Minha mãe perdeu as duas pernas no caminho para a galeria de arte do Barbican Centre. Era seu dia de folga, e ela estava indo ver uma exposição chamada Unravel: The Power and Politics of Textiles in Art [Desvendar: O Poder e a Política dos Têxteis na Arte]. Ela tinha acabado de chegar a Londres vindo de Oxford e foi atropelada por um ônibus do lado de fora da Victoria Station. Isso foi em uma manhã de sexta-feira no início de maio. No dia seguinte, no meu apartamento em Manhattan, recebi uma ligação inesperada — minha mãe nunca me liga — de uma ala de trauma no [hospital] West London. “Estou com muita dor”, ela disse com uma voz alta, angustiada e arrastada que eu mal reconheci, “mas estou em muito boas mãos”. Algumas horas depois, eu estava em um voo para casa.
Quando a visitei no hospital, mamãe me perguntou se valia a pena perder as pernas pela exposição. “Não”, disse a ela, embora naquele momento eu não a tivesse visto. Quando vi, duas semanas depois, minha resposta se mostrou correta. Unravel apresentava tapeçarias, colchas, bordados, esculturas e instalações de artistas modernos, a maioria dos quais era de identidades historicamente marginalizadas. Os curadores propunham que os próprios tecidos também tinham sido marginalizados, tendo sido categorizados como femininos e considerados “artesanato” em vez de “belas artes”. Como resultado, argumenta o texto introdutório da exposição, os aspectos politicamente mais radicais da fabricação têxtil foram obscurecidos. “O que significa imaginar uma agulha, um tear ou uma vestimenta como uma ferramenta de resistência?”, pergunta o texto.
Penduradas no teto acima da entrada, havia indumentárias no estilo nativo americano de Jeffrey Gibson, um pintor e escultor que também representou os Estados Unidos no pavilhão do país na Bienal de Veneza de 2024. Inspiradas por sua herança Choctaw e Cherokee, as peças eram adornadas com patchworks de padrões arco-íris impressos com as frases people like us [pessoas como nós], we play endlessly [nós brincamos sem parar], e talk to me so that I can understand [fale comigo de forma que eu possa entender]. Mais adiante, entre outras coisas, havia uma colagem pintada representando uma alegre mulher negra em uma bodega; pequenos bordados realistas de marchas drag e dyke na cidade de Nova York; esculturas de cactos costuradas a partir de uniformes da Patrulha da Fronteira dos EUA; e uma imagem de uma mulher dando à luz bordada em seda vermelho-sangue, seu vasto útero irradiando ondas de energia [obra de Judy Chicago]. Havia peças decorativas com nós, colagens costuradas à mão, trabalhos tecidos abstratos suspensos no ar e fardos de pano macios.
A galeria foi dividida por uma série de espaços vazios. Logo após sua abertura, Unravel começou a se desfazer lentamente, pois várias obras foram retiradas em protesto contra a decisão do Barbican de não sediar uma série de palestras da London Review of Books que estava programada e incluía The Shoah After Gaza, uma fala do escritor Pankaj Mishra que ele mais tarde publicou como um ensaio na revista. Os desaparecimentos começaram quando duas peças de Loretta Pettway, uma artista têxtil de Gee’s Bend, Alabama, foram removidas por Lorenzo Legarda Leviste e Fahad Mayet, que as haviam emprestado. Outro colecionador e quatro artistas proeminentes seguiram o exemplo. Alguns deles escreveram cartas abertas alegando que o museu estava censurando discursos pró-palestinos. Nas palavras da pintora, bordadeira e videoartista libanesa Mounira Al Solh, “palestrantes que estão levantando suas vozes por justiça estão sendo cancelados”.


A escritora e artista chilena Cecilia Vicuña permitiu que suas serpentinas de lã penduradas permanecessem na exposição, mas afixou uma carta ao lado delas declarando solidariedade aos seus colegas dissidentes. Yee I-Lann —cuja instalação de tapetes tradicionais com padrões malaios e silhuetas de mesas entrelaçadas pretendia subverter o “poder da mesa”, aparentemente um símbolo da opressão portuguesa, britânica e holandesa— também declinou de retirar sua obra de arte. Em vez disso, ela mandou trazer uma mesa (!) dos escritórios administrativos do Barbican, na qual foi exibida uma cópia da edição da LRB em que o ensaio de Mishra foi publicado. Colados na capa estavam dois adesivos amarelo-canário exibindo qrcodes que levavam a um site animado com texto de Leviste e Mayet em que se lia:
Censura no Barbican
Repressão no Barbican
Racismo no Barbican
Genocídio no Barbican
Foi a exposição mais deprimente que já vi na galeria, dificilmente digna de uma visita, muito menos de perder as pernas. Enquanto Unravel fingia ser politicamente radical —até mesmo revolucionária—, não parecia representar muito além da ortodoxia liberal e da diversidade em prol de um ambiente levinho. Oferecia fantasias de resistência, mas tinha pouco a oferecer em termos de mudança social genuína e substancial ou experimentação artística. As obras foram quase inteiramente produzidas com métodos e materiais tradicionais, em estética reconhecível, e poderiam muito bem ter datado de meio século atrás, senão de muito antes.
