A primeira tela que Carmézia Emiliano pintou retratava um buritizeiro em um Igarapé. Era 1992, ano do qual a artista se lembra bem, porque foi quando o poeta Eliakin Rufino a convidou para visitar a exposição do irmão, Elieser Rufino, na Galeria Cunhã, em Boa Vista. Vendo que Carmézia ficou encantada com as obras expostas, o poeta presenteou-a com telas, pincéis e tintas, incentivando-a na arte que, durante os 30 anos seguintes, ela desenvolveria com maestria e um compromisso ético e estético ímpar na historiografia. “Os amigos compravam as telas e, com isso, eu podia comprar mais material para seguir pintando”, relembra, em entrevista à seLecT_ceLesTe.
Depois de mais de uma década de intensa produção, em 2006 a artista se inscreveu, por intermédio de um conterrâneo que vivia em Brasília e leal admirador de sua obra, em um edital da Bienal Naïfs do Brasil, no Sesc Piracicaba, tendo suas obras selecionadas, e recebeu logo um prêmio na primeira participação. Das sete edições subsequentes da bienal de arte naïf a artista participou devotamente e orgulhosa de seguir chamando assim o estilo de suas pinturas. Por um lado, o conceito de naïf expressa o lugar de acolhida da obra de Carmézia Emiliano no sistema de arte. Por outro, como defende Renata Felinto, artista e cocuradora da 15ª Bienal Naïfs (2020), em seu ensaio para o catálogo, “o termo, que inicialmente imprimia ingenuidade à pessoa criativa-criadora, converte-se mais em uma intuitiva estratégia de subversão do que em um movimento artístico. (…) E, assim, a categoria de artistas que temos denominado naïfs, sem intelectualizar suas ações, numa estratégia decolonial, incorpora o nome dado de forma jocosa à produção de Henri Rousseau, autodenominase naïf, apropria-se da crítica que tendia a diminuir suas produções e as pessoas artistas que as produzem”.
Na conversa com a revista, por chamada de vídeo, a artista começa se apresentando: “Primeiro, o meu nome: sou Carmézia Emiliano, etnia Macuxi. Convivi muitos anos na Maloca do Japó, em Normandia (RR); aos 16 anos saí para trabalhar em uma fazenda, em Caracaranã, fiquei seis anos fora e voltei para Japó. Logo depois, fui trabalhar como cozinheira em Boa Vista, onde vivo até hoje”. Carmézia conta como conheceu o pernambucano Léo Malabarista, artista de circo, com quem se casou, e do apoio que recebeu de Eliakin, Léo e Augusto Moura, o conterrâneo baseado em Brasília, para seguir a carreira de artista. “Em Boa Vista, ninguém nunca reconheceu minha arte, que sempre foi e ainda é um trabalho solitário”, afirma.
É simbólico que a última participação na Bienal Naïfs tenha ocorrido em 2020, porque, dali em diante, a trajetória de Carmézia Emiliano teve uma guinada institucional de franca consagração no circuito da arte contemporânea, com a participação nas mostras Moquém_Surari (2021), no Museu de Arte Moderna de São Paulo; Trienal Frestas: O Rio É Uma Serpente (2021), no Sesc Sorocaba; A Parábola do Progresso (2022), no Sesc Pompeia; a individual Carmézia Emiliano: A Árvore da Vida (2023), no Masp; culminando no convite para a Bienal de São Paulo e a Bienal das Amazônias, atualmente em cartaz em São Paulo e Belém, respectivamente. “Nunca imaginei que conheceria tantos lugares ou tanta gente importante através do meu trabalho”, comenta a artista.
PALMEIRA DA INFÂNCIA
Para Carmézia, retratar as histórias da Maloca do Japó é uma forma de manter viva a memória dessas experiências fundantes de seus modos de ver e viver. Mesmo tendo fixado morada em Boa Vista no início dos anos 1980, toda a pesquisa visual da artista volta-se aos rituais, às festas e ao cotidiano da vida dos povos Macuxi da Normandia, região demarcada e homologada como Terra Indígena Raposa Serra do Sol há 30 anos. “Pinto tirando da memória, não olhando uma imagem”, conta. A dança do Parixara, que celebra a primeira colheita da roça, a pesca e a caça, o preparo do damurida, prato típico macuxi, a capivara e outros bichos, o buritizeiro e outras árvores, a trama das redes de dormir, o descanso, as brincadeiras, o Monte Roraima: cada detalhe das vivências em comunidade ganha visualidade e materialidade pelas mãos da artista.
Em uma das telas feitas especialmente para a 35ª Bienal de São Paulo, Buritizeiro no Lavrado (2023), Carmézia Emiliano retorna mais uma vez ao tema recorrente — como todos os outros, já que suas séries de pinturas se organizam em ciclos renovados —, da palmeira da infância, o buriti. Lavrado é como o povo macuxi se refere ao Cerrado (lembrando que o bioma principal de Roraima é a Floresta Amazônica, com faixas de Cerrado), tomado nessa paisagem pelos rios abundantes, pessoas e bichos compartilhando o bem-viver. A estrutura da composição traz a marca registrada da artista: a atmosfera palpável, cores vivas, a distribuição de todos os elementos em uma forma de grid, que organiza o espaço e dispensa regras engessadas de perspectiva e volume. Naïf descolonial, resistência de uma cultura que insiste em permanecer e sonhar com futuros ancestrais.