Amizade (2023) espelha diversas telas que deram vida às videochamadas pandêmicas no Zoom, uma vez festas, outras sessões de terapia, aulas e as intermináveis lives etc., e cria uma dualidade com as cenas (até então) antigas da vida lá fora. O filme também coloca Cao Guimarães no lugar comumente ocupado por seus personagens, em frente às câmeras e com uma narrativa que percorre os últimos 30 anos de sua vida.
A poesia visual reafirma a potencialidade do cinema como um campo aberto de fabulação, e celebra a beleza e a sorte do encontro entre amigos que perpassam o tempo, o esquecimento e esculpem a nossa memória. “Nessa época, a gente ia pra um sítio e projetava os filmes em um lençol. Eu comecei fazendo cinema pros amigos e com os amigos. Isso é muito bonito”, afirma o cineasta e artista plástico em bate-papo na pré-estreia.
O filme estreou nos cinemas brasileiros na última semana (13). A pré-estreia em São Paulo, em uma terça-feira à noite, se tornou uma sessão íntima entre o artista e seus amigos. E não poderia ser de outra forma, uma vez que são eles quem costuram o tempo na montagem excepcional de Guimarães. “Comecei a descobrir vários outros, não só de mim mesmo, mas dos meus amigos. E relacionar tudo isso foi muito interessante, porque é uma geração fantasmagórica [a dos artistas dos anos 1980]. E aí se pula um pouco para o universo da ficção e da vontade de ficcionalizar a memória”.

Ao longo de sua trajetória na intersecção entre o cinema e as artes plásticas, a prática multifacetada do artista dirigiu seu olhar para narrativas sobre uma alteridade mais radical – histórias que geram um verdadeiro embate entre o diretor e o retratado. Histórias do Não-Ver (2001) vem logo à mente, por serem os seus “sequestradores” alteridades radicais. Guimarães exibiu sua fascinação pelo outro em diversas produções cinematográficas, como A Alma do Osso (2004), e agora volta sua veia documental para a própria subjetividade, mesclando-se à memória, que também é ficcional.
Em 2016, Cao Guimarães se mudou de Belo Horizonte para Montevidéu, no Uruguai. Durante 3 dias e 2.500km de estrada, o diretor filmou fragmentos da jornada entre as duas cidades ao lado do amigo e produtor Beto Magalhães, que atravessou o sul do país de carro com a sua mudança. Em cenas de uma despedida saudosa, Cao narra em primeira pessoa: já que não poderia levar os amigos para o Uruguai, os trouxe em forma de imagens e sons de arquivo dos mais diferentes formatos – gravações de secretária eletrônica, cartas, VHS, fitas-cassete, Super8 e 16mm. “Minha solidão apaziguada por alguns terabytes de memória”. E, visto que quase todos os personagens/amigos do filme foram ou são parceiros de trabalho, como Rivane Neuenschwander, Rochelle Costi, Matheus Nachtergaele, Lucas Bambozzi, entre outros, cria-se também uma relação entre a amizade e a produção artística da geração do anos 1980.

Os diálogos e os silêncios de Amizade somam à singularidade da obra, dividida em duas partes. Guimarães deseja conversar com o imenso arquivo de imagens – tanto de seus filmes antigos quanto de registros pessoais. Para isso, constrói uma narração em off sem ordem determinada, mas que dialoga simultaneamente com o público e a montagem. O interlocutor pode estar em terceira pessoa, depois em primeira, e então o colega Zé Bento surge conversando com o próprio diretor, e por aí vai. Ainda assim, o silêncio preenche os espaços certos, em que a imagem fala por si só. No momento em que a indústria torna os diálogos onipresentes nos filmes, Guimarães consegue aproximar o tempo do cinema e o tempo da vida. E os vazios dedicados ao silêncio passam a potencializar a fala.
“Ri, Ró, Cristi… onde estão vocês?”, pergunta Cao mergulhado em seu próprio labirinto de memórias. O artista comenta que, se não fosse o isolamento da pandemia, não teria conseguido fazer o filme. Nas nuances da montagem é possível observar certa melancolia provocada pelo distanciamento, além do medo e da incerteza de ter que reinventar radicalmente as velhas formas de relacionamento e amizade. É dessa forma que a sensibilidade da obra contempla tanto as capacidades do universo analógico de fixar no tempo os momentos que o atravessa, quanto às novas possibilidades de encurtamento de distâncias pela tecnologia.
