Uma exposição inaugurada na terça-feira passada, dia 11/4, em São Paulo, com obras do artista Nelson Leirner (1932-2020), está dando o que falar. Mas o falatório é menos em torno da arte em si do que sobre quem pode (ou não) realizar uma exposição de um nome único e incontornável da arte brasileira. Os embates começaram bem antes de a mostra, Nelson Leirner: Por uma Outra Lógica, ser inaugurada no Espaço Artra, nos Jardins. Quando souberam, no início de abril, que a jovem galerista paulistana Anita Kuczynski estava organizando uma mostra individual de Leirner, a galerista Silvia Cintra, que representa o espólio com exclusividade, e a viúva de Nelson, Liliana Leirner, convocaram um advogado para tomar as medidas cabíveis contra a iniciativa, que ocorreria sem anuência de ambas. No dia 4/4, Kuczynski recebeu uma notificação proibindo o uso de imagens das obras expostas em qualquer tipo de publicação. O convite, que havia sido feito a partir de um detalhe da obra Homenagem a Fontana I (1966), foi modificado pelo Espaço Artra, e todas as imagens dos trabalhos de Leirner retiradas do site e do perfil de Instagram da galeria de São Paulo.
“Foi com imensa surpresa que tomei conhecimento sobre essa mostra em ‘homenagem’ ao Nelson. Uma exposição sem critério e sem curadoria, com obras mal montadas e algumas inclusive em péssimo estado de conservação. Achar que cabe a ela, uma galerista estreante, que nunca sequer o conheceu, o papel de ‘não deixar cair no esquecimento’ um artista como Nelson Leirner, além de absurdo é profundamente desrespeitoso com a família e com a galeria que o representa há tantos anos. Além de duas mostras que já foram organizadas em homenagem aos seus 90 anos, outros projetos de grande porte estão sendo preparados para, aí sim, homenagear Nelson como ele merece. Iniciativas como essa, sem o consentimento do espólio, sem permissão para uso de imagem, só atrapalham o trabalho sério que tem sido feito”, diz Liliana Leirner, por meio da Galeria Silvia Cintra, à seLecT_ceLesTe.
As duas exposições a que Liliana se refere foram realizadas pela Galeria Silvia Cintra em 2022, quando o artista completaria 90 anos, uma na sede carioca da galeria e outra em estande solo dedicado a Nelson Leirner na feira ArtSampa. Já a frase sobre “não deixar cair no esquecimento” é endereçada a Anita Kuczynski, que de fato utilizou essa expressão infeliz em entrevista à revista Veja São Paulo desta semana. Ainda que o legado de Leirner não esteja nem de longe ameaçado de cair no esquecimento, pode-se perguntar se uma exposição realizada profissionalmente por uma jovem galerista não teria, sim, alguma contribuição a dar na ampliação do alcance, entre o público mais jovem, da imensa lição descolonial sobre arte no Brasil [e no mundo, porque o Happening da Crítica, seu famoso porco empalhado com um toucinho de bacon amarrado ao pescoço dentro de um caixote de madeira despachado para o Salão de Brasília em 1967 para, após a obra ser aceita pelo júri, o artista questionar publicamente os critérios estéticos deste júri – se equipara à Fonte (1917) de Marcel Duchamp] legada pelo mestre.
Tadeu Chiarelli, que assina o ensaio encomendado para o catálogo da mostra Por uma Outra Lógica, relembra, em entrevista à seLecT_ceLesTe, que a morte de Nelson Leirner ocorreu dias antes da eclosão da pandemia de Covid-19. “Não houve nenhum tipo de manifestação sobre a importância dele, ao menos não que eu tenha tido a oportunidade de ver. Eu mesmo não consegui prestar homenagem, por isso encarei o convite para escrever este texto como uma chance de celebrar esse grande artista e lembrar às pessoas, sobretudo esse público mais jovem a quem o espaço da Anita Kuczynski está direcionado, da extrema relevância dele.” Chiarelli, que escreveu um livro que é tido como referência nos estudos sobre o artista, [Nelson Leirner: arte e não Arte (2002)], prossegue, na conversa por telefone com a revista: “Eu sou super apaixonado pelo Nelson Leirner e aproveitei a oportunidade para fazer a homenagem que não tinha podido fazer. Repare: Nelson é um artista homem, branco, judeu, cisgênero, que é um perfil de artista que não tem despertado interesse no contexto atual. Deveríamos esperar a muito legítima e urgente onda identitária refluir para homenageá-lo? Penso que não. Jamais me ocorreu que pudesse haver qualquer tipo de problema”, afirma sobre a altercação, da qual, inclusive, só ficou sabendo através da reportagem. “Não vou entrar no mérito de uma questão que desconheço, mas nenhuma contenda deve ofuscar a obra de NL, seus trabalhos estão sendo exibidos e isso é relevante”, finaliza.
