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Wagner Schwartz em apresentação de La Bête no Palais de Tokyo, em Paris, em 2018 (Foto: Benoit Cappronnier/ Cortesia do artista)
Postado em 18/03/2019 - 1:19
O corpo de uma geração
Quem é, o que faz e o que pensa o criador de La Bête, Wagner Schwartz, performer e escritor que tantas ameaças recebeu
Márion Strecker

A proposta da performance La Bête (2005), de Wagner Schwartz, é permitir que o público manipule as articulações do corpo do performer assim como se podem manipular as dobradiças das peças da série Bichos, que Lygia Clark desenvolveu em metal entre 1960 e 1964. Na cena inicial, o performer brinca com uma pequena réplica de plástico de um Bicho. Ele está nu e superconcentrado, bem como a plateia. Na cena seguinte, ele convida o público a manipular seu corpo. Homens, mulheres e eventualmente crianças aparecem para fazer as mais variadas experimentações, trocando a posição de suas pernas, braços, tronco e cabeça, testando os limites físicos do artista e sua capacidade de ficar parado na posição arbitrária que alguém determinou. E assim uma hora se passa.

A ideia dessa performance surgiu quando Schwartz se deparou com um Bicho de Lygia exposto numa caixa de vidro fechada, afrontando o objetivo original da artista. Desde 2005, cerca de dez apresentações de La Bête ocorreram no Brasil e na Europa, tanto em espaços expositivos quanto em teatros. Diversas crianças se divertiram com La Bête, como no Instituto Goethe de Salvador, em agosto de 2017. “Lá, três crianças resolveram me dobrar e me desdobrar a performance inteira. Teve uma hora que eu ficava muito pesado e elas me largaram de lado e começaram a brincar entre elas. Elas viraram os bichos, elas começaram a se dobrar! Foi belíssimo!”, relembra o artista em entrevista à seLecT. “Tanto que tive vontade, depois, de fazer La Bête para crianças!”

Mas chegou setembro de 2017 e Wagner apresentou-se na abertura do Panorama da Arte Brasileira, exposição bienal realizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, naquele ano sob curadoria de Luiz Camillo Osório. Tudo teria transcorrido na normalidade habitual se um vídeo amador com imagem de uma criança tocando o tornozelo do artista não tivesse sido disseminado nas redes sociais, à revelia dos pais e com ilações de mentes perversas. O museu havia instalado aviso de que haveria nudez no recinto, não havia nada de erótico na performance, a criança estava acompanhada da mãe, mas, mesmo assim, um grande bafafá desencadeou-se.

Com base em publicações maliciosas, o Movimento Brasil Livre (MBL) acusou La Bête de “repugnante”, “crime” e “erotização infantil”. O então deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) chamou os envolvidos de “canalhas” e tachou a performance de “pedofilia”. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP) os considerou “destruidores da família”. Grupos extremistas protestaram em frente ao museu e chegaram a agredir funcionários. O artista teve de prestar depoimento de quase três horas em Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia. O Ministério Público de São Paulo abriu inquérito. A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Maus-Tratos, no Senado Federal, convocou curadores, a mãe da criança e o artista para prestarem depoimento. Wagner Schwartz foi xingado por milhões e recebeu cerca de 150 ameaças de morte.

Disseminar acusações criminosas e mentiras deslavadas nas redes sociais é fácil, como foi visto na última campanha eleitoral. Apagar os absurdos é trabalho de Sísifo. Ainda este ano Schwartz conseguiu fazer tirar do ar um meme com sua foto que estava na página de Jair Bolsonaro.

“Hoje, eu acredito que essa foi a melhor coisa que aconteceu em 2017”, diz Schwartz. “Apesar de que foi meu corpo que sofreu todo esse ataque, a gente falou de arte. A gente disse coletivamente: ‘Aqui vocês não botam a mão!’ Foi um momento em que não precisei falar, porque todas as pessoas falaram por mim. Acho que, se eu fizesse hoje La Bête para crianças, ia ter uma fila enorme de crianças com os pais, para a gente brincar com o corpo nu em cena. O tanto de cartas que recebi, de e-mails de mães falando que adorariam levar o filho, a filha, para participar desse trabalho! Porque é um trabalho absolutamente lúdico, quase infantil, pedagógico. Este daqui é o pé, você pode levar o pé até de um lado, você não pode esticar muito a pessoa, senão machuca. Uma pessoa está aprendendo o que é o corpo ali. Mas o problema não é nosso com essas pessoas. É nosso com essa lei da violência que está regendo o País”, diz Schwartz.

Domínio Público
Artisticamente, a resposta que Wagner Schwartz deu ao episódio veio, em 2018, no Festival de Teatro de Curitiba. Convidado a criar um novo espetáculo, juntou-se a outros três artistas atacados por forças conservadoras: a coreógrafa Elisabete Finger, sua amiga e mãe da criança que participou de La Bête no MAM-SP; Renata Carvalho, a atriz trans que teve censurada sua peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu; e Maikon K, o performer de DNA de DAN, em que atua nu e imóvel dentro de uma bolha transparente. Quando Maikon fez a apresentação, em 2015, no Sesc Pompeia, a convite de Marina Abramović, foi tudo certo. Mas, em frente ao Museu Nacional da República, em Brasília, ele teve o cenário danificado e foi levado a uma delegacia sob acusação de ato obsceno.

Quem esperava escândalo no novo espetáculo dos quatro deu com os burros n’água. Domínio Público é uma reflexão sobre os ataques sofridos, só que realizada por meio de aulas sobre Mona Lisa, a pintura de Leonardo da Vinci. Elegantemente vestidos, os quatro revezam-se em palestras que mostram como uma obra de arte pode se prestar a diferentes narrativas ao longo do tempo, incitando reações as mais diversas.