Essa retrospecção não se limitou ao Barbican. Pouco antes do acidente da minha mãe, eu tinha ido à sexagésima edição da Bienal de Veneza, a mais longeva e regularmente recorrente pesquisa sobre arte internacional no mundo. O que encontrei lá foi muito parecido: uma volta nostálgica à história e um fascínio pela identidade, apresentada em formas familiares. A Bienal de 2024, chamada Foreigners Everywhere, tomou quatro identidades como seus assuntos —o artista queer; o artista outsider; o artista folk; o artista indígena— e sugeriu que todos eles eram estrangeiros porque marginalizados. Foi uma mostra de retratos pintados, costurados à mão, esculpidos, fotografados e filmados de tais figuras; cenas ingênuas da vida cotidiana em todo o Sul Global, da Austrália aborígene à Amazônia brasileira e colombiana; e cerâmica tradicional, entalhe em madeira, escultura em metal e tecido tingido. Havia um enorme mural de um coletivo de mulheres de Bangalore; uma interpretação de dança contemporânea sobre a violência cometida contra migrantes chineses e pessoas queer no Ocidente por um coreógrafo millennial de Hong Kong; uma pintura textual em que se lia “homossexual anônimo”; e, em um pátio externo, um autorretrato nu em bronze de uma artista transgênero em um pedestal que dizia, simplesmente, mulher.
Na verdade, todas as principais bienais que visitei nos últimos oito anos — da Alemanha à Grécia, da Itália aos Estados Unidos, do Brasil aos Emirados Árabes Unidos — adotaram como temas a profunda riqueza da identidade e a rejeição do Ocidente. Essas bienais acolheram artistas esquecidos do século 20 e exibiram velharias recicladas, artesanato tradicional e arte popular. Seus comunicados de imprensa destacaram a reivindicação de formas pré-coloniais de conhecimento, como o pensamento indígena e a magia.


A VIRADA DA CONSCIÊNCIA SOCIAL
Há apenas dez anos, o mundo da arte era algo muito diferente: um circuito globalizado de bienais e feiras que operavam no comércio internacional de ideias e commodities. Era um espaço de espetáculo e inovação, em que artistas experimentavam meios totalmente diferentes e entretinham ideias radicais sobre o que a arte poderia fazer e por quê. Eles estavam trabalhando em novas formas culturais para um novo milênio. A arte era onde a experimentação acontecia, onde as pessoas elaboravam como era estar vivo neste estranho novo século e como dar uma forma a esse sentimento. Artistas eram pesquisadores dos quais nunca se esperava que chegassem a uma conclusão. Eles tinham a liberdade da absoluta falta de propósito.
Mas, à medida que a fé na ordem liberal começou a ruir por volta de 2016, essa concepção de arte não parecia mais relevante. À medida que as preocupações com identidade, questões sociais e desigualdades se intensificavam, havia uma sensação de que o mundo da arte havia se tornado frívolo e decadente, que a proliferação de formas e abordagens ao longo das décadas havia atingido seu limite. A arte, que antes era uma maneira de produzir polifonia discursiva, alinhou-se aos discursos dominantes de justiça social da época, com obras equipadas como protesto e contextualizadas de acordo com a teoria decolonial ou queer, movidas por um foco único na identidade.
Essa reviravolta foi uma consequência do próprio esgotamento e superexpansão do mundo da arte; aqui estava uma nova direção para a arte, um sistema de crenças a seguir que poderia restaurar parte de seu significado e relevância, talvez até mesmo uma grande narrativa e um propósito. A ambição de explorar cada faceta do presente foi rapidamente substituída por um compromisso devoto com questões de equidade e responsabilidade. Havia uma nova resposta para a questão do que a arte deveria fazer: ela deveria amplificar as vozes dos historicamente marginalizados. O que ela não deveria fazer, ao que parecia, é ser inventiva ou interessante.
O filósofo e crítico Arthur Danto acreditava que a arte terminou nos anos 1960. Do final do século 19 em diante, houve uma sucessão agitada de movimentos modernistas, cada um reagindo contra o anterior e propondo suas próprias respostas a questões fundamentais sobre o que a arte deveria ser. No final dos anos 60, no entanto —seguindo os convulsivos saltos adiante da arte pop, com seu apagamento da distinção entre obras de arte e objetos cotidianos, e o conceitualismo, com sua dissolução de objetos em ideias— não havia mais para onde a arte moderna ir, escreveu Danto:
“No início, apenas a mimese era arte, então várias coisas eram arte, mas cada uma tentava extinguir seus concorrentes e, então, finalmente, tornou-se aparente que não havia restrições estilísticas ou filosóficas. Não há uma maneira especial como as obras de arte têm de ser. . . . É o fim da história”.
Como um Buda que meditou profundamente demais e passou pela iluminação a caminho de uma insanidade delirante, a arte moderna havia se destruído por meio da contemplação excessiva e niilista. Ainda haveria arte, disse Danto, e ela poderia até prosperar, mas a grande narrativa do modernismo havia acabado.
Para Danto, o fechamento dessa narrativa de progresso foi o que tornou o “contemporâneo” possível. Como a arte não responderia mais a si mesma e não teria mais restrições, outras atividades humanas poderiam ser extraídas do mundo para seu bucho faminto. A arte não estava mais avançando. Artistas individuais eram livres para consumir o presente, engolir outras formas culturais e distorcê-las em novas experiências.
A variedade era abundante: Cao Fei construiu uma cidade flutuante no mundo de realidade virtual Second Life; Paola Pivi encheu um Kunsthalle suíço com três mil xícaras de cappuccino e um leopardo; Cai Guo-Qiang coreografou uma exibição de fogos de artifício das pegadas de um gigante correndo pelo céu de Pequim para a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Verão de 2008; Wael Shawky filmou uma adaptação do ensaio histórico de Amin Maalouf, The Crusades Through Arab Eyes, como um longa-metragem épico de cabaré de marionetes; Philippe Parreno viajou para a Patagônia para contar duas horas de histórias filosóficas desconexas para uma colônia de pinguins na praia, tirando apenas uma única fotografia como documentação; Carsten Höller manteve um rebanho de renas no Hamburger Bahnhof de Berlim, alimentou metade delas com cogumelos mata-moscas e construiu um quarto de hotel em forma de cogumelo no qual os hóspedes que passassem a noite podiam se servir da urina potencialmente alucinógena do veado.
