Oportunidades do agora
Em seu ano dedicado às Histórias da Diversidade LGBTQIA+, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) focou na produção de agentes culturais identificados à sigla, mesmo que alguns deles, em seu tempo, não tenham se posicionado socialmente como tal – como Mário de Andrade – ou cuja sexualidade não se mostrou relevante para a recepção de seu trabalho – caso de Francis Bacon. Próximo ao encerramento do calendário os holofotes recaíram sobre José Leonilson (1957-1993), cuja prática, com elevada carga autobiográfica, fez dele um ícone gay da arte contemporânea brasileira.
Leonilson: Agora e as Oportunidades, com curadoria de Adriano Pedrosa e Teo Teotônio, é uma das mais ambiciosas retrospectivas dedicadas ao artista. A exposição reúne mais de 250 obras realizadas nos cinco últimos anos de trabalho-vida de Leonilson. São incluídos, ainda, cadernos de notas, desenhos e documentários realizados a partir de seu diário em áudio iniciado em 1990. Destaca-se a presença de suas ilustrações feitas para a coluna de Barbara Gancia na Folha de S.Paulo (1991-1993), apresentadas no vão do museu e que integraram anteriormente a publicação Use, é lindo, eu garanto (1997).
A abrangência da mostra, se deve, em parte, à generosidade de colecionadores particulares, muitos dos quais preferiram manter-se anônimos. Não é o caso da galerista Luisa Malzoni Strina, cujo acervo foi construído ao longo dos anos em que colaborou com o artista, tendo sido responsável por sua inserção no circuito paulista em 1983. Todavia, a obra Agora e as Oportunidades (1991) eleita para dar título à exposição resulta da benevolência de Heitor Martins – atual Diretor Presidente do Masp – e Fernanda Feitosa – realizadora da SP-Arte – doada em 2020, momento em que o projeto passou a ser gestado.
Here Comes Your Man
Leonilson tornou-se uma figura rentável para as instituições e para o mercado que podem confiar na sua capacidade de atração do olhar e geração de valor monetário e cultural. Só nos últimos dois anos, o artista recebeu uma dezena de exposições monográficas em galerias e instituições culturais brasileiras, mas também lhe dedicaram mostras entidades como o Tate Modern (2013), em Londres, e a Americas Society (2018), de Nova York, além do Museu Serralves (2022), em Lisboa, e o KW Institute for Contemporary Art (2021), em Berlim. Os territórios conquistados pelo artista não se encontram apenas no âmbito institucional, mas no imaginário coletivo.
Afinal, seu trabalho não se circunscreve apenas aos museus, mas também aos livros, telas, palcos e corpos. O encaixe dessas engrenagens da indústria cultural move o imaginário sobre o artista e suas obras, levando, inclusive, admiradores a fazerem tatuagens de seus desenhos. Mesmo que o Masp se proponha a ampliar o público do artista, é preciso reconhecer sua posição de destaque na história recente da arte brasileira.
Por isso, torna-se desconfiável o argumento de Pedrosa de que Leonilson era, apesar de central, também um Outsider. O curador faz do artista um anti-heroi, afirmando que Leonilson “não parece se encaixar facilmente nas histórias de seus antecedentes, predecessores e contemporâneos, nem em movimentos na arte brasileira”. Entretanto, é possível ver elos de continuidade na prática do artista, sem precisar, para tal, forçar o olhar.
Em seu trabalho é possível destacar o recurso à linguagem gráfica como antes fizeram os artistas da Nova Figuração, como Antonio Dias, seu amigo próximo, e Anna Maria Maiolino, cuja autobiografia também permeia a obra. Sobre seus contemporâneos, bastava descer até o bairro de Pinheiros e visitar a exposição de Alex Červený na Galeria Millan para constatar que Leonilson não se encontrava isolado em seu tempo. Há diferenças, é claro, mas só porque são rastreáveis as semelhanças.
Importante lembrar, também, a recorrente identificação do artista à chamada geração 80. Por mais que o grupo diverso de artistas reunidos sob essa alcunha não tenha de fato constituído um estilo ou movimento, ela não deixa de ser resultado do árduo trabalho de historicizar práticas recentes da arte. Mesmo tendo as noções de estilo e movimento se mostrado insuficientes para a recepção crítica da produção artística a partir da segunda metade do século XX, cuja vertiginosa ampliação de formas e meios tem propiciado mais a individuação das análises do que a depuração de elementos compartilhados, a singularidade da obra de Leonilson serve de modelo para ilustrar certas fórmulas didáticas que visam sintetizar a prolífica produção dos anos 1980 em clichês como “virada subjetiva”, “retorno à pintura” e “apelo autobiográfico”.
