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Happening Onde Estão Minhas Obras, do pernambucano Bruno Faria, no Mamam (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 27/01/2017 - 4:02
O prefeito quer ser curador
Por trás da polêmica da remoção de grafites em São Paulo, seLecT investiga a legitimidade da curadoria realizada pelo prefeito João Doria na cidade
Ana Abril

Em 26 de agosto de 1999, o artista Arthur Omar pichou as paredes do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) com a frase: “Onde estão as minhas obras?”. Esse foi o jeito escolhido pelo mineiro para protestar contra o extravio de seus trabalhos, que não chegaram no dia da abertura da exposição Antropologia da Face Gloriosa. As mesmas paredes “vandalizadas” por Omar receberam 18 anos depois o happening Onde Estão Minhas Obras, do pernambucano Bruno Faria, com curadoria de Clarissa Diniz.

O pixo que deu voz a Arthur Omar é o mesmo que exprime a necessidade de visibilidade e de presença dos jovens das periferias nos centros das cidades e em edifícios históricos.

Agora, a nova gestão da Prefeitura de São Paulo reabre a polêmica sobre a legitimidade do pixo com a remoção de grafites da Avenida 23 de Maio, um dos maiores corredores viários da cidade. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o atual prefeito João Doria explica sua ação como uma defesa da arte urbana, porém não de pixos. “Amo a arte. Sou totalmente a favor da arte urbana, com muralistas e o grafite. Só entendo que precisa ter disciplina. Não pode a cidade inteira estar grafitada. Até porque estabelece uma conexão com aqueles que julgam o que fazem como arte. E não é. Pichador não é artista. É agressor”, disse. Mas se os pichadores e grafiteiros não podem julgar seu próprio trabalho como arte, o prefeito pode?

(Foto: Mayte Santos Albardía)
Prédios pichados com menções ao prefeito Doria, no centro de São Paulo (Foto: Mayte Santos Albardía)

Ao prefeito de uma cidade cabe a elaboração de políticas públicas para saúde, educação, saneamento, habitação e cultura, entre outros itens relacionados com a qualidade de vida dos cidadãos. Excede as funções do prefeito a legitimação do que seja arte ou não.

Após rechaço da opinião pública, a gestão retifica sua fala sobre a retirada de murais e grafites. O maior recuo de João Doria ocorreu na quinta 26/1, quando anunciou a criação de um projeto batizado de Museu de Arte de Rua (MAR) – apropriando-se da sigla do importante Museu de Arte do Rio – que definirá os pontos da cidade onde o grafite será autorizado. Além disso, a Prefeitura pagará cachê aos artistas e arcará com as tintas usadas nos trabalhos: a primeira edição, que começará em março, tem gastos estimados em R$ 800 mil. O programa acontecerá a cada três meses, em um diferente bairro da cidade, começando pelo Baixo Augusta, região central.

A proposta também prevê a criação de uma comissão de seleção que receberá projetos e currículos, segundo o secretário municipal da Cultura, André Sturm, que afirma que a criação do MAR paulistano já estava planejada desde dezembro, mas só iria ser anunciada em março.

O grafiteiro NUNCA posta imagem de seu mural sendo apagado após exposição no Sesc Pinheiros (Foto: Reprodução)
O grafiteiro NUNCA posta imagem de seu mural sendo apagado após exposição no Sesc Pinheiros (Foto: Reprodução)

Mas antes de formar um comitê plural e isento – como deve ser todo júri de seleção de projetos públicos – a Prefeitura de São Paulo preferiu uma curadoria solo, tomando para si a tarefa de arbitrar sobre aquilo que possa ou não ser considerado arte. Essa é a razão de alguns dos grafites da Avenida 23 de Maio permanecerem intactos. “Gosto muito do Kobra. Acho brilhante, competente, justifica o fato de ele ter internacionalizado suas obras”, disse João Doria, ao Estadão. Por essa razão, o grafite realizado há 8 anos pelo artista para comemorar o aniversário de São Paulo não foi removido.