A arte dos anos 1990, 2000 e início dos anos 2010 era pluralista em suas intenções, formas e assuntos. A arte contemporânea abrangeu preocupações diversas como literatura e poesia, dança de vanguarda, teatro, cinema, televisão aberta, psicanálise, filosofia, história, política, noise music, pornografia, pole dance, abjeção online, sacrifício ritual, crucificação, canibalismo, churrascos tailandeses, Zinedine Zidane jogando uma partida de futebol em Madri, navegação de longa distância, astronomia, design industrial, ser um cachorro, morder pessoas — tudo. Tudo poderia ser refeito como arte. O “contemporâneo” era eternamente evasivo, movendo-se cada vez mais longe com os artistas indo atrás, um projeto de pesquisa sem fim.
Naquela época, era possível se sentir parte de uma vanguarda e — porque havia uma mania no mundo da arte e um nível de autoconfiança que pessoas ricas se sentiam obrigadas a encorajar — receber o apoio e os recursos para tentar os projetos mais grandiosos. A arte contemporânea era fundamentalmente otimista; havia uma convicção de que fazer arte era um bem em si mesmo, que ultrapassar seus limites era um esforço que valia a pena e que grandes saltos à frente ainda eram possíveis na cultura. Teóricos, filósofos, poetas e escritores eram atraídos de outros campos. O mundo da arte era onde você encontraria a mais ampla resposta ao que quisesse fazer. Era onde você poderia encontrar as ideias mais incomuns e absurdas — e open bars, sexo e glamour também. Este era o mundo da arte para o qual eu fora atraído.


HUO E A ORGIA DA CONECTIVIDADE
Ao longo dos meus 20 anos, quando eu estudava história da arte e curadoria, estagiava em galerias públicas e comerciais, e trabalhava em revistas de estilo em Londres, a arte parecia muito importante. Ela estava se movendo rápido —havia um fluxo constante de novos artistas e pensadores, e uma obrigação de acompanhá-los. Hans Ulrich Obrist, o supercurador proeminente dos anos 2000, para quem estagiei na Serpentine Gallery de Londres no verão de 2008, sempre dizia que tudo era “urgente”; era urgente que as pessoas da arte continuassem falando sobre arte, urgente que continuassem fazendo arte e urgente que continuassem vendo arte. Havia tantas pessoas fascinantes para conhecer, tantas ideias para explorar, tantos projetos que precisavam ser realizados —mas tão pouco tempo. Obrist costumava sediar uma série de salões, conhecidos como Brutally Early Club, em cafés ao redor de Londres, onde escritores e pensadores se reuniam para discutir suas ideias às seis e meia da manhã. Não havia tempo para descansar.
Obrist era conhecido por seus amigos e colegas como “Hurricane” [Furacão]. Ele circunavegou o mundo implacavelmente, encontrando todos que podia e apresentando-os uns aos outros, pessoalmente ou por e-mail em seus dois BlackBerries, insistindo na urgência da conversa deles. Se o papel do artista contemporâneo era consumir o mundo, Obrist acreditava que o papel do curador era conectá-lo, tornar-se o canal através do qual toda a criatividade e pensamento do século 21 poderiam fluir. Ao tentar isso, ele pode muito bem ter perdido partes de sua mente, como compreensivelmente acontece, dormindo muito pouco, passando por muitos fusos muito rápido, enviando e recebendo demasiadas mensagens, ouvindo muitas ideias tolas de muitas pessoas loucas. (Em um ponto, ele tinha pequenos ímãs terapêuticos presos em suas têmporas.) Ele quase se destruiu, como um cidadão comprometido do início do século 21 deveria, em uma orgia de conectividade.
A devoção frenética de Obrist refletia sua convicção de que tudo deveria estar conectado, sua crença idealista nas possibilidades humanistas da internet e da globalização. Ele ainda sonhava que a conectividade poderia unir todos, através de fronteiras e disciplinas — que você poderia fazer amizade com pessoas com ideias semelhantes ao redor do mundo, unidas por interesses comuns. A arte seria a porta de entrada para todas as outras formas de cultura e filosofia: um mapa do presente, uma nova linguagem universal.
Em 2013, no Aeroporto Marco Polo, esperando o voo de volta para Londres da Bienal daquele ano, meus amigos e eu nos sentamos no chão discutindo qual seria o melhor tipo de vida. A vida de um artista, todos concordamos. Buscar a arte era o caminho para ser feliz e livre. Os artistas podiam fazer o que quisessem; eram famosos, respeitados e sexualmente desejáveis; podiam transformar qualquer coisa em arte e criar suas próprias razões para isso; ganhavam muito dinheiro sem fazer muita coisa. Certamente não havia nada melhor. Mas ninguém daquele chão de aeroporto realmente se tornou um artista. Alguns encontraram sucesso em carreiras mais convencionais, alguns ficaram incrivelmente ricos com os primeiros investimentos em Ethereum, alguns desistiram da sociedade e muitos eu esqueci que estavam lá para começo de conversa. Lentamente no início, e então de repente, a música desapareceu, os convidados desapareceram e a festa acabou. A arte contemporânea se tornou tão popular, tão urgente, tão legal e tão bem financiada que uma queda, em retrospecto, era inevitável. Assim que atingiu seu pico, o auge de seu grande florescimento, já havia começado seu declínio vertiginoso.


