelha levantada, um furo no queixo… Não, dois furos no queixo! Começa ali uma maratona em busca da plástica perfeita que hoje já ameaça entrar para o Guinness, com quase 50 intervenções cirúrgicas.

2006: 400ml nos seios, diminuição dos lábios vaginais – 2008: fios de ouro nas pálbebras

É estabelecida uma tradição de carnaval: Ângela Bismarchi estreia nova plástica na avenida! Tão certo quanto mestre-sala e porta-bandeira, já se conta, todos os anos, com a presença de criador e criatura, Ox e Ângela Bismarchi. Sempre com uma novidade: um novo nariz, lábios recheados, novo desenho de bumbum, novas panturrilhas, novos peitos: 250, 340, 400 mililitros… 

Foto certa na revista. Retorno garantido para o mercado da medicina estética, alimento farto para a mídia de celebridades e um atrativo a mais para o carnaval carioca. Ângela vira um case de marketing pessoal e vive da história que criou para si. A tradição só falhou no carnaval de 2006, quando foi proibida de desfilar. Ela havia anunciado com antecedência a surpresa da vez: cirurgia de diminuição dos lábios vaginais. Prevendo o contorcionismo de fotógrafos e cinegrafistas para registrar a novidade, o presidente da Portela dispensou o destaque nas vésperas do desfile. Tudo bem, Ângela voltaria radicalizando: em 2008, inspirada no enredo oriental da escola Porto da Pedra, ela surge na avenida transformada em japonesa, por meio de cirurgia com fios de ouro nas pálpebras. A gueixa platinada avançou vários passos em direção a Malibu. Be anything! Mas deixou a pergunta no ar: até onde ela pode ir?

No auge de sua epifania, em pleno voo, a fada virtual quase perde as asas. O cirurgião Ox é assassinado com três tiros. Ângela é acusada de ser a mandante do crime e expande suas fronteiras midiáticas, nvadindo também as páginas policiais. O crime nunca foi esclarecido, mas entrou para os anais como latrocínio – roubo seguido de morte. A ausência do Pigmaleão poderia selar o fim da história. Mas a realidade mostra que também sabe brincar e coloca diante dela um novo amor: Wagner de Moraes. E quis o destino que ele também fosse um cirurgião plástico. Ele recomeça de onde o outro parou. Novas experiências estéticas retomam a tradição – e vão muito além. Ângela Bismarchi vira marca de lingerie e assinatura em livro de autoajuda sexual. De uma forma ou de outra, ela atinge o objetivo de fugir da vida comum – com tanta polêmica, tanto marketing, tanto caso esquisito, sua história já não se parece mais vida real.

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2009: reconstituição do hímen

A saga continua: no carnaval de 2009, a surpresa da vez é a reconstituição do hímen. Aos 37 anos, mãe de um rapaz de 18 e com uma vida sexual mais do que ativa, Ângela volta a ser virgem. Era um fetiche do marido, explica. Ângela e o Pigmaleão da vez manipulam assim não apenas as formas, mas também o tempo. Quem precisa de cronologia é a vida real. Em 2010, Ângela assume o caráter virtual de sua personagem e entra definitivamente na rede – mais de 20 mil seguidores no Twitter. Em 2011, a polêmica mais recente: no dia 1o de abril, o YouTube veicula uma entrevista em que ela afirma que será a primeira brasileira a implantar um terceiro seio. A brincadeira caiu na rede e foi levada a sério. Vários sites e jornais embarcaram, seus leitores reagiram indignados. Parece que ninguém achou a notícia tão bizarra assim. Não para Ângela Bismarchi… O melhor sinal de que ela já não faz parte da nossa realidade.

*Publicado originalmente na edição impressa #00.