Contudo, na quinta 26, o desenho que mostra cenas de São Paulo na década de 1920 apareceu pichado de cinza e com a imagem do prefeito do lado, como se fosse ele mesmo o autor da pichação. Consequentemente, o trabalho será apagado, restando apenas sete grafites na 23 de Maio, que já foi considerada o maior mural de grafite da América Latina. Segundo a TV Globo, Kobra achou justa a retirada de seu grafite, pois assim recebe o mesmo tratamento que o restante dos artistas.

Chivitz
Publicação de Chivitz sobre o projeto Cidade Linda, no Facebook (Foto: Reprodução)

O projeto de curar os murais da cidade é confirmado pela própria Secretaria de Comunicação (SECOM) em nota enviada a seLecT: “A Prefeitura de São Paulo vai preservar e ampliar os pontos de grafites na cidade de São Paulo. A meta é valorizar essa modalidade de arte urbana com a criação de cursos e oficinas para estimular que pichadores adotem o grafite e passem a atuar em locais permitidos”.

O que não poderia ser desprezado pela gestão pública é a natureza dessa prática artística: se apropriar do espaço urbano ocioso e extravasar limites institucionais.

Nas redes sociais, as vozes do mundo da arte não têm deixado de se manifestar. “Momento de se rever no Brasil o que é patrimônio cultural, não precisa ser tombado para ter sentido de patrimônio. Se faz parte da história de uma cidade é patrimônio público, o compromisso é duplo, não somente com os artistas que fizeram, mas a quem pertence a obra que é o público”, publicou a artista Claudia Bakker em sua conta de Facebook.

O famoso grafiteiro Cripta Djan, que coordenou o levante da pichação no Pavilhão da Bienal em 2008, na 28º Bienal de São Paulo (ver documentário Shoot Yourself, de Paula Alzugaray e Ricardo van Steen), escreveu uma carta ao “Prefeito Marqueteiro Ant Pixação”, afirmando que o dia em que os problemas de saúde, saneamento, educação e moradia estiverem resolvidos, ele será o primeiro em parar de pichar.

Os também grafiteiros NUNCA, Chivitz, Minhau e Tikka Meszaros realizaram postagens criticando o projeto chamado Cidade Linda, que já foi rebatizado de Cidade Cinza, e mostrando imagens de seus próprios trabalhos apagados. Talvez a manifestação mais popular e compartilhada, seja uma marchinha de carnaval cujo refrão é: “Eu te faço um convite, esqueça essa bobagem de grafite. Esse muro fica muito mais bonito com um quadro do Romero Britto”.

Histórico

Apesar do calor da polêmica dos grafites ter sido reavivado nesta semana, a discussão é antiga. Na gestão Gilberto Kassab, em 2008, foi apagado um mural com trabalhos de OSGEMEOS, e de outros artistas, de quase 700 m, na disputada Avenida 23 de Maio. A prefeitura alegou que a remoção foi um acidente. A parte mais irônica da história é que no momento da supressão, OSGEMEOS e NUNCA estavam em Londres pintando o exterior da Tate Modern.

O documentário Cidade Cinza mostra a batalha travada nas ruas entre os grafiteiros e a tinta cinza da Prefeitura. Alguns trechos do filme exibem imagens nas quais Luiz Alves da Costa, ex-auxiliar do gabinete da subprefeitura de Pinheiros, escolhe os murais que permanecem e os que são apagados. Dessa forma, a questão é retomada: em que se baseia a curadoria de grafites da Prefeitura e qual é a legitimidade para realizar esse tipo de ação?

Na Gestão Haddad também houve conflitos entre OSGEMEOS, que deixavam mensagens criticando a remoção dos pixos, e a Subprefeitura da Sé, que os apagava em menos de 24 horas.

No mesmo período em que o Museu de Arte de São Paulo (Masp) anuncia uma exposição do icônico grafiteiro norte-americano Jean-Michel Basquiat para 2018 e Bruno Faria recria o pixo de Arthur Omar, a Prefeitura de São Paulo quer ditar as regras do grafite paulistano. Mas o que ela deve levar em conta é que nenhum curador tem poder irrestrito. O trabalho da curadoria está sempre condicionado às instituições e às comunidades e meio em que se insere. E se tratando da cidade de São Paulo, a instituição é o paulistano. Ele tem que ser ouvido.