A Invenção do Espelho, de Novíssimo Edgar, parece que vai tratar do engodo colonial de trocar as riquezas encontradas em Pindorama por quinquilharias europeias. Antropológica do Espelho, de Muniz Sodré, e Espelho Enterrado, de Carlos Fuentes, vêm à mente, talvez porque li recentemente o ensaio de Agnaldo Farias sobre a exposição de Fabio Cardoso e notei como ele se divertiu escrevendo sobre uma série de pinturas em que pedras são representadas. Pedras e espelhos são o típico assunto que dá pano pra manga dos críticos que gostam de evocações (será que algum crítico de arte não gosta?). Farias convoca Educação pela Pedra (João Cabral), No Meio do Caminho (Drummond), e Castelo dos Pirineus (Magritte), “uma rocha colossal de formato elipsóide com contornos irregulares, um menir suspenso no ar com um castelo no seu topo, um castelo que à distância parece minúsculo, estranhamente com a mesma aparência rugosa e cinzenta da pedra que o sustenta, como se fossem constituídos da mesma matéria”, descreve ele a pintura de Magritte, com um sorriso nos lábios, aposto. Eu teria pensado em Ugo Rondinone, Carmela Gross, Denise Millan, Gustavo Caboco. Mas o espelho da expo de Edgar não convida a esse tipo de evocação. Daí os livros; o de Sodré trata de comunicação; o de Fuentes, de colonização.
Escrito a convite de uma emissora de televisão, originalmente como roteiro para uma série documental, Espelho Enterrado (1992) é uma balanço dos 500 anos da chegada dos espanhóis às Américas. Importante intelectual público e romancista mexicano, Carlos Fuentes reconstitui o contexto de mudança do feudalismo para a Era Moderna na Espanha do século 15, assim como o histórico das civilizações mesoamericanas pré-colombianas, para narrar o encontro e o choque entre culturas antagônicas a partir de 1492. Fuentes defende que a América é uma invenção de sua “plateia” europeia renascentista, e que Maliche, a esposa indígena e intérprete do conquistador Hernán Cortés, plasma “as bases da nossa civilização multirracial, mesclando o sexo com a linguagem”, porque além de servir como intérprete de Cortés, possibilitando que ele chegasse ao coração da magnífica cidade de Montezuma nas montanhas mexicanas, ela também aprendeu a língua nova do comandante espanhol, “que deveria tornar-se o mais forte elo entre os descendentes dos índios, europeus e africanos no hemisfério americano”.
As histórias da colonização do Brasil e clássicos da História da Arte se encontram nas 19 obras do artista Novíssimo Edgar, expostas n’A Gentil Carioca Sampa. O visitante é recebido pela escultura de parede O Colonialismo É o Elefante Branco do Brasil (2023), uma cabeça de elefante construída a partir de materiais como miçanga de búzios, miçangas coloridas, guias de Zé Pilintra, filete de cristal, e pelúcia, em tons de branco e perolados predominantemente. O objeto está instalado em uma pequena parede recoberta com tecido vermelho. Observar os trabalhos ao redor do Elefante Branco escancarado empresta ares de revelação a Wonder Fruits (2023), Black Elvis (2023), e Rape of Europe (2023). As três obras, expostas na primeira sala da galeria, tratam de marcos históricos, mitológicos e das marcas deixadas por esses eventos. “Do clássico italiano sobre o estupro da Europa, retenho o boi branco; em Wonder Fruits procuro transmutar a energia pesada do imaginário sobre corpos pretos enforcados, pensando em cachos de frutas ou crisálidas, em transformação”, afirma Edgar, em conversa com a seLecT_ceLesTe; em Elvis Negro, o artista representa o “Exú do rock”, apropriando-se da cultura pop e tratando-a como se ícones como Elvis Presley fossem tanto da nossa cultura como de qualquer outra.