DESAPRENDER O QUE PENSÁVAMOS SABER
Os primeiros sinais de uma mudança puderam ser vistos em 2017. Naquele ano, a Documenta —uma das maiores exposições de arte do mundo, que normalmente acontece a cada cinco anos em Kassel, Alemanha— foi intitulada Learning from Athens [Aprendendo com Atenas] e inaugurada na capital grega, escolhida por sua importância simbólica como uma porta de entrada da Europa para o Sul Global. Foi dada atenção especial a artistas indígenas, como o escultor kwakwaka’wakw Beau Dick, cujas máscaras enchiam a primeira sala, e vários artistas históricos obscuros, incluindo um número inesperado de pintores realistas socialistas albaneses do século 20. Havia muito a ganhar no presente, o diretor artístico, Adam Szymczyk, explicou na coletiva de imprensa, voltando-se para o passado e “desaprendendo” tudo o que pensávamos que sabíamos.
Na época, essa foi uma abordagem surpreendente — o choque do antigo — porque abandonou a obsessão da arte contemporânea com o presente, bem como a hierarquia que separava a alta cultura das tradições populares, juntando tudo em uma exposição extensa. Os resultados foram impressionantes. Foi a primeira vez que vi obras tradicionais e belas como o conjunto realista mágico de paisagens em têmpera sobre pergaminho do pintor indiano Nilima Sheikh, povoadas por seres folclóricos (intituladas Each Night Put Kashmir in Your Dreams), receberem tal destaque em uma grande exposição; a primeira vez que vi uma representação tecida à mão de um microprocessador, que a Intel Corporation encomendou à artista têxtil navajo Marilou Schultz nos anos 1990; a primeira vez que ouvi a Sinfonia das Sirenes do compositor russo Arseny Avraamov, executada pela primeira vez em 1922, em Baku, com sirenes de fábrica, sinos, buzinas de nevoeiro da marinha e artilharia, para marcar o quinto aniversário da Revolução de Outubro.
O efeito cumulativo desses encontros inesperados com tantas estéticas e ideias desconhecidas foi desorientador e emocionante. Szymczyk tentou conter o mundo inteiro, seus povos e a história moderna em 47 espaços expositivos em Atenas e mais 35 em Kassel. Ninguém desde então ousou criar uma exposição tão ambiciosa ou fez um trabalho tão bom com essa abordagem histórica e não hierárquica.

ESCAPAR DO PRESENTE
Fui a Veneza naquele mesmo ano. O artista brasileiro Ernesto Neto havia colaborado com o povo Huni Kuin da Amazônia em uma grande tenda cerimonial de crochê chamada Um Lugar Sagrado, que funcionava como a peça central do Pavilion of Shamans [Pavilhão dos Xamãs] da exposição. Durante aqueles dias amenos de abertura, os Huni Kuin lideravam procissões dançantes por entre as multidões de curadores, críticos, marchands e socialites que circulavam pelo parque Giardini como se fossem atores de um filme de Fellini. Sete anos depois, na Bienal de 2024, representantes desse povo indígena, com uma população de cerca de onze mil pessoas, ainda tinham os holofotes: toda a fachada do pavilhão central nos Giardini estava coberta por um mural pintado pelo Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU). Inspirados pelos rituais nixi pae (“fio encantado”) nos quais eles ingerem a bebida psicoativa da ayahuasca, recitam canções lideradas por seu mestre de canto e vivenciam ramibiranai (“imagens emergentes”) alucinatórias, os artistas Huni Kuin canalizaram a perspectiva de Yube, o espírito jiboia da floresta, usando a pintura como uma forma de registrar sua tradição. Na entrada da exposição, a história da ponte de jacarés entre a Ásia e as Américas — na qual um jacaré gigante concordou em trazer humanos pelo Estreito de Bering, apenas para submergir quando eles o traíram — foi pintada na colunata em um estilo livro-de-colorir com formas de desenho animado sem emoção preenchidas com pigmentos lúgubres e não misturados, o que parecia menos adequado à entrada de uma grande exposição de arte contemporânea do que a um playground de jardim de infância. Sugeria um tipo de zelo missionário ao contrário: em vez de cruzar o globo e roubar as almas dos nativos com câmeras, os curadores agora trazem imagens pintadas de modos de vida mais primitivos de volta ao Ocidente desencantado para que os espectadores possam ser curados por seu conhecimento corporificado, ou de outra forma acessar uma ligação direta com o tempo antes da Queda, com um paraíso intocado por Trump, populismo, Vale do Silício, globalização, modernidade, Iluminismo, capitalismo, colonialismo, nacionalismo, branquitude, tempo linear e a Revolução Agrícola. Nosso deus pode estar morto, mas há um desejo de redescobrir outros deuses mais antigos.
Alguém poderia razoavelmente identificar um retorno à tradição, um anseio pelo passado, com as forças da reação política. Mas se os conservadores geralmente têm pouco interesse por novidades, ninguém além deles tem também hoje. Todos no mundo da arte contemporânea querem reviver uma tradição, por mais recente que seja: escultura grega helenística, o culto romano de Adônis, antigas cerimônias de casamento núbias, cultura de cerâmica ancestral de nativos nos EUA, canção mesoamericana pré-colombiana, cosmologia mapuche, tecelagem maya tz’utujil, mitologia inca, fabricação de máscaras africanas e a pintura cubista inicial que ela inspirou, “americana” dos anos 1950, o novo movimento de arte sacra do Bosque Sagrado de Osun-Osogbo dos anos 1960, cultura gay de trabalhadores migrantes de Pequim nos anos 1980, arte contemporânea do final dos anos 2000 etc. Todos, ao que parece, querem escapar do presente. Nós apenas ansiamos por passados diferentes.
