2022 é uma efemeridade capciosa. No centenário da Semana de Arte Moderna e bicentenário da Independência do Brasil, a pandemia de Covid-19 e a crise política precipitam graves retrocessos e o país reinicie nas violência do colonialismo. Vidas de pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, mulheres, ambientalistas e imigrantes ameaçadas; tradições étnico-raciais em processos deliberados de apagamento. Contra o que Vladimir Safatle define como “rituais periódicos de destruição de corpos”, artistas e ativistas insurgem-se em atos e intervenções sobre marcos históricos que perpetuam o imaginário colonizador no espaço urbano.

Em que medida os efeitos que a intervenção do grupo Guarani Yvyrupá com tinta vermelha sobre o Monumento às Bandeiras, em São Paulo, em outubro de 2013, teve sobre a arte e a cultura brasileira seriam comparáveis ao choque que a derrubada da estátua de um czar russo causou nas vanguardas estéticas europeias no começo do século 20? Se o levante iconoclasta da Revolução de Outubro de 1917 – reencenada por Eisenstein em October (1927) – resultou numa reação em cadeia, repetindo-se em movimentos de igual potência, conectados a outros recentes, como a Primavera Árabe e o movimento Black Lives Matter, a ação coordenada pelos Guarani Yvyrupá para protestar contra um projeto de lei que renegava a demarcação de terras indígenas, sinaliza o início de uma guinada contranarrativa descolonial no contexto da arte e da sociedade brasileira.
Enquanto o rolar da cabeça do czar atingiu em cheio a tradição da escultura ocidental, escoando no ensaio crítico Caminhos da Escultura Moderna (1977), de Rosalind Krauss, e se atualizando no texto e projeto cocuratorial de Massimiliano Gioni em Unmonumental, no New Museum, em 2007, por aqui, os atos sobre o Monumento às Bandeiras foram a faísca para o crítico e professor Tadeu Chiarelli começar a pesquisar os modos de recepção da obra de Brecheret por artistas atuantes em São Paulo, como Jaime Lauriano, Sydney Amaral e Regina Silveira. Um levantamento recente do Instituto Pólis indicou que pelo menos 14 das 380 estátuas em espaços públicos na cidade de São Paulo são hoje disputadas. Entre elas, Duque de Caxias, Padre Anchieta, Pedro Álvares Cabral – que durante a 34a Bienal de São Paulo foi enfrentada pelas entidades-cobras de Jaider Esbell, no lago do Ibirapuera – e o Monumento às Bandeiras, grande palco dos atos de contestação da história oficial do Brasil, que escancara a opressão do conquistador sobre os povos indígenas e africanos escravizados.
Concebido, em 1920, por Victor Brecheret, um dos “heróis” da Semana de 22, para um concurso público de celebração do centenário da Independência, o Monumento às Bandeiras só foi edificado em 1953. Durante décadas, a estátua em homenagem aos bandeirantes que “desbravaram” o interior do estado de São Paulo em busca de ouro foi considerada uma alegoria do espírito empreendedor paulista. Seu significado começou a ser discutido durante o regime militar, mas foi o vermelho Guarani Yvyrupá que trouxe a memória do sangue indígena derramado nas conquistas e expedições do século 17 e elevou a estátua à condição de alegoria dos traumas coloniais que ainda vigoram no país. Tinta vermelha que, defendeu Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá, em Manifesto publicado após a intervenção, não foi usada como agressão, mas como símbolo de transformação.

Passado imediato
Ensacamento (1979), do coletivo 3NÓS3, é um marco das intervenções artísticas em monumentos. Embora o projeto de vendar e amordaçar 68 estátuas na capital paulista remeta aos atos derrubacionistas que fizeram cabeças rolar nas revoltas sociais de junho de 2020, o debate descolonial não foi um disparador direto das ações do coletivo nos anos finais da ditadura militar. “Essa leitura mais política que relaciona os sacos plásticos com a prática da tortura foi sendo firmada a partir dos anos 2000, quando a arte política e o artivismo tomaram corpo nos discursos estéticos e de ação direta de muitos coletivos”, diz o artista Mario Ramiro à seLecT, enfatizando que as intenções que moveram o coletivo foram de ordem estética. “Embora o Monumento às Bandeiras tenha uma dinâmica na sua horizontalidade, rara nos monumentos, predominantemente verticais, aquele depuramento moderno das figuras não era tão diferente da estética neoclássica de outros monumentos. É uma grande obra, mas as matrizes estéticas, herdadas da tradição greco- -romana-europeia que chegaram até nós pela colonização, foram contrapostas naquele momento por uma nova matriz que nos influenciava, conceitual e performática”, completa. “Nisso parece haver uma sintonia com o tema da revisão histórica em tela nos dias de hoje.”

