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Cinthia Marcelle, detalhe de Chão de caça (2017). 57a Bienal de Veneza [Foto: Ricardo Torcetto]
Postado em 31/01/2025 - 9:04
O espaço radical
O encontro entre Cinthia Marcelle e o vão resulta em uma série de projetos nos quais a artista, com o apoio do escritório de arquitetura, usa objetos cotidianos apontando para os limites e a subversão das normas cristalizadas da civilização eurocêntrica e da arte

Não é de estranhar que Cinthia Marcelle, uma das mais importantes artistas brasileiras da atualidade, respondesse ao convite do projeto Águas Abertas propondo realizar um primeiro trabalho em coautoria com o trio Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero, ou o escritório de arquitetura vão – conhecido por, a despeito do nome, fechar o vão central na 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível. A colaboração é uma prática recorrente da artista, cujo trabalho em instalação, fotografia, vídeo, pintura e performance opera no tensionamento de noções cristalizadas da civilização eurocêntrica e da arte, entre elas a de autoria. E o vão é parceiro desde 2013, quando Cinthia Marcelle recebeu um convite para a realização de uma exposição individual para uma galeria suíça. 

“Eu havia acabado de mudar de Belo Horizonte para São Paulo e os encontrei em um evento. Conversando, fiquei impressionada com a intimidade que tinham com a minha produção. Quando surgiu a necessidade de esboçar um projeto expositivo que havia em mente, entrei em contato com a Anna Juni”, conta a artista. A exposição acabou não saindo do papel, mas faz parte das 20 propostas que a artista compartilhou ao longo da parceria, algumas executadas, outras não. 

Muito mais do que ter a pré-visualização de uma obra ou expografia pelo SketchUp, software de desenho arquitetônico, a colaboração com o vão possibilita a complementação do olhar de Cinthia Marcelle por outra perspectiva, que articula a questão do espaço aos contrapontos trabalhados pela artista: ordem/caos, dentro/fora, privado/público, individual/coletivo. ”Trabalhar com o vão me encoraja a desafiar ainda mais a escala do espaço expositivo”, diz a artista.

Uma das primeiras colaborações deu-se no contexto da obra/exposição em-entre-para-perante (2015), em uma galeria de arte no Rio de Janeiro. “A Cinthia estava pesquisando a respeito de várias rebeliões ocorrendo no país”, conta Anna Juni. Interessa à artista pensar os conceitos de cárcere e fuga, investigando o espaço simbólico (e histórico) dos presídios brasileiros de um ponto de vista de quem vê de fora, de quem experimenta os confinamentos (econômico-sociais e psicológicos) do fora, os limites do dia a dia, projetando, ao mesmo tempo, de dentro de seu exercício estético, uma linha de fuga.

“Essa pesquisa sobre a ideia de liberdade, sobretudo em relação às instituições e, no caso dessa obra, o sistema da arte, sempre foi parte constituinte do meu trabalho. Em 2002, realizei, em parceria com a artista Sara Ramo, a obra Aonde Anda Minha Tereza?”, diz Marcelle. Isso veio ao encontro de um vídeo que Juni acabara de ver no YouTube, em que policiais investigavam celas com paredes falsas, tapadas com sabonete. “Esses ocos escondiam armas e drogas enroladas em terezas [cordas feitas com lençóis]”, diz Anna Juni. 

A instalação trazia no alto das paredes um conjunto de tecidos listrados, cujas linhas pretas foram pintadas manualmente. O chão apresentava várias ferragens enroladas em cadarços pretos, como se as listras pretas dos tecidos tivessem se tornado o invólucro dos artefatos. 

Cinthia Marcelle + vão [Foto: Marina Lima e Pablo Saborido]
Cinthia Marcelle, Chão de caça (2017). 57a Bienal de Veneza [Foto: Ricardo Torcetto]

Liberdade cavada

O trânsito pela galeria Silvia Cintra + Box4 dava-se ao redor dessas ferragens encobertas, geometricamente espalhadas no chão, formando um estreito corredor entre os tecidos e os objetos, o branco e o preto, dando a noção física desse impasse entre o que está em cima e o que está embaixo, o que está descoberto e encoberto, solto e atado. “Meu trabalho sempre buscou examinar a ideia de liberdade e de aprisionamento. A liberdade não é algo dado, como a sociedade de consumo quer nos fazer pensar, é necessário buscar, cavar, tensionar, romper para escapar das normas do sistema hegemônico”, diz Marcelle.

