Às 8 horas da manhã, a água do rio começava a ser puxada, criando a travessia ideal para que Zeca cruzasse para o outro lado do Pinheiros. Sua mãe havia pedido que ele fosse buscar lenha do lado de lá, enquanto preparava uma grande panela de frango com batatas no forno. Ainda assim, seu pai o alertou: “Mas tome cuidado com o horário, que já tá tarde, não vá ficar preso do lado errado!”.
Moradores de Santo Amaro, a família mudou-se para o distrito da Zona Sul de São Paulo no momento em que Zeca completou 4 anos de idade. Hoje, aos 86, sente que esse é o lugar ao qual pertence. Em sua casa, um pouco acima do terminal de ônibus na rua da igreja matriz do bairro, ele se recorda com saudade de brincar no arvoredo e de entrar na mata para pegar laranja, mandioca e banana. Também lembra da olaria que ficava em frente, onde, à medida que a draga trabalhava, ele pisava naquele barro branco, puxava a perna e não conseguia sair mais.
Com os pés descalços, Zeca atravessou o rio depressa em busca da lenha, e apreensivo, já que o relógio parecia correr até as 4 da tarde, quando a água revertida para a represa começava a subir novamente. Com a lenha embaixo dos braços, o menino percebeu que sua volta seria mais longa do que imaginava. O caminho pela ponte da Peninha – agora João Dias – transformava a travessia de poucos minutos pela água em um trajeto de quatro horas. “Desculpe, mãe, demorei. Tive de vir pela ponte.”

Sem proteção
Incontáveis histórias navegam pela malha hídrica de São Paulo. Na cidade que flutua sobre seus rios, enterrados e invisíveis, atravessam as memórias de pessoas que cruzaram seus cursos d’água ao longo do tempo. Algumas das diversas travessias e ocupações, como a de Zeca, foram registradas por meio de fotonovelas na exposição Rios DesCobertos – Dos Jerivás aos Pinheiros, realizada pelo Estúdio Laborg, no Sesc Santo Amaro, em 2022.
Essa foi a oitava edição do projeto de educação socioambiental criado por Alexandre Gonçalves e Charlie de Oliveira. Em seus 16 anos de atuação, a dupla dedicou seu trabalho para a produção de conteúdo expositivo e instalações audiovisuais para instituições culturais e de ensino, como o Museu do Futebol, Museu da Imigração, Sesc, Museu da Imagem e do Som e Museu de Arte Moderna.
Foi durante a grande crise de gestão hídrica da cidade – e não crise hídrica, visto que água nunca faltou, como analisa o artista visual e diretor de arte Charlie de Oliveira –, no período do mandato do governador Geraldo Alckmin, que consolidaram e gestaram a primeira edição do projeto Rios DesCobertos. A princípio, a proposta estava relacionada à criação de uma instalação: uma maquete topográfica de São Paulo com recursos interativos de projeção mapeada. No entanto, ao longo do processo de redescobrir os rios junto a especialistas e consultores que integraram a equipe, novos mecanismos de comunicação visual e elementos cenográficos foram incorporados à instalação e apresentados no formato de exposição no Sesc Vila Mariana, em 2016.
Além de dialogar com especialistas, a equipe sempre buscou ouvir a comunidade local durante suas pesquisas. Conhecer as histórias de vida de quem vive próximo a cursos d’água tornou-se o ponto central de intercâmbio com a Academia, trazendo uma nova dimensão sociocultural ao panorama histórico da vivência em confluência com os rios urbanos. A dupla observou essa ausência de tridimensionalidade – como eles próprios definem – tanto no âmbito técnico quanto no simbólico. A maquete topográfica, por sua vez, não só ilustra a disposição territorial em três dimensões, como também promove a interseção entre espaço, eixo histórico e territorialidade. “A construção da casca de concreto no terreno da cidade de São Paulo não só escondeu os rios, como escondeu também o chão que a gente pisa.”
O nome do projeto também abre espaço para diferentes leituras de sua origem semântica. Por um lado, DesCobertos sugere redescobrir algo que já existe ou, ainda, uma redescoberta pessoal, envolvendo a conexão afetiva com as águas da cidade. Por outro, pode remeter à retirada de uma cobertura ou superfície, revelando o que está por baixo. Além disso, “descoberto” pode evocar a ideia de algo desprotegido ou vulnerável; um rio descoberto é um rio sem proteção ou sem identidade.
O processo de resgate da memória afetiva ligada aos rios urbanos, uma prática totalmente apagada pela vivência social em grandes metrópoles, foi um dos desafios dos pesquisadores. “A gente tinha de resgatar o afeto das pessoas por algo que elas nem sabiam que existia”, destaca Oliveira. Este é um dos principais objetivos do projeto, cujas iniciativas despertam novos questionamentos sobre a nossa própria percepção das águas, incluindo a forma como as nomeamos. Termos como valão e córrego, por exemplo, são usados para descrever certos tipos de cursos d’água abertos, mas, no imaginário urbano – a partir da implementação de uma ideologia desenvolvimentista – ganharam conotações pejorativas e são sinônimos de esgoto a céu aberto. Por esse motivo, a dupla valoriza em seus projetos expositivos o exercício de nomeá-los por suas formas originais, como ribeirão e riacho.