A contenda em questão foi a notificação, enviada no dia 4/4 pelo advogado de Liliana Leirner a Anita Kuczynski, solicitando que esta cessasse “a distribuição de qualquer material que contenha reprodução de obras do artista Nelson Leirner” e se abstivesse de “manter em website, mídias sociais ou qualquer outro local, quer de forma digital, quer de forma impressa, a reprodução de imagens de obras de realização do artista acima mencionado”. A galerista, como reportado no início deste artigo, fez o que foi solicitado. No dia em que a reportagem visitou a exposição, esta semana, foi recebida por uma Anita absolutamente empolgada, que falou de cada obra exposta com paixão e conhecimento. A mesa da entrada do Espaço Artra tomada por (muitos) catálogos e livros de Nelson Leirner, visivelmente anotados e estudados. Quando arguida sobre o impasse com a família, Anita Kuczynski afirmou que preferiria não dar qualquer declaração a respeito e que vinha seguindo as orientações da notificação em respeito a Liliana Leirner. “Minhas intenções foram as melhores desde o início e abri meu espaço com uma homenagem a um artista que sempre admirei. Peço desculpas a Liliana por não tê-la contatado antes e a convido para que venha ver a exposição aqui em São Paulo. Seria um prazer conhecê-la.”
Galeristas ouvidos pela reportagem defenderam a legitimidade da exposição. “Já fiz inúmeras exposições de artistas históricos e sempre busco estabelecer um diálogo com os representantes do espólio, mas eventualmente, quando isso não é possível por qualquer razão, não existe qualquer impedimento de expor obras de terceiros”, afirma Antonia Bergamin, sócia da Galeria Galatea, em São Paulo, que também trabalha com mercado secundário. Para Gustavo Nóbrega, proprietário da Galeria Superfície, também em São Paulo, a questão “direitos autorais versus propriedade de uma obra particular” é algo “com que temos de lidar cotidianamente em uma galeria de mercado secundário. Faz parte não poder reproduzir imagens dos trabalhos. Eu já deixei de mostrar obras para evitar problemas com isso”, diz em entrevista à seLecT_ceLesTe. “Anita não fez nada de errado. E acredito que se ela tivesse feito isso [expor obras feitas por NL e consignadas dos respectivos proprietários dos objetos] dentro de uma SP-Arte, não haveria reclamações, mas uma exposição inteira dedicada a um artista tem sempre um peso muito maior”, pondera Nóbrega.
Mas, afinal, quem pode expor Nelson Leirner? O advogado de Liliana Leirner explica que “qualquer um tem direito de expor, porém, o direito de reprodução de imagens das obras não pode prescindir de autorização dos detentores dos direitos autorais”. Para a advogada especializada em propriedade intelectual Karina Muller, “a utilização das imagens nesse contexto não configura qualquer ilícito. Usar essas imagens é inerente à atividade da galeria para promover o negócio dela, que é uma exposição, portanto ela tem liberdade de fazer a divulgação da mostra. A galeria não está reproduzindo em série em caderno ou caneca, fazendo versão multimídia, reproduzindo digitalmente e comercializando, ou fez um NFT, ela só está utilizando as imagens para promover a própria exposição, a própria atividade dela como galerista. Promover a exposição não se configura como reprodução não autorizada”, diz.
Com a possibilidade de publicação do catálogo da mostra suspensa, fiquemos com um trecho do belo [e inédito] ensaio de Tadeu Chiarelli: “Com alguns artistas reforçamos nossas certezas, com outros, aprendemos. Foi o que aconteceu comigo quando Nelson Leirner me convidou para escrever um livro sobre sua obra, publicado em 2002, com o título arte e não Arte. Não me lembro se, de fato, tudo começou com esse título, proposto por Nelson, mas estou certo de que arte e não Arte sintetiza bem o que aprendi naquele período. Com aquele título como guia, Nelson sinalizava para um problema para ele crucial: em nossa sociedade, desde há muito tempo, existe uma compreensão de que a palavra ‘Arte’ deva ser escrita com A maiúsculo para marcar, desde o início, a suposta excepcionalidade desse tipo de ação/produção em relação à vida, ao cotidiano. Para Nelson, no entanto, ‘arte’ deveria ser escrita com o ‘a’ minúsculo, justamente para enfatizar que esse tipo de ação deve estar mergulhado na vida, submerso no cotidiano enquanto parte do intenso processo de viver.”
Em toda complexidade e estatura de um artista como Nelson Leirner, é não apenas desejável, mas necessário que sejam realizados hoje novos trabalhos curatoriais de fôlego em contextos institucionais, fora do âmbito do mercado, que venham a estabelecer outros diálogos com sua voz sempre dissonante e provocadora. Em seu livro de 2002, em passagem sobre Happening da Crítica (1966), Tadeu Chiarelli cita Nelson Leirner: “É a primeira vez que um artista cria caso para saber por que foi aceito num salão”. Que diria nosso herói iconoclasta sobre Nelson Leirner: Por uma Outra Lógica?