A proposição de outro modo de circulação pelo espaço também deu o tom de Chão de Caça (2017), instalação de Cinthia Marcelle com a colaboração do vão, que ocupou o Pavilhão Brasileiro na 57ª Bienal de Veneza, com curadoria de Jochen Volz. O prédio da representação brasileira nos Giardini de Veneza é formado por duas salas conectadas por um corredor com portas em suas extremidades, sobre o qual há uma viga de cimento. “A ideia era criar uma unidade entre as duas salas, porque a Cinthia traz muito essa questão da coesão do espaço”, diz Juni. 

“A princípio, a Cinthia queria que o piso do Pavilhão inteiro fosse elevado”, conta Enk te Winkel. Se fosse plano, seria necessário construir uma rampa de acesso na porta de entrada, inviável pelos protocolos da Bienal e spoiler do conteúdo da sala. A alternativa foi fazer o piso do pavilhão ser inteiramente inclinado, uma rampa construída por grades, como as dos respiradouros de metrôs. Entre seus vãos, pedras brancas dos jardins da Biennale flutuam e se espalham caoticamente sobre o piso original, agora forrado por carpete preto. 

O recurso de cobertura de artefatos com cadarços pretos também foi usado aqui sobre uma grande corda, a cobra-patuá, que serpenteava sobre e abaixo do piso, e pedras que foram como que devoradas pela grade. A Floresta de Sinais (2017) era formada por tecidos listrados pintados de branco e acomodados em sarrafos de madeira, que Anna Juni ajudou a posicionar entre os vãos do chão. Exibido em uma TV semi-embrulhada em um cobertor, o vídeo Nau (Now) (2017), parceria com Tiago Mata Machado, mostrava homens escapando de um telhado – ou infiltrando-se por ele. Esses homens convocados para a ação eram, na verdade, os técnicos telhadistas, chamados para desmontar um telhado para a realização do vídeo.  

O corredor central, uma rampa ascendente, conduzia às duas salas, mas as paredes de cimento formadas pela viga do teto impediam a visão da segunda, uma constatação que os arquitetos identificaram ao projetar o piso inclinado. Sobre a porta de saída do Pavilhão, fechada (o espectador tinha de voltar pelo mesmo caminho que fez ao entrar) e se deparava com uma grade com vista para fora, mas por onde não se podia sair. Na proposta espacial, uma forte relação com o recente impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. “A rampa dando para uma porta fechada, o piso gradeado cheio de pedras capturadas, aquilo era uma grande peneira, um grande refluxo diante do golpe”, diz Marcelle. A contundência e a atualidade de Chão de Caça se pagaram: a instalação recebeu Menção Honrosa do júri da Biennale.

Cinthia Marcelle, Em entre-para-perante (2015) na Galeria Silvia Cintra + Box 4 [Foto: Jaime Acioli]
Cinthia Marcelle, Em entre-para-perante (2015) na Galeria Silvia Cintra + Box 4 [Foto: Jaime Acioli]

Assimetria e obstrução

Da experiência em Veneza para a instalação The Family in Disorder (2018), desenvolvida para o Modern Art Oxford, com curadoria de Stephanie Straine, a radicalidade do uso do espaço se amplia. Aqui, a proposta de Cinthia Marcelle projetada minuciosamente pelo vão ocupa duas salas. Concebida para ambas, a instalação, The Family in Disorder cria um ambiente ordenado e outro caótico.

No primeiro, monta-se uma barricada com diferentes materiais de construção: fitas adesivas, lonas, sacos de pedras e tijolos são organizados meticulosamente, compondo um retângulo que corta horizontalmente a sala. A barreira, mais uma vez, obstrui a circulação. No outro ambiente, seis montadores do museu, que trabalharam na exposição e uma assistente (todos também artistas): Aline Tima,

The Family In Disorder [A Família em Desordem] Cinthia Marcelle com a participação [sala da desordem] de Aline Tima, Aaron Head, Chris Jackson, Kamila Janska, Andy Owen and Seb Thomas (2018), no Modern Art Oxorf (MAO) [Foto: Ian
Wallman e Ben Westoby]
Aaron Head, Chris Jackson, Kamila Janska, Andy Owen, Seb Thomas, são convocados a desorganizar a estrutura de materiais que foi montada seguindo algumas premissas dadas pela artista. O resultado é o caos.