A matriz conceitual que influenciou o 3NÓS3 também está na base da instalação site specific Monudentro (1987), de Regina Silveira, que ataca a solidez da escultura – clássica e moderna –, reduzindo-a a uma membrana fina, delicada, mole. Instalada em vinil adesivado sobre as paredes de outro monumento moderno – o Pavilhão da Bienal, de Niemeyer –, a obra simula a projeção da sombra distorcida do Monumento às Bandeiras. No fim dos anos 1980, com a recém-reconquistada democracia, a artista desafiava o cinetismo horizontal e o movimento “progressista” da estátua de Brecheret, invertendo-o, impondo-lhe resistência. Com título poético de Paulo Leminski, Monudentro literalmente produz uma dobra no fluxo da história, invertendo a exterioridade ostensiva que orienta as representações heroicas da história oficial, em benefício de um olhar autocrítico, contribuindo, com isso, para derreter delírios autoritários e convicções coloniais.
Movimento parecido impulsiona o artista pedro frança, em Ibiritaquera (2021), que propõe o restauro do terreno original da região do Ibirapuera, que foi várzea do Rio Pinheiros. Além de inverter o fluxo geológico, seu projeto prevê um giro de 180 graus da estátua, apontando a cabeça dos cavalos e expedicionários de volta para o litoral – onde teriam iniciado a invasão –, desviando-os da meta do Norte e da Floresta Amazônica. “Desmontar a infraestrutura de asfalto, cabos, encanamento, postes, sistemas de drenagem etc., repondo parte dos buracos resultantes com terra e refazendo a conexão com córregos e rios. Com o tempo, a vegetação úmida da várzea deve retomar a região”, aponta o artista em um dos quatro pontos da proposta. “O novo parque/pântano torna-se um espaço aberto, sem função específica e acolhedor de possíveis associações entre pessoas, entre espécies.”

Esse autêntico parque interespécies idealizado por pedro frança poderia ser frequentado por Denilson Baniwa e seu Pagé-Onça, que na performance Hackeando a 33a Bienal de São Paulo (2018), no corpo da série Re-Antropofagias, passa pelo Monumento às Bandeiras em ação de retomada territorial e disputa de narrativa.
Deposição do pedestal
Notável expoente da escultura em escala monumental, José Resende, em 1972, escreveu na revista Malasartes um texto sobre a deposição do pedestal pela arte moderna e contemporânea, usando como imagem referencial o Corcovado sem o Cristo Redentor. Um diferencial determinante do Monumento às Bandeiras, entre seus pares, é justamente a ausência de pedestal. Sua singularidade em relação a outros monumentos históricos é sua proximidade com o chão. Seu fácil acesso é o que pode, em última instância, promover o rebaixamento dos heróis à vida prosaica do cidadão, a afinidade entre os deuses olímpicos e os reles mortais.
A deposição do pedestal no projeto de Brecheret para a expedição bandeirante tem uma dimensão paradoxal em relação a outro marco paulistano de sua autoria, o vertical e colossal Duque de Caxias, por muito tempo considerado a maior estátua equestre do planeta. A dimensão simbólica de um monumento ao rés do chão vem promover a diluição de limites entre arte e vida e facilitar cenas como a “danceata”, ou parada clubber, que aconteceu num sábado de maio de 1998 em São Paulo. A Parada da Paz pelo desarmamento da população reuniu no local 15 mil pessoas – entre drags, ravers, cyberpunks, freaks, tops, “todos os clãs, reunidos e misturados”, rendendo o texto “Eu dancei sobre o Monumento às Bandeiras, em Pleno Ibirapuera”, na coluna Noite Ilustrada, da jornalista Erika Palomino na Folha de S.Paulo. Nova versão dessa festa interespécies deveria ser convocada contra a política armamentista do governo Bolsonaro. Entre a coluna festiva e pacifista de 1998, as notícias dos encapuzamentos anônimos nos cadernos policiais dos jornais de 1979 e as imagens da intervenção Guarani Yvyrupá que viralizaram na internet, em 2013, publicações e postagens ao longo do tempo e das mídias fazem desse símbolo modernista um espaço discursivo com significados periodicamente renovados.