Exatamente qual passado os artistas almejam está amplamente de acordo com sua própria herança cultural, cuja performance — engajar-se nas tradições estéticas de seus ancestrais, produzir representações literais de suas comunidades e de si mesmos, ou simplesmente fazer de sua identidade e história pessoal seu assunto — é devidamente recompensada. Um gênero particularmente popular consiste em artistas filmando a si mesmos vagando pela floresta tropical ou reencenando antigos rituais em vídeos que existem em algum lugar entre o documentário etnográfico e as dancinhas de TikTok. Na Bienal do Whitney deste ano, Even Better Than the Real Thing, na cidade de Nova York, a artista chilena mapuche Sebastiana Calfuqueo filmou a si mesma arrastando uma longa trilha de tecido azul brilhante pela floresta sagrada de Pehuén até uma piscina abaixo de uma cachoeira. Para Unravel, Antonio Pichillá Quiacaín filmou a si mesmo na natureza selvagem da Guatemala enrolando um tear portátil em volta de uma árvore e torcendo um cordão umbilical brilhante, em referência à prática cultural ancestral Tz’utujil, passada a ele por sua mãe, de tecer como forma de preservar o conhecimento. Para Foreigners Everywhere, o artista sudanês-norueguês Ahmed Umar filmou sua performance para a câmera de uma dança nupcial tradicional sudanesa, tendo elevado “sua ingestão de chocolates noruegueses para aumentar sua silhueta física”.




NEOINDIGENEIDADE REMIXADA
Na Bienal de Whitney em particular, muitas variedades de neoindigeneidade remixada estavam em exibição. As pinturas de Eamon Ore-Giron reinventaram figuras do antigo folclore andino, como o dragão Amaru e o arco-íris de duas cabeças do grande criador Viracocha, nos tons pastéis e no estilo plano dos anúncios de metrô de startups da geração Y. Do outro lado da sala, passando pela instalação de Dala Nasser, feita de madeira e tecido tingido de argila, modelada a partir do Templo de Adônis, o vídeo de Clarissa Tossin de performances da poetisa maia k’iche-‘kaqchiquel Rosa Chávez e do artista ixil Tohil Fidel Brito Bernal apresentou música tocada em réplicas impressas em 3D de instrumentos de sopro maias. Completando o grupo estava o círculo de figuras femininas em tamanho real de Rose B. Simpson, feito na tradição da cerâmica nativa praticada por sua mãe, avó e bisavó. As estátuas eram adornadas com barbante, contas de lava, raiz de oshá e couro, e cobertas com misteriosos símbolos pintados: sinais de mais, cruzes diagonais, colunas de traços e espirais. Simpson descreve seus ídolos como: “ferramentas para usar para curar os danos que experimentei como um ser humano da nossa era pós-moderna e pós-colonial — objetificação, estereótipos e o distanciamento desempoderador de nossos eus criativos por meio da facilidade da tecnologia moderna”. Eles são talismãs que protegem contra o presente.
O pintor Louis Fratino foi um dos artistas mais jovens a receber espaço substancial em Veneza. Também acontece de ele ser um dos poucos que é uma estrela genuína do mercado de arte comercial. Como muitos de seus contemporâneos, Fratino, que tem 31 anos, trabalha em um estilo notavelmente conservador, apesar de seu tema progressista: cenas homoeróticas no estilo de um Picasso em meio de carreira. Ele trabalha com pastiche modernista — ou, como diz o catálogo, “um vocabulário visual que ele sintetiza dos maiores sucessos da história da arte”. Ele é um cubista estadunidense gay do século 21. Fratino saiu rapidamente da obscuridade no final da década de 2010 para se tornar um queridinho do mercado no recente boom da pintura figurativa. Sua obra mais cara, An Argument (2021) — uma cena doméstica onírica de dois homens nus dormindo, um no sofá da sala e o outro do lado de fora na sacada, que foi vendida na Sotheby’s New York por US$ 730.800 em 2022 — foi exibida na Bienal ao lado de outros sucessos como Metropolitan (2019) e I Keep My Treasure in My Ass (2019). Enquanto o modernismo foi uma ruptura consciente com o passado, as pinturas de Fratino são algo como uma ruptura consciente com o futuro; elas são representativas da cultura atual de spin-offs, remakes, citações, interpolações e revivals. Nesse aspecto, o mundo da arte não é tão diferente dos estúdios de cinema, casas de moda ou gravadoras — a nova cultura é feita de nada além da cultura antiga.
O novo trabalho de Fratino para a Bienal, nos disseram, “carrega um peso emocional que parece urgente, revelando uma camada adicional de resposta política ao clima social que as pessoas queer estão enfrentando em todos os lugares”. Enquanto a insistência de Obrist na “urgência” veio da crença de que fazer e discutir arte era intrinsecamente importante, a suposta urgência das obras de Fratino deriva da crença de que, nestes tempos perigosos, a arte pode e deve desempenhar um papel importante na resistência à opressão. Mas é difícil detectar qualquer senso de urgência política nos cenários estéticos e aspiracionais antiquados e de bom gosto das cenas uniformemente agradáveis de Fratino da vida gay burguesa. Cosmos and Miscanthus (2024) é uma natureza-morta de flores em um vaso, e abaixo delas, como pétalas caídas, alguns nus em Polaroid; April (After Christopher Wood), que toma emprestada sua composição da pintura de Wood Nude Boy in a Bedroom (1930), retrata um pintor nu em seu apartamento, a porta da varanda aberta para as árvores no jardim; o vinho aquece o movimentado salão de um restaurante com um brilho âmbar meio bêbado.