Essa diferença foi observada especialmente quando o Laborg viajou para o interior de São Paulo. “A relação das pessoas que moram no interior, em cidades menores, não é tão distante assim dos seus corpos d’água. Piracicaba, por exemplo, o rio corta o meio da cidade, é um ponto turístico. Todo mundo conhece, todo mundo gosta. A história da região é muito ligada ao rio até hoje, ainda mais por meio da música, da poesia e da arte. São Paulo também teve tudo isso, mas sofreu um apagamento a partir do projeto de urbanização do começo do século 20”, diz Oliveira. Ele relata que a memória é recente, pois é viva, além de se tratar de uma dinâmica que não tem limites tão definidos, em contraste com a capital do estado.
Em Piracicaba, Jundiaí e Campinas, buscaram trazer uma visão sistêmica da complexidade das relações entre as bacias hidrográficas e mostrar que a hidrografia extrapola fronteiras administrativas e políticas, considerando que pertencem a uma única Unidade de Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRHs) e são três afluentes do Rio Tietê.
Nesse contexto, a decisão em conjunto com o Sesc foi de produzir duas maquetes para cada exposição, uma destinada à bacia hidrográfica do médio Tietê, abrangendo por volta de 200 quilômetros, e outra do afluente inserida neste cenário. Eles relatam que a pesquisa em Piracicaba encontrou mais de 60 rios, dos quais 42 não tinham nomes registrados. “Numa cidade que achava até aquele momento que tinha uma relação óbvia com o rio, isso foi um choque. O local vai se urbanizando e esses rios abertos até podem ter nomes populares, às vezes têm dois, três nomes, dependendo de onde você está. O nome é social e cultural. Mas um rio sem nome é um rio descoberto, um rio sem ninguém.”
O incômodo na cidade foi tão grande que culminou na criação de um projeto dentro das escolas, onde crianças e jovens começaram a batizar os rios. Eles ressaltam que pode ser algo muito simples, mas há uma poética envolvida com essa prática no ambiente escolar – uma nova geração se apropriando de seus rios.


Pedagogia do amanhã
Às margens do Rio Pinheiros, Charlie de Oliveira e Alexandre Gonçalves também desenvolveram outra edição histórica do projeto Rios DesCobertos, com a exibição de 12 painéis de fotografias antigas do curso d’água dispostas onde foram originalmente tiradas ao longo de 7 quilômetros da ciclovia. Seguindo a perspectiva do fotógrafo, a exposição De Frente para o Pinheiros (2021) destacou a existência de um rio oculto sobreposto ao rio existente, dadas as transformações resultantes da retificação e da evolução do processo de urbanização ao seu redor.
E como muitos caminhos levam ao Pinheiros, os artistas dão continuidade ao projeto com sua versão expográfica panorâmica, Dos Jerivás aos Pinheiros. Os jerivás, palmeiras nativas da Mata Atlântica, são comuns em áreas alagadas de várzeas de rio. As árvores dão origem aos nomes antigos de trechos do Pinheiros que cruzam o Grande ABC, como Geribatiba e Jurubatuba – que em tupi-guarani significa “lugar de muitos jerivás”. Já as araucárias, que antes dominavam a região oeste da capital e hoje não existem mais, eram conhecidas como o Pinheiro do Brasil.
Na mostra, a maquete topográfica foi instalada no final da exposição, culminando em um momento de reflexão após o contato com a expografia, pensada como um espaço de debate e questionamento. Eles reforçam que o rio é utilizado como um vetor da história e não como um fim. “Dos Jerivás aos Pinheiros usa o Rio Pinheiros como um vetor, como era o vetor de ocupação, mas um vetor de análise, crítica e entendimento.”
Foram mecanismos visuais, de áudio e táteis que ambientaram o visitante de forma imersiva no contexto histórico e cultural do Rio Pinheiros e da natureza nativa do bioma – sua sonoridade foi recriada na entrada, juntamente com uma série de elementos secos, frutos, sementes e cascas de árvore, incentivando o público a se afastar do ambiente externo e se reconectar e tocar na vegetação.
Esta foi apenas a primeira edição do panorama, que percorreu diversas cidades e municípios do estado por meio do Sesc São Paulo, e impactou mais de 70 mil visitantes. Além disso, todo o conteúdo da exposição foi disponibilizado na plataforma digital da instituição, permitindo que educadores e líderes comunitários tivessem acesso ao material e pudessem ampliar suas dimensões pedagógicas.
“Rios DesCobertos também deixou há muito tempo de falar sobre rios e passou a falar sobre sociedade e meio ambiente. Passou a falar sobre nós, sabe? Nossos últimos projetos expositivos já são uma transformação desse intuito. Não é só sobre rio, é sobre muito mais do que isso. É história, é pertencimento, é comunidade”, diz Gonçalves.
