icon-plus
Sem Título (2025), de Francesco João [Foto: cortesia galeria Marli Matsumoto]
Postado em 28/04/2025 - 1:02
O DIA EM QUE CANTEI PARA FRANCESCO JOÃO
Artista mezzo brasileiro, mezzo italiano faz, em São Paulo, exposição que materializa, em pinturas pós-conceituais, o passado do futuro

Meu recital não era endereçado a ele, em princípio. Estava fazendo pocket shows de uma canção à capela para amigas queridas. Mas ao chegar à galeria da Matsumoto aconteceu de a Matsumoto não estar lá. E acontece de uma exposição minimalista e misteriosa estar disposta silenciosamente no espaço. Sou recebida pela simpática e atenciosa Tainá, que me acompanha em uma visita guiada pela mostra solo de Francesco João na casa-galeria na Vila Madá.

As pequenas pinturas sobre madeira ou os baixo-relevos de mesmo tamanho vão me intrigando conforme Tainá comenta o que há ali sugerido. Minha vontade de cantar, que tinha engolido logo que ela me informou que MM não tinha chegado ainda, fica mais e mais distante enquanto me aproximo das formas fantasmagóricas que supostamente habitam aqueles quadrinhos. O interfone do portão tocou e tentei entrar de novo na sintonia da canção, um pouco na dúvida se conseguiria alcançar aquele agudo sustenido que viera praticando no caminho. Mas não era a Matsumoto, era Francesco João, que assumiu dali a visita guiada.

As pinceladas empurradas numa única direção. E então perturbadas, nesse ritmo com que foi coberta toda a superfície retangular de madeira, por uma única e robusta pincelada em sentido inverso. Assim como você se pega observando uma tela de Célia Euvaldo, sabe assim? E depois. Os rabiscos. Riscos e rabiscos sobre a última camada de tinta, revelando várias das anteriores. A quantidade de tinta ali naquela superfície que me parecera flat. Os mistérios das táticas técnicas de cada artista — uma resina usada no preparo do suporte de madeira que extravasa para se tornar a própria obra de arte em uma intervenção diretamente no chão.

O récit, diferente do roman, aprendemos com Jameson (enquanto ele, por sua vez, acompanha Benjamin ou Henry James ou mesmo Sartre) conta uma única história, em geral no passado. Já o romance entrelaça diferentes histórias numa narrativa mais frequentemente no tempo presente. Um conto começa finalizado, na novela descobre-se o enredo no processo de escrever, e o final é surpreendente até para a autora. Aqui, por se tratar de um conto-reportagem, ou uma crítica-conto, você já sabe, desde que leu o título deste artigo, que canto para Francesco João no final. Mas, você se pergunta, ainda assim, como seria possível a história dar uma guinada tão radical, das entranhas da pintura a um pocket show na galeria? Pois bem.

UM CONTO COMEÇA FINALIZADO, NA NOVELA DESCOBRE-SE O ENREDO NO PROCESSO DE ESCREVER, E O FINAL É SURPREENDENTE ATÉ PARA A AUTORA
Sem Título (2025), de Francesco João [Foto: cortesia galeria Marli Matsumoto]

MM chegou, afinal. Envolvida na conversa-entrevista com FJ que vinha entabulando, e à qual MM naturalmente se juntou, já nem me lembrava da ideia de cantar. Trabalhamos juntas, Marli e eu, durante alguns anos em uma galeria chiquérrima de São Paulo, e essa frequentação se tornou na amizade, de modo que era imperativo cantar para ela naqueles dias em que estava tão decidida a cantar para as amigas. (Eu e meus projetos de poucas semanas.) Falávamos de On Kawara. Francesco João confirma que o artista japonês é uma grande influência no que tange à reflexão sobre o tempo.

– E também na tipografia, não? Vocês usam a mesma tipografia. 

– Não. A tipografia é diferente.