A obra Rape of Europa (ca. 1560–1562), do italiano Ticiano, retrata o mito grego do sequestro da princesa Europa. Segundo a mitologia, Zeus, transformado em um touro branco, convence Europa a montar em suas costas e a leva a Creta, onde nascem os seus três filhos, os semideuses Minos, Radamanto, e Sarpedão. A imagem, portanto, representa a dominação masculina e a violência sexual que protagonizam de fato esta história. Usando o mesmo título da pintura do mestre veneziano, Edgar retrata uma mulher racializada deitada no dorso do animal, gesticulando com um tecido vermelho em suas mãos, defendendo que a colonização do Brasil atualiza o mito grego, uma vez que a exploração de recursos naturais e o controle da população nativa por meio de violação e escravização foram as armas utilizadas pelos portugueses. O artista ainda acena para uma atualização da simbologia do touro, por aqui transmutado em boi, outro resultado da opressão colonial, que resultou no império do comércio de gado no país.
PARANGOLÉ TUPINAMBÁ
Na segunda sala da exposição A Invenção do Espelho, vemos o “verso” da pequena parede vermelha: ali, a escultura Rainha Pequena (2023) se endereça a diversas tradições, convocando, segundo Novíssimo Edgar, o filme estadunidense A Condessa Descalça (1958), as bailarinas de Degas, e o candomblé. Os pés descalços, índice de pobreza no filme de Joseph L. Mankiewicz, tornam-se símbolos da espiritualidade na obra de Edgar, que reveste os pés de sua Rainha Pequena com folhas de ouro. Ao redor da rainha, as obras Manto Egungun de Favela ou Parangolé Tupinambá (2023), Pernambucana do Brinco de Pérola (2023), As Memórias do Meu Pé (2022), e O Nascimento da Constelação de Gêmeos (2023) seguem narrando a saga do choque de civilizações e de historiografias da arte proposta pelo artista.
Manto Egungun de Favela se refere aos escudos de proteção, discutindo armaduras e camuflagens sociais, de acordo com Novíssimo. Sobre Pernambucana do Brinco, o artista reflete: “A pintura de Vermeer é considerada a Monalisa holandesa, por isso a minha releitura situa o retrato em Pernambuco, já que ele data do mesmo período em que termina na região a guerra entre holandeses e portugueses”. A expulsão dos holandeses de Pernambuco, que se chamava então Maurícia, ocorreu em 1654; a pintura de Vermeer é de cerca de 1665, portanto o enigmático retrato de imaginação de uma jovem com turbante e brinco exuberantes poderia bem esconder algo da “opinião pública” da época sobre a derrota no Brasil. Vejamos a versão proposta por Edgar. Pernambucana do Brinco de Pérola (2023) representa uma figura feminina na mesma posição da jovem de Vermeer, vestindo turbante de veludo azul e linho estampado, as pérolas na orelha esquerda, uma roupa dourada suntuosa e o rosto desenhado com pelúcia marrom. A elegante senhora negra encara o observador sem aquele sorriso pacificador do quadro holandês: ela parece confrontar o público com um sorriso desafiador e olhar inescrutável.
Aqui, Antropológica do Espelho pode vir em nosso auxílio para interpretar este confronto. Em Muniz Sodré, espelho é metáfora do narcisismo midiático que decorre do enfraquecimento do espaço público e da estetização generalizada da vida social. O sociólogo brasileiro analisa, neste livro de 2002, a esfera midiática a partir dos espelhamentos em cadeia que esta propicia em um regime de visibilidade pública hegemônico que opera segundo a lógica da forma-mercadoria. “O espaço público da contemporaneidade é cada vez mais construído pelas dimensões variadas do entretenimento ou da estética, em sentido amplo, cujos recursos provêm do imaginário social, do ethos sensorial e do subjetivismo privado. Profundamente afetada pela esfera do espetáculo, a vida comum torna-se medium publicitário e transforma a cidadania política em performance tecnonarcísica”, escreve Sodré. Podemos dizer que Pernambucana do Brinco de Pérola (2023) devolve em um espelho contracolonial a imagem retificada do (novo) poder do Sul Global. Assim como Manto Egungun de Favela ou Parangolé Tupinambá (2023) responde aos saques coloniais com um estandarte aos modos de vida contra-hegemônicos que resistem e reinventam a política diariamente, sem apelos à espetacularização.