“O futuro é ancestral”, frase tão óbvia quanto enigmática, é uma das mais famosas do líder indígena, filósofo e escritor Ailton Krenak, conhecido por pensar sustentabilidade enquanto construção de um modo de viver capaz de gerar e preservar segurança (pública e sanitária), saúde (física e mental) e educação (cidadã e “profissional”) sem esmagar subjetividades, vidas e culturas indígenas, embora não só. São reflexões tão profundamente ancestrais quanto atuais e que chegam a ser até futuristas. A contemporaneidade parece ser marcada pela sábia conclusão de que não há transformação da realidade material e objetiva sem que haja anterior e constantemente um movimento cultural no mesmo sentido.
J. Cunha, renomado artista plástico, designer, cenógrafo e figurinista baiano, responsável, entre outras coisas, pela concepção visual e estética do bloco afro Ilê Aiyê durante 25 anos, inaugurou, no dia em que se comemoraram os 474 anos da fundação da cidade de Salvador, a sua nova exposição individual no Museu de Arte Moderna da Bahia, intitulada Uanga, palavra de origem Bantu que significa feitiço, encantamento. Com curadoria de Daniel Rangel, a exposição segue o percurso de retomada da utopia concebida pela fundadora do museu, a arquiteta Lina Bo Bardi. O Solar do Unhão, onde funciona o MAM BA, é um conjunto arquitetônico que abrigou um complexo agroindustrial como os engenhos de açúcar, com casa-grande, capela, senzala, armazéns e cais, que atendiam à função de receber e exportar a produção de açúcar que vinha do Recôncavo da Bahia.

A ideia de Lina ao restaurar o Solar do Unhão e ocupá-lo com o Museu de Arte Moderna da Bahia, inaugurado em 1963, era criar um museu-escola de arte popular. Utopia que reflete um momento histórico de inigualável efervescência cultural e numerosas experimentações artísticas. O Masp, também projetado por Lina Bo Bardi, data de 1969, início dos “anos de chumbo” da ditadura militar. Na abertura, o museu organizou em seu vão livre a mostra individual Playground, do artista Nelson Leirner, com obras dispostas ao ar livre, convidando à interação dos transeuntes, afirmando a presença do corpo e da vida num período marcado pela iminência da morte. Já em 1982, com a inauguração do Sesc Pompeia, outro projeto de Lina, vivia-se um momento de esperança em relação ao fim da ditadura militar no Brasil, que só ocorreu em 1985. Percebe-se no projeto do Sesc Pompeia uma expressão da abertura de um espaço que antes era ambiente fechado, rígido e vertical, de fábrica. Agora as memórias do passado serviriam como base para abrigar novos ares, novas formas de vida, interações e expressões culturais. Uma proposta que veio a calhar com alguns dos anseios comuns naquele momento.
O Museu de Arte Moderna da Bahia, sob a atual direção de Pola Ribeiro, e curadoria-geral de Daniel Rangel, tem realizado uma série de ações que têm em comum a finalidade de ampliar os diálogos com parcelas significativas da população, inclusive artistas proeminentes da Bahia, além de adotar práticas que aproximam diferentes públicos, como, por exemplo, a utilização de um dos seus espaços para promover a ocupação do Acervo da Laje, um espaço museal independente que promove ações de arte-educação no bairro de Plataforma, subúrbio ferroviário de Salvador; mais recentemente, o Museu de Street Art de Salvador (Musas) também ocupou a Sala 3 do MAM. Em Uanga, atual exposição de J. Cunha, haverá um convite à participação do público por meio de oficinas e elaboração de instalações artísticas.
ENCRUZILHADA
Há um ano, o MAM BA realizava Encruzilhada, definida por Ayrson Heráclito, cocurador com Daniel Rangel, como a maior exposição afro-brasileira da história. Por meio dela, o Museu de Arte Moderna da Bahia inseriu obras de artistas baianos, dos mais jovens aos já renomados, no seu acervo. Encruzilhada foi um marco na inserção de novos artistas, de um novo público e de uma nova forma de a instituição existir perante a sociedade baiana e brasileira. Com iniciativas como essas, o MAM BA promove a noção de que o próprio museu e os trabalhos de artistas através dele apresentados precisam ser reconhecidos e respeitados como bem comum a toda a sociedade. Ao que parece, há um fator fundamental no desenvolvimento desse entendimento: ações capazes de permitir que os indivíduos dessa sociedade possam se reconhecer numa instituição cultural.
O profundo interesse que uma parcela significativa da sociedade apresenta pela preservação e manutenção das diferentes expressões das identidades e entidades culturais brasileiras historicamente surge como contrafluxo. Ou seja, como resposta a períodos de relativo retrocesso intelectual, desmantelamento de estruturas institucionais voltadas para o amplo bem-estar social e, portanto, descuido em relação à riqueza material e imaterial da população brasileira, sobretudo a mais pobre e/ou vulnerável.
Atuante há mais de 50 anos, J. Cunha vivenciou muitos momentos de declínio e ascensão desse interesse público, mercadológico e acadêmico acerca dos símbolos e simbologias ancestrais capazes de representar a beleza das expressões culturais brasileiras.
Apesar dessa constante variação, J. Cunha, que se autodeclara descendente dos povos nativos, afro-brasileiros e sertanejos, tomou como postura política e ideológica a persistência na preservação de narrativas e símbolos importantes para a sua e para as nossas identidades culturais. Também por ser fruto dessa fé, seu trabalho mostra-se atemporal. Suas obras da década de 1970 são marcadas pelo uso de cores, representação de símbolos e adoção de formas que até hoje inspiram quadros vendidos nas ruas e ateliês do Pelourinho. Ainda no século passado, J. Cunha realizou obras que facilmente poderiam ser creditadas a algum jovem artista imerso na utilização de ferramentas tecnológicas. Já as obras realizadas a partir dos anos 2010 abordam, por exemplo, vivências sertanejas com nítida presença da cultura dos povos nativos e afro-brasileiros.
J. Cunha, ao insistir na preservação desses símbolos, também se arriscou a receber o título de antiquado, repetitivo, caindo assim no esquecimento, na miséria. Para um artista, uma convicção como essa não é de fácil manutenção. No entanto, ele nos mostra ser absolutamente possível estar enraizado e antenado. Sua obra, sua pessoa e suas ideias são inspiradoras, contemporâneas, ancestrais e até “futuristas”. Ao evidenciar a atualidade da ancestralidade, J. Cunha mostra-se muito mais antropofágico do que a imensa maioria daqueles que tentam ou tentaram sê-lo. Seu trabalho nos mostra que a ancestralidade não está ligada somente a tais raízes culturais, mas também à continuidade. É presente e futuro.
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SERVIÇO
Uanga – J. Cunha
Até 30/7
Museu de Arte Moderna da Bahia
Av. Contorno, s/n°, Solar do Unhão
mam.ba.gov.br