“A gente criou um espetáculo em que nós quatro damos aulas sobre a Renascença, com várias fake news e muitas contradições que encontramos na internet. Eu falo que, antes, ela era conhecida apenas pelos especialistas. Mas de um dia para o outro Mona Lisa vira notícia. Por quê? Por causa do roubo, em 1911, pelo italiano Vicenzo Peruggia, funcionário do Louvre, que decidiu repatriar a Mona Lisa. A Renata Carvalho fala sobre a questão da Igreja, do corpo que está ali, por que uma figura claramente feminina é questionada como sendo masculina. O Maikon K detalha, como num relatório policial, quem já agrediu a Mona Lisa, o que as pessoas fizeram contra ela. E a Elisabete Finger finaliza a peça falando sobre quem era a mulher que foi pintada por Da Vinci, o que aconteceu com ela. A estreia no Festival de Curitiba foi arrasadora, porque as pessoas esperavam de nós uma resposta bélica, uma ação muito mais agressiva, e a gente decidiu pela estética, blindar o corpo.”

Wagner Schwartz em cena de Transobjeto, solo cujo título é inspirado em conceito de Hélio Oiticica (Foto: Caroline Moraes, Cortesia do Artista)

Transobjeto e Piranha
Wagner Schwartz estudou música na infância passada em Volta Redonda e formou-se em Letras em Uberlândia (MG). Lançou na Flip do ano passado seu primeiro livro, Nunca Juntos, Mas ao Mesmo Tempo, uma ficção escrita em forma de versos que ele considera também um “trabalho performativo”.

Foi em Uberlândia que se embrenhou no mundo da dança contemporânea. “Existia, nos anos 1990, um grande festival de dança contemporânea em Uberlândia. Todas as cabeças pensantes iam lá”, conta. “Eu precisava experimentar o corpo de alguma forma. Tive um passado um pouquinho complicado com o meu corpo, porque nasci e fui criado numa família protestante, então o direito ao corpo era muito rastreado. Foi bastante dolorido ter de lidar com todas as necessidades de um corpo nessa época, na minha adolescência, da minha sexualidade, da minha alegria de me relacionar com as pessoas. A liberdade não existia. Foi bom sair de casa e viver a minha vida sem ter de dar satisfação para a Igreja. Na dança, eu criei um corpo e também criei a distância do meu próprio corpo. Eu consegui ver ele de longe, olhar ele no espelho”, conta.

Schwartz mudou-se para Paris, em 2005, a convite do coreógrafo Rachid Ouramdane. Hoje divide-se entre Paris e São Paulo, às vezes mostrando suas próprias criações, outras vezes trabalhando com outros autores. De cinco edições do Rumos Dança, projeto do Instituto Itaú Cultural, participou de quatro. Transobjeto é um solo que usa como título um conceito cunhado por Hélio Oiticica sobre a experiência na arte. O espetáculo fala do exílio, do tropicalismo, da antropofagia, incorpora o Parangolé de Oiticica e o Objeto Relacional de Lygia Clark, e traz música de Caetano Veloso. Com enorme domínio do corpo, Schwartz arranca risadas da plateia com sua interpretação minimalista de Carmen Miranda, entre outras cenas hilárias.

Em 2009, ele criou o espetáculo Piranha, baseado num trabalho do artista sonoro e visual japonês Ryoji Ikeda. “A arte está sempre contaminando os meus trabalhos”, comenta. “Gosto desse corpo politizado das artes visuais.”

A Boba (1916), pintura de Anita Malfatti, hoje no acervo do MAC-USP (Foto: Cortesia MAC-USP)

A Boba
Seu novo solo foi comissionado pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), que acontece em março, do qual Schwartz será também mestre de cerimônia. O espetáculo chama-se A Boba e é baseado na pintura de Anita Malfatti (1889-1964), que hoje pertence ao acervo do MAC-USP.

“Depois de todos os ataques, pensei em como continuar falando sobre isso, não sobre os ataques diretamente, mas sobre esse corpo que recebeu todos esses ataques. Estava conversando sobre isso com um amigo, que é artista plástico, e aí ele me lembrou de Anita. A ideia é levar A Boba para a cena. O nome já se encaixa à nossa época. Não é mais de 1916, mas é de agora”, argumenta Schwartz.

“Para mim, A Boba é a nação. Os olhos dela têm o losango. O redondo, e aquele azul e aquele verde ao fundo. E tem uma bandeira, mas está manchada de vermelho, que é o que traz dinâmica ao quadro. Esse é o quadro que mais me representa hoje em dia”, comenta.

O trabalho-vida de Anita Malfatti é hoje um emblema para o artista. “Ela não experimentava tinta; ela experimentava a vida dela; experimentava o que é viver. Em todas as telas dela você vê essa presença do corpo. Um corpo que atravessou décadas. Um corpo que era modernista, virou cubo-futurista e depois virou um corpo sem escola. Tive a ideia de repensar o que era esse corpo dessa Boba, o que essa Boba representa hoje no Brasil e quem é essa Boba. É nesse assunto que estou precisando tocar depois de todos os ataques que aconteceram comigo. Pensar esse corpo que envelheceu e se machucou com essa situação. E não foi só o meu corpo que envelheceu: é o corpo de uma geração. Nós temos a violência nos governando. Mas essa violência se transformou em movimentos belíssimos. De repente, as pessoas ficaram mais próximas umas das outras.”