IDENTIDADES ESVAZIADAS
Celebrações de identidade feitas em tais estilos profundamente tradicionais são progressistas em conteúdo, mas conservadoras na forma. Elas oferecem um desvio de apropriação cultural ao tentar expiar os pecados e omissões do passado com uma série de pastiches histórico-artísticos: arte canônica refeita por artistas de identidades minoritárias. Artistas figurativos do passado juntaram corpos ideais, pegaram motivos da Bíblia, da mitologia e da história, criaram retratos da classe dominante, capturaram semelhanças próximas e conjuraram figuras como emblemas ou expressões do espírito de sua época; os pintores figurativos da moda de hoje fazem imagens de si mesmos. Antigamente, tínhamos pintores da vida moderna; agora temos pintores de identidades contemporâneas. E é o fato dessas identidades — não a maneira como são expressas — que é entendido como o que dá valor à nossa arte.
A extensão até onde o mundo da arte assumiu essas preocupações levanta outra questão: quando as exposições mais influentes e mais bem financiadas do mundo são dedicadas a amplificar vozes marginalizadas, essas vozes ainda são marginalizadas? Elas falam pelo mainstream cultural, apoiadas pela autoridade institucional. O projeto de centralizar os anteriormente excluídos foi concluído; não precisa mais ser a principal prioridade dos museus, e foi a essa altura esvaziado em um tropo. Essas vozes perderam suas próprias qualidades únicas. Em um mundo com estrangeiros em toda parte, as diferenças se achataram e todas as formas de opressão se misturaram em um luto universal. Somos bombardeados com identidades até que elas se tornem sem sentido. Quando todos são jogados juntos na grande salada da marginalização, a alteridade se torna banal e abstrata.
A grande arte deve evocar emoções ou pensamentos poderosos que não podem ser trazidos à tona de nenhuma outra forma. Se a arte meramente conjurasse a mesma experiência que poderia ser alcançada por meio do conhecimento da identidade do autor, não haveria sentido em fazê-la, ou ir vê-la, ou escrever sobre ela. Se o poder afetivo de uma obra de arte deriva da biografia do artista em vez da obra, então a autoexpressão é redundante; quando o eu é mais importante que a expressão, a verdadeira cultura se torna impossível.
No Whitney em 2024, a virada da consciência social na arte tentou reivindicar cada gesto como um tipo de resistência ou crítica. Uma das poucas obras que apreciei na Bienal foi o lúdico filme experimental de Dora Budor, Lifelike (2024), que leva o espectador a um passeio por Hudson Yards, o frequentemente difamado megaempreendimento de Manhattan a uma curta caminhada da High Line do museu. Filmado em um iPhone montado em um estabilizador com um vibrador preso a ele, o vídeo mostra o novo distrito brilhando como uma miragem, as luzes traçando trilhas circulares, a arquitetura zumbindo. Ele proporciona uma visualização agradável e reconfortante, como um ASMR visual, mas o que ele realmente tem a dizer sobre os efeitos estranhos do desenvolvimento imobiliário na cidade de Nova York? Como é que quando Budor colocou vibradores dentro de pequenas e elegantes esculturas de madeira, como fez na Bienal de Veneza de 2022, a obra “inter-relaciona a produção industrial, a privatização do prazer e a mecânica do controle biopolítico”, enquanto aqui “um dispositivo de prazer vibratório acoplado à câmera perturba… a serenidade, sugerindo uma alienação comumente vivenciada em cidades cada vez mais dominadas pela arquitetura corporativa e gentrificação”? Quantas formas de descontentamento do capitalismo tardio uma “varinha mágica” pode expressar? E Hudson Yards já não é uma metonímia para os efeitos desanimadores e indutores de suicídio da arquitetura corporativa? Não é essa a observação mais óbvia, de fato, que se poderia fazer sobre isso?
Quando pessoas de outras esferas da vida costumavam me dizer que não entendiam de arte, eu sempre respondia que não há nada para entender, não há nenhum significado oculto ali para ser decifrado. Ultimamente, no entanto, veio a parecer que há. O quarto de Budor era adjacente ao teto suspenso de vidro fumê pós-minimalista de Charisse Pearlina Weston, que, como o texto da parede que o acompanha explicava, evoca “a parada planejada pelas filiais do Brooklyn e Bronx do Congress of Racial Equality (CORE) para protestar contra a Feira Mundial de Nova York de 1964-65” e explora “táticas de recusa negra”. O quarto de Budor levava à tenda pendurada de cabeça para baixo de Cannupa Hanska Luger, que, ao “virar de cabeça para baixo nosso aterramento no tempo e no espaço, abre caminho para futuros imaginados livres de colonialismo e capitalismo, onde um conhecimento indígena mais amplo pode prosperar”. Mais adiante, vinha a filmagem pastelão lo-fi em primeira pessoa de Dionne Lee, dela mesma caminhando apressadamente por um campo com uma vara de radiestesia. A pintura de paisagens norte-americana “tipicamente adotou uma visão muito ampla, com um horizonte distante sugerindo tanto otimismo quanto força colonizadora”, dizia o texto de parede. Mas o vídeo de Lee “recusa essa convenção em favor de um ponto de vista mais pessoal, que centraliza as experiências negras de sobrevivência e da terra”. Em outro lugar estava a assemblage de Karyn Olivier de armadilhas para lagosta encontradas no Maine, potes e boias penduradas em uma corda feita de sal, que “evoca uma memória da origem oceânica da obra, mas também da prática de negociar sal por pessoas escravizadas na Grécia Antiga”.