“A mídia foi parte essencial das intervenções, uma vez que ela tornava esses eventos notícia e dava destaque para as imagens-acontecimento”, diz Mario Ramiro sobre Ensacamento. “Mas isso não foi suficiente para mobilizar uma discussão pública mais ampla. As intervenções foram inicialmente divulgadas em reportagens que as tratavam como acontecimentos na cidade e não como eventos artísticos. E mesmo como assunto dos cadernos de cultura as ações performativas na cidade demoraram para ser integradas aos discursos estéticos e políticos em pauta hoje.”
Diferente dos modos de circulação da informação nos anos 1980, restritos a veículos noticiosos convencionais e centralizados, a disputa de narrativas hoje tem um aliado fundamental na estratégia midiática de difusão propiciada com o advento da web 2.0; uma manifestação ou ato político se alastra como fogo em palheiro nas mídias sociais. Mas tudo depende do entendimento comunicacional dos propositores da ação. Pensando nisso, o artista Diego Castro, que trabalha com arquivos de imagens de grande circulação na imprensa, criou a instalação Gato Escaldado 24J (2021), exposta na coletiva Espumas Siderais, na Galeria Marli Matsumoto, em São Paulo, que decupa um frame de vídeo que circulou no Instagram no dia do protesto reivindicado pelo grupo Revolução Periférica. A imagem do Borba Gato em chamas se transforma numa pintura encoberta por filtros em tons preto, cinza e vermelho. Manifestação muito semelhante à do incêndio na estátua do bandeirante aconteceu no mesmo 24 de julho, no Rio de Janeiro, tendo como alvo um monumento a Pedro Álvares Cabral, que pouco repercutiu. O 24J foi dia de inúmeras insurgências contra o governo federal. “Por que o fogo no Borba Gato ganhou as páginas analógicas e digitais na mídia brasileira inteira, enquanto o Cabral incendiado circulou em poucos perfis de Instagram? Por que uma ação se tornou símbolo de levante social com a subsequente pressão massiva por parte da sociedade pela soltura do ativista Paulo Roberto da Silva Lima, o Galo, e a outra ninguém mais lembra que aconteceu nem sabe dizer quem foram seus autores?”, indaga o artista para seLecT. “Colocar fogo na estátua foi apenas uma das diversas estratégias de guerra midiática que o grupo Revolução Periférica adotou. Além de pneus e fogo, foram até a Avenida Santo Amaro munidos de cinegrafistas e fotógrafos. E no mesmo dia criaram uma conta no Instagram, tornando-se os principais emissores das notícias e motivações do ataque”, completa.

Memória colonial partilhada
Achille Mbembe, teórico político camaronês, aponta que monumentos são a “expressão espetacular do poder de destruição e escamoteação que, do princípio ao fim, moveu o projeto colonial”. Neles, raramente estão representados mulheres, negros e indígenas.
Principal alicerce do projeto e do imaginário colonial nas Américas, o invasor Cristóvão Colombo foi alvo frequente dos protestos que explodiram em cidades latino-americanas e estadunidenses catalisados pelo assassinato de George Floyd, em maio de 2020. Membros do povo indígena Misak enlaçaram as cabeças das estátuas de Colombo e Isabel a Católica e arrancaram o conquistador italiano de seu pedestal, na cidade colombiana de Barranquilla. Em São Paulo, o Revolução Periférica incendiou o Borba Gato. Nos debates que se seguiram sobre a legitimidade da destruição de estátuas e sobre as contradições e conflitos da memória que elas promovem, artistas realizam projetos que expressam uma vontade coletiva de fazer oposição a uma narrativa hegemônica. Pensar que representatividade têm hoje homens brancos, armados, eternizados em mármore e granito e posicionados estrategicamente no tecido urbano moveu Evandro Prado a começar a série de esculturas e instalações Minimentos (2016), seguida de Desmonumento (2020-2021).
Colombo, Mitre, Belgrano, Isabel a Católica, Valdívia, Quesada, Aguirre, Zabala, Pedro Álvares Cabral, Marechal Deodoro, Duque de Caxias, Anhanguera, Borba Gato… Personagens que legitimam a ideologia colonial e militar na América do Sul compõem a série Desmonumento (2020-2021), de Evandro Prado. “Não posso concordar que as estátuas são intocáveis ou que sua queda seria o seu simples apagamento”, aponta Prado em texto do livro lançado durante exposição no Centro Cultural São Paulo, em fevereiro de 2022. Sua forma de tocá-las, portanto, foi pintar aquarelas em pequeno formato – procedimento caseiro escolhido pelas condições impostas pela pandemia do Coronavírus –, com representações dessas estátuas pichadas, tombadas e decapitadas, mesmo que na realidade isso nem sempre tenha acontecido.