Todos sacamos os respectivos celulares. E a tipografia não poderia ser mais diversa? A de On Kawara, criada por ele, descubro depois, não tem serifa nem chanfrado. Um dos nomes mais importantes da arte conceitual, Kawara (1932-2014) iniciou a série Today no dia 4 de janeiro de 1966 e continuou a fazer as pinturas de datas até 2013. Nascido em 1987, o repertório de dígitos numéricos de FJ é de outra categoria. “Uso a tipografia do display de sete segmentos, que é uma tecnologia de escrita digital dos algarismos muito comum a partir dos anos 1970 e 1980”, conta João. A ideia de digitalização se mistura à de futuro no estilo dos algarismos presentes desde o relógio digital até o mostrador da bomba nos filmes de guerra.

O display de sete dígitos (seven segment display) é composto de três barras horizontais e quatro verticais, que possibilitam a escrita de todos os numerais. De 0 a 9, somente um algarismo faz uso dos sete segmentos, o 8. Portanto, o número 8 que se insinua por debaixo das pinceladas nas obras de Francesco João não é o número 8, mas sim o display de sete dígitos “apagado”. Aqui, sem poder estar mais anos-luz distante da possibilidade de cantar à capela na galeria Marli Matsumoto, penso em um dos trabalhos de Cory Arcangel exibidos na mostra The Generational Triennial: Younger Than Jesus, no New Museum, em 2009. Considerado um artista pós-conceitual, Arcangel ficou famoso pela obra que mostra as nuvens de um jogo de Mario Bros, realizada hackeando um cartucho do jogo, do qual o artista apagou toda a ação, mantendo apenas o céu azul e as nuvens estilizadas. Mas a obra em questão é outra: trata-se de um monitor de led que mostra, ininterruptamente, a própria ficha técnica, o que resulta em uma tela danificada, porque a informação estática queima os leds, mantendo, assim, o texto gravado na tela mesmo com o monitor desligado.

Desta turma, de Cory Arcangel e os pós-conceituais, é que Francesco João faz parte. Mas tirá-lo da turma de On Kawara e os conceituais não implica em eliminar os sentidos existenciais de sua obra. “O futuro visto pelo passado [do display de sete segmentos] me interessa porque fala da invisibilidade e da incerteza da pintura. O que significa fazer uma obra de arte hoje? Ou pintar, o que significa fazer uma pintura? A projeção da imaginação no futuro muda, mas certas coisas permanecem. Por exemplo, o que define uma pintura continua sendo a luz”, defende FJ. Além das pequenas obras em madeira, o artista apresenta, na exposição Now, Tomorrow, duas pinturas pós-conceituais feitas com camadas de tarlatana (um tecido diáfano, materialmente parecido com gaze) – e fortemente afetadas pela luz. “Essas obras têm as camadas, o gesto, tudo o que tem uma pintura. Mudam com a luz, e o chassi é sua estrutura arquitetônica, que replica a arquitetura da sala, da galeria e assim por diante.” 

Na realidade, o trabalho de Francesco João é o que é: a vida dos objetos em sua materialidade. Não é sobre uma interioridade ou narrativa de qualquer ordem. O 8 se repete nas obras porque ele contém a integralidade da matéria do display digital, portanto mesmo da tecnologia o artista incorpora a materialidade de como esta se apresenta. As coisas, elas mesmas, sem interioridade, como se apresentam… Essas ideias têm a forma de uma canção pós-conceitual. A romã, a tribo, a procura / O caldo da cultura, o cauim / A quermesse, o curso, a bienal, a escultura / Hosana nas alturas, anjos no céu de Berlim / Osasco / Osaka / Rosa / Bomba / Maca / Ossos do office-curumim. Termino a visita à galeria cantando Dança, de Chico César.

Sem Título (2025), de Francesco João [Foto: cortesia galeria Marli Matsumoto]
DESTA TURMA, DE CORY ARCANGEL E OS PÓS-CONCEITUAIS, É QUE FRANCESCO JOÃO FAZ PARTE. MAS TIRÁ-LO DA TURMA DE ON KAWARA E OS CONCEITUAIS NÃO IMPLICA EM ELIMINAR OS SENTIDOS EXISTENCIAIS DE SUA OBRA
Sem Título (2025), de Francesco João [Foto: cortesia galeria Marli Matsumoto]

SERVIÇO

Now, Tomorrow, até 10/5
seg à sexta das 11h às 19h
sábados das 12h às 17h
Marli Matsumoto Arte Contemporânea
Rua João Alberto Moreira 128
Vila Madalena, São Paulo, SP
www.marlimatsumoto.com.br