Nem preciso dizer que era difícil extrair qualquer um desses supostos significados das próprias obras. Em vez disso, eles só podiam ser descobertos a partir das descrições na parede, que pareciam os delírios da quebra de códigos do tudo-está-conectado de uma conspiração supereducada convencida de que uma linguagem semiótica oculta de resistência se esconde sob objetos cotidianos, ângulos de câmera, orientações e gestos feitos tantas vezes antes.
Meio século atrás, nestas páginas, Tom Wolfe reclamou que, à medida que a arte moderna se tornou mais abstrata e desobjetificada, e sua interpretação mais rigorosamente prescrita pelos principais críticos da época, a aparência da obra se subordinou à teoria que pretendia explicá-la, a palavras em uma página. Nas décadas que se seguiram, críticos, artistas e curadores começaram a enquadrar obras de arte contemporâneas em relação a mais ou menos todos os subgêneros da filosofia contemporânea — desconstrução, pós-estruturalismo, realismo especulativo, aceleracionismo, patafísica, psicogeografia. Agora, à medida que o escopo da arte se estreitou drasticamente, também as estruturas teóricas usadas para interpretá-la o fizeram, e as descrições da obra são dominadas pela linguagem da teoria decolonial ou queer.
As alegações críticas deixaram de ser sobre a arte em si — como eram na época de Wolfe — e agora dizem respeito à capacidade da arte de impulsionar mudanças políticas. O mundo da arte não apenas abraçou as espiritualidades mágicas dos mais velhos, mas também retornou a uma visão antiga de que as obras de arte possuem um poder misterioso e transformador; de acordo com os textos publicados por instituições de arte ao redor do mundo, os males da sociedade podem ser curados por meio da inclusão, representações simbólicas e gestos arcanos e codificados. As reparações podem ser pagas em imagens, a culpa pode ser eliminada com significantes incompreensíveis de responsabilidade.
Mentimos uns aos outros e a nós mesmos que todo esse trabalho monótono é inspirador, que tem influência em como as opiniões são formadas e os corações são conquistados, mas, claro, não tem. Ninguém se importa, o que é em parte o motivo pelo qual as exposições parecem tão sem vida. Poucos se dão ao trabalho de protestar contra a Bienal do Whitney, de pedir a destruição de suas pinturas ou a dissolução de seu conselho; os manifestantes nem pensam em se colar a pinturas contemporâneas para protestar contra a indústria do petróleo — isso não atrairia atenção ou ira o suficiente, então eles miram nos velhos mestres e nas estrelas da modernidade. Os curadores continuam lutando em uma guerra cultural que já acabou no mundo exterior.
Quando trabalhei para Obrist, ele realizou uma série de maratonas de 24 horas de palestras na qual filósofos, designers industriais, historiadores, ecologistas, escritores, arquitetos paisagistas e cineastas vinham e falavam por 15 minutos cada. Naquela época, havia alguém aparecendo em eventos intelectuais de arte em Londres e jogando sua merda em pessoas importantes. Era meu trabalho na série de palestras garantir que Obrist permanecesse livre de excrementos. Hoje, é impossível imaginar alguém querendo fazer uma coisa dessas com um curador, imaginar alguém se importando o suficiente ou mesmo sabendo em quem mirar.


VISÕES ESTRANGEIRAS DE UM MUNDO SEM SENSO COMUM
Apesar da minha visão biliosa da arte contemporânea, ainda encontro obras que me levam para fora do mundo. Em Veneza ano passado, adorei o Pavilhão Italiano do artista instalativo Massimo Bartolini — um nas dezenas de pavilhões nacionais na Bienal que são curados independentemente da grande exposição coletiva internacional — apresentando composições originais dos músicos Caterina Barbieri, Kali Malone e Gavin Bryars. Passando pelo espaço cavernoso do galpão, bem no final do estaleiro Arsenale, ouvi um zumbido baixo vindo de um tubo de órgão de madeira feito à mão que corria a maior parte do comprimento do piso de tijolos e pedras. Então, através de uma porta, uma máquina de música automatizada semelhante a um órgão tocou um lamento ambiente plangente através de tubos de andaimes que se estendiam em uma instalação labiríntica de 50 metros de comprimento. Em seu centro havia uma piscina circular cheia de água em movimento; do lado de fora, no jardim, um arranjo para coral de Bryars e seu filho Yuri soava a partir das árvores. Foi uma experiência maravilhosa e incomum, diferente de qualquer outra que tive nas milhares de exposições que visitei na minha vida. Parecia um devaneio, ou uma cena de Paolo Sorrentino sobre o êxtase e a tristeza da vida. A arquitetura de Bartolini era irredutível a mensagens sociais ou políticas, e me peguei desejando que houvesse mais tentativas de criar espaços ou comunidades utópicas, de abrir mentes para novas possibilidades e, assim, fazer a vida parecer mais expansiva.