A instalação foi recriada na primeira exposição monográfica da artista no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), em 2022. Em Cinthia Marcelle. Una Conjunción de Factores, com curadoria de Isobel Whitelegg, o espaço é mais do que coadjuvante das obras: é parte da concepção da narrativa da exposição e potencializa e problematiza as questões recorrentes da artista. “Tínhamos essa grande sala entrecortada por pilares. O que fizemos foi criar um acesso único, pelo qual o público poderia seguir tanto pela esquerda, onde estava a sala do caos de The Family in Disorder, quanto pela direita, a sala da ordem, que desta vez permitia que a barricada fosse vista pelos dois lados”, conta Anna Juni. 

The Family In Disorder [A Família em Desordem] Cinthia Marcelle com a participação [sala da desordem] de Aline Tima, Aaron Head, Chris Jackson, Kamila Janska, Andy Owen and Seb Thomas (2018), no Modern Art Oxorf (MAO)
É natural, portanto, que a primeira panorâmica no Brasil, Cinthia Marcelle: Por Vias das Dúvidas, no Masp, em 2022-23, curada por Isabella Rjeille, também tenha contado com a colaboração do grupo de arquitetos – não só na expografia, que também teve a coparticipação de Flora Simons e Juliana Ziebel (da equipe do Masp) na concepção de uma parede diagonal que possibilitava várias perspectivas do conjunto da obra de Marcelle. Mas também na concepção espacial e composição da impactante instalação Da Parte pelo Todo (2013-2022), montagem que também contou com a participação de Mauro Amorim e Marcelo X. 

Criada para a exposição não realizada na Suíça, Da Parte pelo Todo foi montada no segundo subsolo do Masp. A sugestão de instalar esse projeto debaixo do mezanino foi do vão, o que fortaleceu ainda mais o gesto da artista. Aproveitando o paredão de janelas voltadas para o fundo do museu, havia uma composição de tapumes inclinados, fechando parcialmente o vidro – mostrando e escondendo a vista exterior por uma pequena fresta, um desafio de fotometria para a equipe de conservação do museu. 

Materiais e objetos de montagem e limpeza, como rodos, botas, luvas, baldes e martelos, foram dispostos no chão, no limite entre o pé-direito integral do teto e o mezanino que corta esse espaço ao meio. Tudo que estava de fora da parte rebaixada do mezanino conservava sua cor natural. Mas, quando os objetos passavam a linha de dentro do teto rebaixado, eram pintados de branco, como se houvesse ali uma barreira luminosa, uma espécie de limite entre o cubo branco e a realidade, entre os objetos de uso cotidiano e sua inserção no espaço da arte.

Esse deslocamento do cotidiano para o artístico, que se impõe como contundente crítica da realidade, também está em evidência em Não Existe Mais Lugar Neste Lugar (There Is no More Place in This Place), montada no San Francisco Museum of Modern Art (SFMoMA), em 2019, com curadoria de Eungie Joo, e em cartaz até 1º de dezembro de 2024 na Bienal de Gwangju, na Coreia do Sul. Trata-se de uma sala com piso de carpete preto e teto de isopor, com lâmpadas fluorescentes, como um escritório. Porém, ele está vazio. E sugere um ambiente que parece ter sido abandonado às pressas, com as placas do teto bagunçadas. Além de todo o rigor de conceber um desenho espacial em diálogo com o projeto da artista, o vão construiu uma primeira sugestão de composição desse desarranjo para que Cinthia Marcelle chegasse na montagem com um ponto de partida. Num mundo em que o “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”, como cunhou Antonio Gramsci, precisamos de obras que desorganizam e subvertem as regras do estabelecido, obstruem e criam outras perspectivas da realidade, convertendo os locais do patriarcado em espaços radicais. 

O espaço é mais do que coadjuvante das obras: é parte da concepção da narrativa da exposição e potencializa e problematiza as questões recorrentes de Cinthia Marcelle