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Anatomia da Ruína, exposição individual (dentro da coletiva) do artista Gabriel Augusto [Foto: Henrique de la Fonte]
Postado em 05/03/2025 - 12:00
Museu do Depois do Amanhã
Um acervo multiespécie, um catálogo de obras do tempo, do acaso e do descaso

Em junho de 2024 é (des)lançado o mudda, Museu do Depois do Amanhã. Um museu infiltrado, quase como água, nas estruturas arquitetônicas da primeira fase do modernismo goiano (e brasileiro). Um prédio construído no fim dos anos 50 para ser sede da Companhia Elétrica do Estado de Goiás, a Celg, depois ocupado (no começo do século 21) pela Secretaria de Educação do mesmo Estado de Goiás e, finalmente, largado à própria sorte do começo de 2020 até a hora em que brota o mudda.

Quando o prédio foi largado após a saída da Secretaria de Educação, a Secretaria Estadual de Patrimônio buscou seu tombamento, dada a importância arquitetônica do conjunto associada ao magnífico afresco de cerca de 2 metros de altura por quase 9 de comprimento, pintado por Frei Confaloni. Na tentativa (bem-sucedida) pelos proprietários de impedir o tombamento do prédio, o painel acorda conflagrado com manta asfáltica dos pés à cabeça. Ninguém investiga o atentado contrapictórico: mas todos sabem quem o ordenou.

Como classificar um acervo multiespécies, que tem uma miríade de obras feitas por mãos humanas, outras incontáveis feitas pelas reinadas Vegetais e Fungi, e ainda outras lapidadas pelo tempo, seu acaso, em conversa (ou gritos) com a água e sua sobra inconsequente: a umidade? O processo de tornar um prédio chamado de “abandonado” em museu dá-se pela constituição de um acervo dividido em duas grandes frentes: a antrópica e a pós-antrópica. O conjunto de obras antrópicas consiste na coleção de ao menos algumas centenas de pinturas comumente chamadas de pichos (ou pixos), grafites, lambes, além das estruturas produzidas pelos feitores do prédio (com destaque para a rara escada suspensa e o semi-infinito cobogó), além das obras produzidas pelos proprietários-especuladores com notório destaque para a violenta conflagração do Confaloni.

Fachada interna do prédio com suas largas ausências de parede [Foto: Henrique de la Fonte]
Na coleção pós-antrópica bailam reinos diversos: plantas performam criações sem cessar, enquanto o Reino Fungi tece, pinta e borda suas telas em paredes e tetos. Às plantas, fungos e musgos somam-se as obras do tempo, feitas pelo acaso (em especial do passear das águas sobre o concreto) e do descaso (que abre campo para esculturas na derrocada das estruturas).

Na coleção pós-antrópica, artistas-plantas performam sem cessar a dança do sol. Para elas, estabelecemos uma placa só: a do Reino Vegetal. Podemos, mas ainda não sabemos se queremos, subdividi-las em espécies, mas só o faremos caso elas um dia o solicitem formalmente à direção do muddeo. A escolha pelo não uso do título ou, melhor, por não nomear as obras vivas das plantas segue-se de não termos conseguido, até aqui, compreender se isso lhes interessa. Nos parece também que, enquanto se movem verdejantes, seu processo não findou. Em última instância, nem placa caberia em artista/obra ainda em curso, e assim adotamos a classificação para consolidar o embate em favor do veredicto de que toda planta é e faz arte. Adotamos o início em 2020 e nenhum ano de término para dar notícia desse verde-em-curso, sem data para conclusão do processo-performance-obra.

Que a autobiografia vegetal siga escrevendo invisíveis linhas com tinta de clorofílica!

Também o Reino Fungi baila sem cessar. Em ambientes domésticos são vilões, mas no Museu do Depois do Amanhã são pintores performáticos de telas. Redigem tecituras multicolores de uma gramática própria. Há mais de 100 mil espécies de fungi catalogadas no mundo; são descobertas mais de mil espécies ao ano; dizem até que uma equipe de Harvard cadastrou um fungi muddesgillus, o primeiro reconhecido como artista dentro de seu reino. Jadson D. P. Bezerra, doutor em Biologia dos Fungos e docente do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, é quem nos prestou consultoria nessa impossível missão: dar nomes a eles, elas, elus. Jadson nos explicava que a constatação exata é impossível apenas pela aparência, o que confesso nos ter alegrado. Mas, depois de sérios debates envolvendo colecionadores, financiadores, direção do muddeo e equipes de curadoria de diferentes espécies, foi decidido que parte dessa coleção tão importante quanto abundante deveria ganhar nomenclatura. Fez a convocatória interespécies e depois de nenhuma seleção, quem esboçou algo virou título de obras. O pesquisador classificou em três grupos os fungos mais presentes nesses ambientes, de acordo com uma série de imagens que levamos até ele. Depois disso, atribuímos (mais uma vez, de forma genérica e com o objetivo maior de fazer do fungo artista e arte) as fichas de classificação de obra. Assim como no caso das plantas, a datação tem começo (a saída da Seduc e seus humanos) e não tem fim, visto que o baile fungi segue por tetos, paredes, canos, buracos, fios e redes. E, quando chove, brota vida colorida, incontável, inclassificável. O Museu do Depois de Amanhã tem a Satisfação e o Orgulho de possuir a maior coleção de obras de arte do mundo nesse gênero em que atuam o caos, o acaso, o descaso, a contação de caso como resultado da produção humana desviada, afrontada, estilhaçada e desmontada pelo tempo, pela água e sua presença imanente, a umidade com sua humildade ímpar. Ano passado, um grupo de pesquisadores da Universidade de Xangai constatou que havia mais vida fungi em uma única parede do mudda do que em todos os shoppings da China juntos.

