Chegar em Olinda. Subir ladeiras. Ver as famílias na porta de casa ainda em festa: era 24 de junho. Ali se comemora São João. Chegar na primeira travessa da Saudade. Uma pequenina casa com fachada azul. Eis Lu Ferreira (1984, Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, Brasil).
O artista apresentou sua primeira individual, Mutations and Transmutations, na galeria M+B em Los Angeles, em exposição de 29 de junho a 3 de agosto de 2024. O conheci no contexto de uma curadoria que fiz para o atelier coletivo Escadaria, do qual fez parte, na ocasião da ArtPE 2023. Quatro ou cinco degraus e estamos na sala. Cheiro de café. Goles no café e uma leitura que vai iniciando a nossa conversa. Lu tem lido Vanguardas e rupturas, volume 14 da coletânea A pintura, Textos essenciais. Me presenteia então com o que dali mais tem lhe chamado a atenção: os escritos do artista estadunidense Willem de Kooning, com quem me diz que se identifica, para além do fato de ambos trabalharem com a abstração, em razão da trajetória operária e autodidata.

É assim que dizer de uma ação para além da pintura ou tão intimamente relacionada à pintura – como com Kooning ou mesmo Pollock, gestualistas, exponentes da chamada action painting – mantém-nos no óbvio. Então pretendo aqui pontuar o erro como célula narrativa. A obra de Lu Ferreira – em espaços ou pontos nas telas com uma delicadeza entre formas e cores que estão mais para Hilma af Klint sem preocupação com as simetrias –, está mais relacionada ao gesto que começa antes e não termina depois da pintura, já que a coleta de materiais e matérias junto à lavagem colaboram para a torção do tempo, esse que parece tornar-se a própria lona que serve de tela a ser gasta em contações de histórias não lineares, mistérios. São errantes lembranças frente à representação, derivas em gestos concretos. Mais do que action painting, há incorporação.
Diz-se gestos concretos no sentido de que crescem junto ao artista antes do artista assim reconhecer-se. Então tudo é muito mais erro do que figura, ainda que a figura esteja presente em algum momento do processo. Há, ainda, um paradoxo a atravessar toda a narrativa que reside no fato de que não há gestos dispensados: desde o risco do lápis, estrutura primeira; a coleta, o reaproveitamento, estrutura primeira também; até mesmo a lavagem, herança da atenção para com sua mãe que foi lavadeira, quem sabe. E viver Olinda? Também. O frevo? Como não? Ver e sentir o cheiro do Rio Capibaribe? Também. Óleo, bastão e lápis sobre tela. Materiais não convencionais: não saberemos quais. O ordinário em ato religioso. Mistério para encobrir. Lavagens para revelar. Espirais de tempo. Esfregar. Refazer o tempo, brincar com suas camadas. O tempo os revelará? Sincretismo do artista: materiais e matérias integrantes do que chamo aqui por errante célula narrativa de Lu Ferreira.

As telas da série Ossificadas, em um primeiro momento, evidenciam mais certa relação com o material gesso, mas são elas e não só elas que passam pelo processo de serem cobertas de gesso e depois lavadas. É aí que, para o artista, ele mais se diverte: sobrepondo gestos e tempos, revelando para si mesmo as imagens que incorporam sua performance, a performance de seu corpo, que também vai sendo gasto e onde também as células vão morrendo e renascendo ao passo em que criam novos mistérios. E então a narrativa errante vai desdobrando-se para além da série intitulada Células. E o que em um primeiro momento poderíamos identificar como pintura se expande, já que a pintura por si só parece não alcançar a ação do artista. Lu Ferreira sequer utiliza pincéis. Tão importante quanto a tinta na tela também é a lavagem. O desgaste. A performance. É assim que há uma radicalidade da pintura enquanto gesto performático a requerer mais atenção à abstração em Lu enquanto gesto errante, fundador de sua poética junto a seu corpo.
Imaginar o mundo é transvê-lo, disse Manoel de Barros. É dessa maneira que, como uma potência à imaginação a partir do abstrato, podemos transver nas telas de Lu Ferreira o erro frente à pintura enquanto surgem para além de cores, tons, enfim, também texturas, sobreposições, às vezes colagens, acúmulos, gestos, jazz e até mesmo frevo – como em Olinda cantamos nas quartas de cinza, mas não só, como também em todo o carnaval, momento de turbilhão de emoções –: é de fazer chorar. E eis que o erro, etimologicamente relacionado também ao mover-se pelo que tem de proximidade à errância, não diz aqui respeito a fins, mas a caminhos, invenções de sempre novos passos que se repetem sem nunca serem iguais.
As paredes da sala em que estamos têm rastros dos trabalhos ali feitos. De alguma maneira tudo é rastro. Em certo momento da leitura eu escuto o que precisa ser dito: “é necessário muitas coisas para se chegar ao abstrato”.
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Ana Gábri ou Ana Gabriella M Ribeiro Aires é artista-pesquisadore-educadore. Trabalha com a construção de narrativas, desempenhando funções múltiplas a partir da crença na – e do exercício com a – linguagem poética. Doutorande em Literatura e Cultura (UFBA).