Perde-se, então, a chance de expor essas tensões, de se aprofundar no contexto, de rastrear as referências explícitas e implícitas para expor, de fato, suas diferenças. O próprio Leonilson que encontramos ali, que Pedrosa chama de “tardio”, também poderia ser dito “o clássico”, pois muitas obras apresentadas são emblemáticas de sua carreira.
As noções de Outsider ou de marginalidade agenciadas por Pedrosa se fragiliza como um eco mítico que não deixa de ter função operacional no sistema narrativo da história da arte brasileira, que muitas vezes recorre às relações entre centro e margem, seja a partir de uma perspectiva social – o erudito e o popular – ou geográfica – no âmbito nacional ou internacional –, para se constituir. Todavia, Leonilson viveu em uma metrópole global, transitando por outros grandes centros urbanos, e teve boa recepção de seu trabalho no mercado da arte de seu tempo.
Pedrosa apela, então, para um segundo aspecto que selaria em definitivo o destino marginal de Leonilson. Diz o curador: “E, sobretudo, Leonilson é marginal porque, no final dos anos 1980 no Brasil, é um homem gay, e, a partir de meados de 1991, passa a viver com HIV, o que suscitava preconceitos e discriminações no contexto muito mais conservador da época.” De fato, a sociedade da época era muito mais intolerante do que hoje, contudo, ao deduzir sua “marginalidade” de um dado específico de sua existência, por mais que este permeie seu fazer, acaba-se por reduzir sua prática à categoria de documento, esvaziando sua capacidade de comunicar amplamente com sujeitos perpassados por experiências distintas daquelas do artista.
Um rapaz muito sensível
O apelo sentimental do trabalho do artista expressa a potência do patético. O termo, despido de suas tonalidades pejorativas, visa expressar a qualidade daquilo que é carregado de paixão – ou pathos. A intensidade do sentir de Leonilson não se represa nem se cristaliza, mesmo após tomar forma, apelando, por vezes, a clichês, ou fazendo uso de elementos da cultura pop. A prática de José Leonilson toca, por fim, sentimentos que estruturam nossa experiência no mundo: o amor, a solidão, o medo da morte e o desejo; sensações comuns, ainda que manifestadas individualmente.
Suas imagens, despertadas pela memória de relações amorosas e pela experiência de dramas subjetivos, configuram-se em signos sintéticos que se repetem em diversas composições. Elas apresentam figuras facilmente decifráveis. Eis uma ponte, ali jaz um abajur, acolá um vulcão. Entretanto, mesmo amarrados a sentidos específicos – o fogo é o “espírito que não se apaga”, a âncora “é um símbolo para dizer que a gente persiste na vida”, a pedra representa os obstáculos do caminho, como explicita o artista – os signos se esvaziam, tal qual o espaço que os circunda.
Nesses objetos representados esquematicamente, projetamos sentidos que preenchem suas formas sem que isso anule aqueles atribuídos pelo artista. Reconhecemos seu destemor na tentativa de dar forma àquilo que escapa às significações. Dessa tarefa hercúlea, só poderiam resultar fragmentos de imagens e frases que apontam para a parcialidade de todo dizer íntimo.
A economia dos recursos visuais, assim como a fragmentação narrativa que constitui a obra de Leonilson, dá a perceber que não se trata de documentar, de fato, uma experiência individual, mas de compreender que é a partir dela que nos expressamos, agenciando a rede de símbolos socialmente instituídos. Os signos de Leonilson tem seus sentidos definidos e sua repetição constitui não só seu estilo individual, mas uma espécie de vocabulário mítico.
Seus elementos esparsos dispensam a profusão das alegorias sem rejeitar sua proficiente capacidade de fomentar narrativas. Ao mesmo tempo que apresenta mensagens cifradas e cenas específicas, a falta de detalhamento da forma e do contexto envolve tudo em mistério. De modo que o tom confessional de seu trabalho não gera transparência, mas opacidade. Somos lembrados de que a subjetividade é refratária a qualquer representação.
Favorite Game
A arte é território fértil para o florescimento e enraizamento dos mitos. Afinal, suas manifestações não só tomam de empréstimo o repertório de temas e formas mitológicas, como reiteram, deslocam e atualizam seu arcabouço narrativo, simbólico e ideológico para estabelecer sua continuidade. As próprias operações da arte mitificam seus agentes e criações, de modo que suas instituições se embebem de mitos, reforçando o verniz de diferença que reveste seus sujeitos e objetos. O gênio é uma de suas figurações, assim como o Outsider. Esses termos visam destacar a noção de originalidade, estruturante para a escrita da história da arte.
