Reenquadrar – repensar, reconsiderar, reimaginar – o amplo espectro da coleção permanente de arte porto-riquenha, latinx, caribenha e latino-americana do Museo del Barrio, de Nova York, é o intuito da exposição de longa duração Something Beautiful: Reframing La Colección, um recorte de cerca de 500 obras de um acervo de 8.500, adquiridas ao longo de mais de 50 anos.

O Museo foi fundado em 1969, no bairro do East Harlem, em Nova York, pelo artista porto-riquenho Raphael Montañez Ortiz, como um “museu de bairro”. O intuito foi garantir às comunidades imigrantes de Porto Rico e seus descendentes conhecimento, preservação e exibição de sua própria história natural, antropologia, cultura e arte, relacionando-a aos mundos da arte nos EUA, Caribe e diásporas globais. “Assim como o Studio Museum, no Harlem, o museu assume a pele dessa empresa tão bem-sucedida em Nova York, que é a ‘instituição museu’, para servir à comunidade latina ao norte do Rio Grande [o rio que delimita a fronteira Sul dos Estados Unidos com o México]”, diz Rodrigo Moura, curador-chefe do Museu del Barrio, à seLecT_ceLesTe.

O projeto de pensar o legado cultural porto-riquenho dentro de uma ecologia mais complexa, abrangendo as heranças africanas e indígenas da América Latina, se concretiza em Reframing La Colección. A curadoria, que Moura divide com Susanna V. Temkin e Lee Sessions, marca a identidade descolonial do Museo, situando um conjunto de artefatos pré-colombianos do povo Taino, originário do Caribe, como “centro vital” da exposição.

No processo de apagamento perpetrado sobre as civilizações ameríndias, o povo Taino foi durante séculos considerado extinto. Apenas recentemente historiadores, auxiliados por exames de DNA, confirmaram que um genocídio foi cometido no papel, quando o censo parou de contabilizá-los. O mesmo deu-se com o povo Tupinambá, entre outras etnias, no Brasil. Dados recém-divulgados do censo de 2022, que operou com novas metodologias, apontam que a população indígena no Brasil “cresceu” cerca de 90% desde a última pesquisa, em 2010. Simplesmente, por ampliar a outros territórios, além das terras indígenas demarcadas, a pergunta: você se considera indígena?

Sabe-se, porém, que a identidade indígena resiste em toda a América Latina desde muito antes e apesar dos censos, e que agora é potencializada por um movimento revolucionário de retomada por meio da arte.
ESCUTA DOS ANCESTRAIS
O portal de entrada desse ato de reenquadramento da coleção é o eixo temático Ocama Aracoel: Formas e Espíritos Taino e sua Influência no Movimento de Arte Nuyorican. Glendalys Medina, artista nascida em Porto Rico e criada no Bronx, identificada como nuyorican (palavra inventada a partir do encontro de new yorker e puerto rican), foi convidada e comissionada a realizar um site-specific. A instalação Cohoba (2023) promove o acesso à exposição evocando a cerimônia da cohoba, que representa o centro espiritual da vida comunitária taina. A maçaneta da porta é a releitura de uma kuisa, artefato mágico empregado para induzir o vômito e purificar os pajés antes do rito. Em formato de osso curvo, uma kuisa original é exibida em vitrine da sala seguinte, junto de outras peças tainas que, segundo o curador, sempre foram um “dispositivo vivo” da coleção, a ser alimentado.

Embora os artefatos se apresentem encerrados em vitrines, como manda a expografia etnográfica, a curadoria busca – sempre que possível – alimentar seu caráter mágico por meio do diálogo com a arte contemporânea. Ao redor do campo de espiritualidade ancestral formado pelos objetos de cerâmica e pedra, datados entre 1500 e 1200 a.C., se organizam trabalhos de potência mística e/ou ritualística de artistas como Jorge Soto Sánchez (1947-1987), Juan Sánchez (1954), Rafael Colón Morales (1941-2021), Héctor Méndez Caratini (1949), Virginia Jaramillo (1939), Ana Mendieta (1948-1985), Sheroanawe Hakihiiwe (1971) e Chico da Silva (1910-1985), artista cearense de ascendência indígena, com duas obras recentemente adquiridas pelo Museo del Barrio.

Ocama Aracoel, título de canto taino às avós e aos ancestrais, será o único eixo temático permanente ao longo dos 14 meses de duração de uma exposição composta de oito eixos, afirmando-se assim como um núcleo iniciático e comunitário da vida artística e dos legados culturais intersecionais nuyorican, latino-americana e latinx.
Something Beautiful: Reframing La Colección
Até 10/3/2024
Museo del Barrio
1230 5th Avenue, NY