São 172 obras desse campo classificatório.

Reino Vegetal performa suas obras [Foto: Henrique de la Fonte]
No entremeio entre as duas grandes coleções do nosso acervo, há um trabalho que atua na fronteira. Em uma chamada feita antes de ontem por uma equipe de curadoria das monas do acaso e do descaso, agruparam obras em que artistas antrópicos e pós-antrópicos atuaram em conjunto. O que não se previa é que, ao término da produção, nem as formas sem vozes e nem as formas humanas ficaram para nomear o que produziram. O problema foi tamanho que os Editais de Cultura deixaram de oferecer a opção para produções não humanas ou em associação entre formas sem vida e qualquer outra forma de vida (já faz muito tempo que isso ainda vai acontecer), e o mudda, aaaaah, o mudda, responde processo no Ministério da Cultura do Acaso e da Biodiversidade Artística desde então. Restou classificar essa linda e caótica interação, para a sorte de quem compareceu, como obras sem título.

Por fim, para as obras antrópicas assim chamadas de “artes urbanas” adota-se um sistema de classificação em que as fichas são alocadas para que os artistas possam, caso queiram, assinar.

Equipe muddeológica: beta m. (x). Reis; Glauco Gonçalves, Henrique de La Fonte; Luiz da Luz, Robert Valentim e triz Sá
Fachada frontal do prédio. O imenso cobogó oferece sua fratura do que não para de cair, junto com o céu [Foto: Henrique de la Fonte]
Sala “A água entra em tudo” com obras de Bulacha e Ferdz, Laís Rocha, Gabriel Augusto, Paulo Paiva, William Trapo, Ricarjones, Dayana Silva, Montefusco, Morai e Marcelo Viana [Foto: Henrique de la Fonte]

Para além do acervo: ações, chamadas e (outras) exposições

Depois (de amanhã, e de anteontem), quando o sistema de classificação do acervo permanentemente temporário é deliberado, a equipe muddeológica organiza três principais acontecimentos: uma chamada nacional de lambe-lambe (JATOMBEI!), uma exposição individual do artista Gabriel Augusto e, ainda em curso, uma nova chamada nacional voltada ao estêncil.

JÁTOMBEI! alude ao jatobazeiro que viveu vivão desde que Ritter e sua turma plantou concreto por lá. Há quem diga que toda energia da Celg vinha dele. Tentaram tombá-lo para que vivesse (quiçá mais que o mundo), mas a perversidade do capital envenenou o mundo e matou o jatobá, que tombou sem ser tombado. Nessa exposição de mais de 300 lambes, de mais de 110 artistas e coletivos, vindos de mais de 35 cidades de todas as regiões do Brasil, o homenageamos.

Para isso, inauguramos uma galeria externa: o Jardim Jurupiá, referenciando uma intervenção da artista para além do prédio principal. Goiânia, cidade já de paredes lambidas, marcadas por três edições do Lambisgoia, passa a ter agora a coladoria muddeológica dentro dos escombros e paredes descascadas. Uma vez mais o escombro é ativão, e atua agora como curador: diz às paredes que melhor recebem cola e papel, inviabiliza outras por texturas vivas e rebeldes. A ausência de janelas vira uma coleção de molduras, paredes mais lambidas estão sempre por de trás: as de frente, que quase nada colam, guardam as obras de olhares óbvios.

JÀTOMBEI, chamada nacional de lambes sem seleção [Foto: Henrique de la Fonte]
Já a individual de Gabriel Augusto, intitulada Anatomia da Ruína, invoca a exposição de um dia só com um artista que inaugura o conceito muddernissage, em que obra e autor convergem na ruptura da compreensão do sentido de um museu de escombros. Exposição em que são expostos pesadelos corporificados de uma sociedade apodrecida, que perdeu o elo com o sonho e agora só pode apavorar. A mais coletiva das exposições individuais já feitas no munddo tem Bulacha e Ferdz com sua máquina de destituir paredes brancas em massa, agindo como interlocutores por excelência e acolhendo entre letras as obras de Gabriel. Laís Rocha expõe um painel que se camufla junto aos fungos e que, por debaixo da primeira camada, carrega um alerta-convite – certamente, uma das obras mais singulares do acervo antrópico do mudda. Paulo Paiva e William Trapo também se encontram lá, presenças imprescindíveis que estão não só nas paredes, mas nas entranhas da articulação desse projeto desde o seu início. Ricarjones, com seu lambe-barbie, dá um tchã na parede musgada. Dayana Silva também poderá ser vista por lá, juntamente com Montefusco, Morai e Marcelo Viana. Vale lembrar que toda parede de galeria foi pintada de branco por algum artista antes de o quadro ser pendurado. Só há exposição individual onde há apagamento.

Em curso está uma nova chamada que transformará Goiânia em um musaico de residenciais muddernos, oferecendo desconforto, estilo e localização privilegiada para moradia do seu estêncil:  o Bairro do Futuro Home Stencil, projeto com design pós-antrópico e biofílico. A localização estratégica oferece aos moradores uma experiência (anti)espetacular. O retrofit de maior sucesso global, em um dos principais pontos de inconveniência e lazer da cidade: o Museu do Depois do Amanhã. Morar no Bairro do Futuro Home Stencil é também garantir um investimento com grande potencial de desvalorização. Seus moradores desfrutam de um estilo de vida mais fluido, sem precisar deslocar-se por longas distâncias para aproveitar o fim da civilização ocidental.

O fim do mundo não tem fim, e as ruínas são a paisagem por excelência do colapso da civilização ocidental. O mundo devir mudda.

Transpassamento de fronteiras em obras híbridas [Foto: Henrique de la Fonte]