Algumas premissas que temos sobre o que é um ser vivo são contingentes à Terra – como a vida baseada em carbono, a imprescindibilidade da água para sua formação, e assim por diante. Muitas hipóteses foram levantadas por pesquisadores a respeito de vidas não baseadas em carbono – como a de que compostos de silício poderiam exercer as mesmas funções vitais –, mas também de organizações completamente diferentes de organismos, como aqueles sem separação celular e cadeias de reações químicas autocatalíticas complexas. Mas como podemos identificar vida fora da Terra, se ela provavelmente não se parece em nada conosco? A pergunta já rendeu um sem-número de artigos sobre os problemas de definir o que é vivo através de axiomas universais. A vida, enquanto geradora de complexidades, é avessa à axiomática.
Essas questões marcam a exposição Viagem ao Centro da Terra, da artista Denise Milan. Qualquer ceticismo ao ouvir sobre “a vida das pedras” se dissolve ao entrar na gruta onde as obras estão expostas, no 24o andar do Farol Santander. Com luz baixa e ao som de Ópera das Pedras, composta por Marco Antônio Guimarães, sentimos as pedras emanando luz e ressoando uma melodia vinda das profundezas.
A sala expositiva é revestida e modelada como uma gruta, com as obras laterais abrigadas dentro de paredes pretas que ondulam pelo perímetro, vistas através de buracos cortados com o propósito de nos fazer procurar ângulos para espiar as pedras. Pareceria um truque cênico óbvio, se não fosse empregado com tanto rigor pela artista ao construir jogos de iluminação, espaços com espelho infinito e formas de olhar que trabalham a fisicalidade do visitante. Algo de suspensão de descrença permite uma impressão menos cenográfica e mais de ingressar em um espaço místico, algo sagrado e algo alienígena, onde vemos segredos sobre o centro da Terra.
Já o espaço central guarda uma narrativa em obras. Seu fio condutor é a origem da vida – a das pedras, mas também da Terra e de seu processo de abiogênese. A primeira obra apresenta três recortes aplanados de geodos que, como cortes transversais em estudos anatômicos, nos revelam seus processos internos. Formados como o número 8, símbolos do infinito ou células em processo de divisão, os geodos remetem simultaneamente à microbiologia e ao imensurável.
A obra seguinte no espaço central da exposição é fruto de “acidente”: uma obra se quebrou durante a montagem e se tornou outra. Agora aplanada sobre um painel luminoso em formato de ovo, remete a um útero e a um nascimento. Atrás do nascimento, uma quebra: um geodo repartido em dois forma um pilar que centraliza os olhares da sala, com seu topo flutuando sobre o vazio de uma parte perdida. As quebras não são meros acidentes fortuitos, que lembram as histórias do acaso como agente da história da arte – ainda que o ocorrido durante a montagem ganhe tom anedótico na fala do curador Marcello Dantas: “Uma obra se quebra e outra obra nasce”. Se levarmos a sério a premissa de Milan, não se trata de acidente, mas de vontade viva. A pedra é agente no sentido forte, como um ator em uma performance. A quebra, sua subjetividade: revela suas estruturas internas, sua formação, seu drama.
Esse foi o principal conteúdo de minha conversa com a artista durante a abertura da exposição. Comentei que ela imprimia um grande rigor formal a uma obra com dimensão readymade, em que o material já existe no mundo. A isso ela respondeu: “É porque é preciso ver a pedra não como objeto, mas como protagonista”. Suas montagens são rigorosas ao permitir com que as pedras falem; ainda quando cria jogos de luz e sombra, ou trabalha com a semelhança com silhuetas e símbolos humanos, ela o faz respeitando formas, dimensões, cores e vontades da matéria.
Descentralizar o humano como criador – em tempos de reflexão sobre o não humano, obras interespécies, começos e fins extra-humanos e cósmicos – é também o descentralizar como o paradigma da vida. É sair da perspectiva do humano como ápice evolucionário na Terra, como imagem absoluta da criação, como finalidade última de uma natureza instrumentalizada e como etapa final em uma cronologia na qual informações, máquinas, sistemas biológicos e outras espécies provavelmente sobreviverão por mais tempo.
Para além disso, Milan sustenta que as pedras têm muito a nos ensinar sobre complexidade. Sua predileção pelos geodos não se dá apenas pela sua atratividade visual, mas pela sua gênese. Ao lado de um, ela me explica que ele se formou a partir de uma bolha em condições de extrema pressão e calor, e o que estava dentro sobreviveu em eterna convivência. Esse trauma geológico é parte da geocosmogonia que ela chama de “drama da matéria”. Ela conclui que a pedra “não é um ou outro”, e com ela aprendemos sobre a convivência em nossa luta pela sobrevivência.
Claro que pensar na pedra como vida é uma liberdade poética. Pelo menos, pelas definições mais abrangentes que temos de vida: como geradora de complexidade. Os processos de formação geológica não são, isoladamente, geradores de complexidade. Eles obedecem aos processos entrópicos que caminham para a petrificação de todo o universo em um estado de equilíbrio energético perpétuo (a chamada morte térmica do universo) e, em sentido estrito, não caminham para gerar mais e mais complexidade. No entanto, duas considerações permitem falar da vida das pedras.
A primeira é que a vida não é um processo isolado de toda a formação geológica que levou à abiogênese. O pensamento de todos os acontecimentos do planeta como um continuum não permite que as pedras sejam separadas da vida que surge sobre elas, já que a abiogênese por definição é o surgimento do orgânico a partir do inorgânico. A segunda é pensar não apenas na pedra como nosso antepassado, mas no presente e no futuro: o planeta todo como um sistema vivo, em que nada existe sozinho. Nas palavras da artista, “o cristal conduz às memórias das origens e do futuro”. O drama da matéria ressoa, assim, em tudo que existe, cantando profecias do que existirá.
Serviço
Denise Milan – Viagem ao Centro da Terra
Até 9/2/25
Farol Santander, São Paulo