(2020-2021), de Evandro Prado
O incômodo e o monstruoso
Tensionar crítica e criativamente as políticas da memória é o intuito do projeto coletivo demonumenta, que reúne docentes e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). A primeira fase do projeto contempla patrimônios arquitetônicos e escultóricos “incômodos” relacionados às comemorações da Independência do Brasil e à Semana de Arte Moderna de 1922. “É uma pena que nos concentremos apenas no Monumento às Bandeiras e no Borba Gato. Não nos faltam ‘monstrumentos’ a contestar”, diz a artista e docente Giselle Beiguelman à seLecT. “Pessoalmente, vejo o Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo como o mais terrível. É uma aula sobre as políticas públicas de memória como políticas de apagamento.” Segundo ela, em seu arranjo simbólico e plástico, a obra apaga da memória as histórias dos povos originários, da população afrodiaspórica, das mulheres e das vítimas da Inquisição. “Todos eles, atores fundamentais da história do Brasil.

demonumenta elabora modelagens em 3D e estudos sobre monumentos e “monstrumentos”. O termo é cunhado a partir das considerações de que a palavra latina monumentum acabou dando origem ao substantivo monstrum – ‘prodígio, mau presságio, aberração’. “Monumentos e monstros são, portanto, parentes próximos. São monstrumentos que ocupam as cidades com dedos em riste, espadas, cavalos e homens brancos fardados”, completa Beiguelman. Monstruosa é também a memória de Anhanguera evocada por Helô Sanvoy em Refazendo Mitos (2019-2020). O projeto, composto de uma ação urbana e um conjunto de proposições (Invocar/Evocar), parte de uma das histórias da origem do nome Anhanguera (do tupi “diabo velho”, ou “espírito maligno”). Segundo a narrativa popular, o nome foi dado por indígenas Goyá ou Goyazes ao bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva (pai) em seu caminho à caça de ouro. Diante da negativa da sinalização do caminho para o metal precioso, o bandeirante teria ameaçado com fogo a região e simulado a queimada atiçando fogo a um copo de cachaça. A ação de Sanvoy, realizada em fevereiro de 2020, consistiu em reencenar o fogo-fátuo de Anhanguera atiçando uma chama temporária, com tecidos encharcados com material inflamável no Monumento a Anhanguera (1924), de Luigi Brizzolara, localizado no Parque Trianon, na Avenida Paulista, em frente ao Masp. “Em contraponto ao fogo sobre museus e florestas, que apaga e promove o esquecimento da história, a ação fala do fogo como elemento criador, o fogo antropófago”, diz Sanvoy à seLecT.
Invocar/Evocar (2020), composto de três proposições, pode ser considerado um desenvolvimento da ação no campo da produção histórica. Mais ou menos na lógica do “quem conta um conto acrescenta um ponto”, a obra promove uma interessante torção dos elementos que conformam a história do encontro de Anhanguera com os Goyazes, invertendo a ordem dos fatores e criando novos sentidos: “Coloque uma dose de cachaça em um copo, coloque fogo na cachaça e beba em um gole. Beba enquanto ainda estiver pegando fogo”, indica a terceira instrução.
O Monumento a Anhanguera é outro alvo preferido dos protestos descoloniais – e talvez seu posicionamento em frente ao Masp conte pontos aqui –, começando pela marcha de cerca de 1,2 mil indígenas e quilombolas, em 2013, que por ali passaram atando-o com um tecido pintado com grafismos indígenas, antes de alcançar o Monumento às Bandeiras para tingi-lo de vermelho. A obra figura nas recentes listagens de monumentos que deveriam ser retirados ou derrubados, informa o texto de Isabela Leite no site do projeto demonumenta: “O Projeto de Lei 404-2020 de Erica Malunguinho, por exemplo, define-o como um dos ‘oito monumentos da cidade destinados a homenagear defensores e pessoas comprometidas com o sistema escravista’ e propõe sua retirada de via pública e armazenamento em museu”.
A contestação dos monstrumentos no contexto da arte contemporânea é fruto direto das pressões dos movimentos sociais. No ínterim entre esses âmbitos se insere o Grupo de Ação, que se autodefine como “aliança suprapartidária e anticapitalista de pessoas movidas por uma força sem nome próprio, feita no acaso da necessidade”. O grupo faz, desde o início do governo Bolsonaro, ações públicas de resistência com textos, pinturas, projeções, atos, performances e intervenções urbanas. Em outubro de 2020, eles dispuseram caveiras retiradas do lixo de uma escola de samba na base dos principais monumentos a bandeirantes em São Paulo. Mas é possível ler outras de suas intervenções na chave da descolonização. Como o Antidesfile, promovido em 7 de setembro de 2020, que desmonumentalizou o grito da Independência com recursos plásticos e poéticos como a bandeira: “Dependência e Morte”, escrita com tipografia de tags do picho paulistano.
Um símbolo da ausência de políticas públicas efetivas sob a pandemia é a estátua do patrono do Exército brasileiro, no Centro de São Paulo, cercada de pessoas sem-teto, sem dignidade e com fome. Há muito o que se pensar e discutir sobre a representatividade dos monumentos.