Também havia alguns artistas extraordinários na exposição principal: eu me senti transportado pelas ameaçadoras visões míticas de Rember Yahuarcani de criaturas da floresta tropical de seios empinados transando umas com as outras enquanto linchavam avatares de pássaros canoros da União Europeia e dos Estados Unidos do topo das árvores. Seu pai, Santiago Yahuarcani, que como ele vem do clã White Heron da Nação Uitoto, também foi incluído na mostra, e admirei suas pinturas selvagens all-over de tribos seduzidas por sereias amazônicas de muitos peitos soprando fumaça em suas bocas ou devoradas por espíritos animais quiméricos. Este trabalho, para mim, fez lembrar do extraordinário afresco do início do século 15 de Giovanni da Modena na Basílica de San Petronio em Bolonha retratando o diabo e seus demônios comendo pecadores no inferno. Fiquei comovido também pelas figuras de olhos loucos tingidas em batique que Susanne Wenger desenhou com pasta de amido de mandioca, tentando dar uma forma aos arquétipos junguianos, depois de estudar em Viena nos anos 30 e imigrar para a Nigéria nos anos 50, onde foi iniciada na religião iorubá. Eu saboreei a sensualidade neon exuberante das aquarelas recortadas em papel de Xiyadie, suas orgias gays arrebatadoras em Pequim nas quais corpos são acorrentados como anjos em uma guirlanda, e seu autorretrato perturbador representando seu pênis costurado com linha rosa pink que cresce em flores desabrochando.
O que torna esses artistas excelentes não é que eles sejam estrangeiros, mas sim que suas visões são tão estrangeiras. Eles são outsiders autodidatas que não se encaixam perfeitamente em nenhuma tradição de belas artes ou de folclore: as imagens de Santiago e Rember Yahuarcani derivam do folclore indígena, assim como o mural da ponte de jacarés de MAKHU, mas enquanto este último é renderizado em um estilo infantil e genérico, os pintores do clã White Heron combinam o domínio da técnica com grande experimentação formal, evocando seres febrilmente inventivos que crescem e recuam para as superfícies energéticas e padronizadas de suas pinturas e espaços de sonho estruturalmente confusos. Cada um nos mostra cenas inteiramente de outro mundo, em um estilo bastante desenvolvido que é inteiramente deles. Todos os quatro artistas se comprometeram com suas visões muito esquisitas e singulares, que são realizadas com uma intensidade palpável que preenche suas imagens lotadas de ponta a ponta. Eles criam cenas estranhas e sombrias de fantasia de violência, terror, luxúria e perversidade — os tipos de desejos humanos reprimidos e não ditos que aparecem na arte há milhares de anos, mas que, na maioria das vezes, não são mais bem-vindos nas galerias. Você pode dizer, olhando para suas obras, que eles estão buscando o “algo mais”.
Nos anos 1990, quando eu era aluno de uma escola cristã para meninos em Oxford, o professor de arte nos mostrou um vídeo de uma performance do acionismo vienense por Das Orgien Mysterien Theater (“Teatro de Orgias e Mistério”), de Hermann Nitsch. Pelo que me lembro, os participantes estavam nus, enrolados em lençóis brancos, encharcados por sangue de vacas que eles sacrificaram, realizando rituais em sua comuna no interior da Áustria, acompanhados de música, canto, dança e banquete. Foi assim que passei a entender a ideia da arte moderna como transgressora.
As performances do Das Orgien Mysterien Theater não tinham nada a ver com identidade pessoal ou transmissão de informações. Elas eram, ao contrário, tentativas de deixar as normas sociais e a racionalidade apolínea para trás e abraçar o caos dionisíaco na esperança de alcançar a catarse. Os artistas passaram de tentar destruir a realidade, como nos dias dos dadaístas, a tentar reafirmá-la e restaurar a ordem hoje. Mas é tarde demais. A realidade consensual se foi. Somos abençoados por viver agora, no Ocidente, em um mundo estranho sem senso comum. À medida que os fatos se tornam mais estranhos que a ficção, devemos abraçar o surreal e nos esforçar para imaginar ficções mais bizarras. Podemos começar aceitando que estamos sendo enganados o tempo todo, que a maior parte do que ouvimos e vemos é uma ilusão, deturpação ou performance — e isso é bom. A vida se tornou, de muitas maneiras, uma ficção, a realidade está desaparecendo sob suas próprias representações, estamos sofrendo de delírios coletivos, estamos oscilando no precipício do real, com um multiverso de fantasias girando abaixo de nós — e tudo bem, isso é bom. A realidade se foi, e o povo das artes continua tentando recuperá-la, continua alegando: “Oh, podemos encontrá-la novamente, podemos nos agarrar a ela, se apenas continuarmos exibindo cerâmicas, se apenas continuarmos fazendo pinturas” — mas não podemos!
A irrealidade do momento presente deveria ser uma bênção para os artistas e todos que lidam com a imaginação. Eu não me importo particularmente em ter minha consciência elevada; prefiro ver arte que rasga minha consciência, que abre portais para o misterioso. Eu gosto mais de arte quando ela não significa nada, ou quando sua beleza ou estranheza transcende seu assunto. Pare de fazer tanto sentido. A arte deve fazer mais do que comunicar: ela deve nos mover; deve nos fazer chorar; deve nos colocar de joelhos. Ela é, junto com a música, a expressão mais pura do espírito humano. É uma parte importante do que nos torna humanos — a parte mais importante — e constitui um continuum de anseio transmitido ao longo dos séculos que pode ser sentido em todo grande museu ou capela renascentista.
A arte é frequentemente melhor quando é absolutamente perturbada. Somos seres irracionais e incoerentes, e artistas e escritores deveriam abraçar isso mais uma vez. Se você acredita que obras de arte lançam feitiços, você deveria usar essa magia para causas maiores do que propagar uma sensibilidade estadunidense educada e liberal ou fugir dos efeitos da tecnologia moderna. Você é livre para sonhar qualquer coisa. Construir mundos diferentes, sussurrar tentações em muitos ouvidos, tentar destruir a realidade; essas são perspectivas com as quais os artistas sonham há séculos. Ainda há muito o que imaginar.




Dean Kissick é escritor e editor colaborador da Spike Art Magazine.
(Tradução Juliana Monachesi)