A sobrevivência e a pertinência dos mitos provam sua capacidade de sintetizar simbolicamente saberes e crenças, revelando sua funcionalidade como linguagem. Afinal, mais do que um conteúdo, o mito é uma forma de dar significação às coisas, conferir sentidos aos seus mistérios. Sua assertividade, contudo, provém da reiteração, seja na repetição das suas formas ou na sua circulação na cultura.
Se o problema não está na sua existência – entre realidade e ficção –, repousaria no seu uso. O mito, afinal, reduz a complexidade, enrijece os sentidos, desencoraja a formulação de novas perguntas. A tarefa do crítico é, também, decifrá-los. Para isso é necessário esmiuçar sua espessura histórica, friccionar suas formas, observar suas implicações sociais, suas raízes culturais, seu impacto psicológico, os contextos onde é re-apresentado. Essa é uma tarefa difícil, pois muitas vezes torna-se necessário questionar suas próprias crenças, abrir fendas em seus ídolos para dar espaço a leituras que não reiterem sentidos já dispostos, mas renovem, de fato, o interesse engendrado por suas práticas.
Jogos Perigosos
É recorrente a sobreposição da imagem de Leonilson àquela de São Sebastião, agenciada em algumas de suas obras. Trata-se menos de sua imagem mítica, do que sua imagética de ícone queer. Contudo, um espelhamento muito mais efetivo, acredito, se faria com Narciso.
Os duplos, notavelmente, se repetem nas composições do artista. Suas figuras esquemáticas encaram-se, conectam-se, habitam uma dentro da outra. Remetem ao um que busca seu outro para refazer a unidade original perdida – promessa de reencontro – como disposto no Banquete de Platão. O tema do duplo, segundo Pedrosa, é “primordial na imagética gay”. Se podemos ler nelas o desejo de encontro, conexão e pertencimento entre dois homens, também podemos ver ali uma inclinação ou fixação por si mesmo. Narciso, é preciso lembrar, se apaixona não por si, mas pela própria imagem que vê refletida nas águas de um lago e que acredita ser de um outro, sem reconhecer-se nela.
Narciso encontra-se, não por acaso, na origem mítica da Pintura. Leon Battista Alberti, autor do De Pictura (1450), tratado fundamental para as origens da teoria da arte, credita o nascimento da arte ao momento em que Narciso – homem ilha, handsome & selfish – encara a própria imagem na água. Mas há, também, um segundo mito originário na arte. Este encontramos em Plínio, o Velho, que em sua História Natural apresenta a narrativa da filha de Butades, artista do barro, que desenha a sombra de seu amado sobre a parede, uma tentativa de reter sua imagem frente à sua iminente partida. Esse desenho, registro indicial de algo prestes a se tornar ausente, engendra outras formas, pois Butades em seguida o transmuta em outro corpo, conferindo-lhe forma escultórica.
Nenhum dos dois é mais verdadeiro que o outro, afinal tratam-se de mitos. E, de fato, eles não precisam concorrer, já que, juntos, fazem convergir e cohabitar Eros e Tânatos, expressando nossa resistência em abraçar a transitoriedade das coisas e nossa vontade de fixar nossa existência no mundo. É o que nos revela a forma Museu, simulacro do mausoléu, que se propõe uma espécie de amplo e profundo espelho da cultura humana.
A radicalidade do caráter confessional da obra de Leonilson parece anunciar o momento atual no qual impera a exagerada exposição da intimidade. Ao tematizar a própria vida, a tela ou papel se tornam espelhos nos quais Leonilson pode projetar a face interior. Assim como no autorretrato, a tela e o espelho tornam-se – virtualmente – uma mesma superfície. O autor se percebe, se aprimora e se registra na imagem que permanecerá e cuja circulação e aceitação no sistema cultural contribuirão para sua percepção como uma figura heroica, um ícone.
Mas em sua obra o narcisismo está investido de melancolia, de modo que seu trabalho expressa o luto constante das experiências que lhe atravessam. Em vez de conformar uma imagem idealizada de si, permite expor fragilidades, inseguranças, incertezas que geram um sentimento de inadequação que, por ironia, dissemina-se em nossa sociedade.
Serviço
Leonilson: Agora e as oportunidades
Exposição
23 de agosto a 11 de novembro de 2024
Museu de Arte de São Paulo
Av. Paulista – São Paulo/SP
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André Torres é Mestre em Linguagens Visuais pelo PPGAV-EBA-UFRJ (2016) e Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio (2023).