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Still de Amizade (2023), de Cao Guimarães
Postado em 18/03/2025 - 5:58
O outro era eu
Cao Guimarães mergulha na solidão das telas da pandemia em novo documentário

Amizade (2023) espelha diversas telas que deram vida às videochamadas pandêmicas no Zoom, uma vez festas, outras sessões de terapia, aulas e as intermináveis lives etc., e cria uma dualidade com as cenas (até então) antigas da vida lá fora. O filme também coloca Cao Guimarães no lugar comumente ocupado por seus personagens, em frente às câmeras e com uma narrativa que percorre os últimos 30 anos de sua vida.

A poesia visual reafirma a potencialidade do cinema como um campo aberto de fabulação, e celebra a beleza e a sorte do encontro entre amigos que perpassam o tempo, o esquecimento e esculpem a nossa memória. “Nessa época, a gente ia pra um sítio e projetava os filmes em um lençol. Eu comecei fazendo cinema pros amigos e com os amigos. Isso é muito bonito”, afirma o cineasta e artista plástico em bate-papo na pré-estreia.

O filme estreou nos cinemas brasileiros na última semana (13). A pré-estreia em São Paulo, em uma terça-feira à noite, se tornou uma sessão íntima entre o artista e seus amigos. E não poderia ser de outra forma, uma vez que são eles quem costuram o tempo na montagem excepcional de Guimarães. “Comecei a descobrir vários outros, não só de mim mesmo, mas dos meus amigos. E relacionar tudo isso foi muito interessante, porque é uma geração fantasmagórica [a dos artistas dos anos 1980]. E aí se pula um pouco para o universo da ficção e da vontade de ficcionalizar a memória”.

“MINHA SOLIDÃO APAZIGUADA POR ALGUNS TERABYTES DE MEMÓRIA”
Still de Amizade (2023), de Cao Guimarães

Ao longo de sua trajetória na intersecção entre o cinema e as artes plásticas, a prática multifacetada do artista dirigiu seu olhar para narrativas sobre uma alteridade mais radical – histórias que geram um verdadeiro embate entre o diretor e o retratado. Histórias do Não-Ver (2001) vem logo à mente, por serem os seus “sequestradores” alteridades radicais. Guimarães exibiu sua fascinação pelo outro em diversas produções cinematográficas, como A Alma do Osso (2004), e agora volta sua veia documental para a própria subjetividade, mesclando-se à memória, que também é ficcional.

Em 2016, Cao Guimarães se mudou de Belo Horizonte para Montevidéu, no Uruguai. Durante 3 dias e 2.500km de estrada, o diretor filmou fragmentos da jornada entre as duas cidades ao lado do amigo e produtor Beto Magalhães, que atravessou o sul do país de carro com a sua mudança. Em cenas de uma despedida saudosa, Cao narra em primeira pessoa: já que não poderia levar os amigos para o Uruguai, os trouxe em forma de imagens e sons de arquivo dos mais diferentes formatos – gravações de secretária eletrônica, cartas, VHS, fitas-cassete, Super8 e 16mm. “Minha solidão apaziguada por alguns terabytes de memória”. E, visto que quase todos os personagens/amigos do filme foram ou são parceiros de trabalho, como Rivane Neuenschwander, Rochelle Costi, Matheus Nachtergaele, Lucas Bambozzi, entre outros, cria-se também uma relação entre a amizade e a produção artística da geração do anos 1980.

Still de Amizade (2023), de Cao Guimarães

Os diálogos e os silêncios de Amizade somam à singularidade da obra, dividida em duas partes. Guimarães deseja conversar com o imenso arquivo de imagens – tanto de seus filmes antigos quanto de registros pessoais. Para isso, constrói uma narração em off sem ordem determinada, mas que dialoga simultaneamente com o público e a montagem. O interlocutor pode estar em terceira pessoa, depois em primeira, e então o colega Zé Bento surge conversando com o próprio diretor, e por aí vai. Ainda assim, o silêncio preenche os espaços certos, em que a imagem fala por si só. No momento em que a indústria torna os diálogos onipresentes nos filmes, Guimarães consegue aproximar o tempo do cinema e o tempo da vida. E os vazios dedicados ao silêncio passam a potencializar a fala.

“Ri, Ró, Cristi… onde estão vocês?”, pergunta Cao mergulhado em seu próprio labirinto de memórias. O artista comenta que, se não fosse o isolamento da pandemia, não teria conseguido fazer o filme. Nas nuances da montagem é possível observar certa melancolia provocada pelo distanciamento, além do medo e da incerteza de ter que reinventar radicalmente as velhas formas de relacionamento e amizade. É dessa forma que a sensibilidade da obra contempla tanto as capacidades do universo analógico de fixar no tempo os momentos que o atravessa, quanto às novas possibilidades de encurtamento de distâncias pela tecnologia.

Still de Amizade (2023), de Cao Guimarães
NAS NUANCES DA MONTAGEM É POSSÍVEL OBSERVAR CERTA MELANCOLIA PROVOCADA PELO DISTANCIAMENTO, ALÉM DO MEDO E DA INCERTEZA DE TER QUE REINVENTAR RADICALMENTE AS VELHAS FORMAS DE RELACIONAMENTO E AMIZADE