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Postado em 10/04/2025 - 2:02
O que alimenta o corpo da cidade?
O Circuito de Arte em Boteco chega à terceira edição nas ruas da capital baiana; direto de Salvador, nosso crítico e curador reflete sobre exposição paralela que rolou no CAB_02

E é sempre um recomeço. 

Um ano após sua primeira edição, o CAB – Circuito de Arte em Boteco realiza neste sábado, 12/4, a sua terceira edição. Na ocasião da sua segunda ação, em setembro passado, foi realizada uma exposição no Espaço Xisto Bahia com a os artistas participantes. A seguir, refletimos sobre as produções artísticas e a migração da rua, espaço aberto, dinâmico, para um espaço expositivo no Centro da cidade de Salvador, Bahia. 

A rua também tem alguma coisa de rio: afluentes, correnteza, nutrição. Submundos dentro da urbanidade que constitui (e se dilui em) uma cidade. Esses submundos são, por vezes, recordados, discutidos, retroalimentados por meio da arte. Alguém um dia escreveu, talvez Jorge Amado, que toda arte vem da rua. Boa artista é aquela que sabe retorná-la à rua. Fundado por Milena Ferreira e Busca, duas pessoas artistas, o Circuito de Arte em Boteco sabe retornar à rua o que vem para artistas e os/as/es leva a obter retornos que só a rua/trânsito pode dar. Tudo isso, fortalecendo mundos para que deixem de ser vistos como submundos em termos de desvalorização do trabalho, elitismo crítico etc. 

O CAB faz ressurgir o diálogo direto entre a arte e os corpos que alimentam a cidade. Na exposição Quem Alimenta o Corpo da Cidade (2024), contamos com diversos artistas participantes da segunda edição do Circuito de Arte em Boteco, ocorrida no dia 14 de setembro de 2024, no boêmio e popular bairro do Dois de Julho, centro de Salvador. 

Alex Oliveira é um artista nascido em Jequié (BA) cuja prática e pesquisa está entrelaçada ao ambiente urbano, pensando o tensionamento das barreiras entre arte e sociedade, ou arte e pessoas trabalhadoras. Oliveira também é responsável pela criação de um novo espaço de arte, cultura e educação/pesquisação na sua cidade: a Casa 1145. Allan da Silva, nascido em Jaguaripe (BA), tem trabalhos em fotografia, videoperformance e, sobretudo, escultura – técnica que melhor tem ecoado sua pesquisa sobre outras dimensões de tempo e suas diversas manifestações. Alma é um um artista de Salvador, especificamente de Cajazeiras, que define seu trabalho como “fruto de atravessamentos da diáspora africana e da cultura de rua, produzindo no meio digital por meio de colagens, intervenções fotográficas e pintura”.

Ana Gábri, artista de Pernambuco, desenvolve sua pesquisa pensando a palavra e, a partir dela, ações, suportes e diálogos possíveis. Formas de tornar externo o que outrora habitou o dentro… Ana Sant’Anna nos leva a pensar numa outra história da vida na/da Terra: a vida do mar. Talvez possamos pensar até em Arthur Rimbaud em “uma temporada no inferno”, que assim a decifra: “foi enfim achada! Quê? A eternidade. É o mar. Ao Sol”. 

Daniel Soto, designer, artista visual, professor e pesquisador, desemboca sua pesquisa sobre arte urbana, memória, memória gráfica e história da Bahia em obras que versam sobre a importância do Dois de Julho, data de incomensurável importância para a Bahia e para o Brasil. A mesma data dá nome ao bairro onde nasce e vive o CAB. Faraó, artista e designer autodidata de Salvador, tem como uma das suas bases artísticas a técnica do estêncil, a tipografia e o grafite. Ferramentas de comunicação direta com o mundo. 

A artista fotógrafa poeta e professora Gabriella Correia pensa a memória nas suas diversas manifestações e diferentes suportes. Segundo a artista, sua produção é baseada no desenvolvimento de “projetos nos quais investiga a relação entre autorretrato, subjetividade e identidade por meio das técnicas de impressão fotográfica da antotipia e fototipia”. Sua pesquisa também se desdobra em ficções, preservações e passagens. Hanna Gomes, parte do design de moda para chegar à ilustração digital e, utilizando essa ferramenta, pensa também as ficções. Estas, contudo, são definidas pela artista como “frutos do leve e revolucionário ato de sonhar”. 

Também norteada por noções oníricas, emocionadas e sonhadoras, a artista soteropolitana Iyá Boaventura desenvolve obras que nos apresentam diversos encontros e nos levam a imaginar os nossos afetos dentro das telas. Jess Vieira, artista de Gama, Distrito Federal, pensa a junção de diferentes mundos internos. No âmago da prática da artista, existem confluências entre a carne do corpo, seus fluxos e fluidos, e a natureza rica em sentidos guiados por percepções. Há a natureza externa, ambiental, farta em formas que se desdobram dentro do nosso corpo físico, psíquico e social. Também pensando as relações entre externo e interno, Julia Kan afirma “coleciono espaços através de imagens e penso imagens através de objetos, essa dualidade entre o tridimensional e o bidimensional é fonte para um corpo de trabalho expandido”. Filha de mãe argentina e pai chinês e estadunidense, ambos imigrantes, Julia foi criada em Salvador. 

A artista e arquiteta Khadija Ann Tarver, estadunidense, hoje vive e trabalha na capital baiana pesquisando cenografia do teatro negro baiano. Suas suas obras-ações versam sobre trânsitos e (re)construções de/em espaços, edifícios, monumentos e, junto a eles, remoção de noções coloniais. “Para mim, o teatro é uma inclinação para o futuro, é um espaço de imaginação e ensaio para o(s) mundo(s) que a gente quer construir”, afirma. Lucas Cardoso, artista de Maceió, também vai pensar obras que reverberam aquilo que define como “exercícios e reflexões acerca dos atravessamentos que envolvem a natureza presente nas paisagens das histórias de família, das cidades, das arquiteturas, da espiritualidade e das próprias vivências do meu corpo LGBTQIAPN+”. 

Ludimila Lima, artista de Cruz das Almas (BA), constrói suas obras através da pintura em aquarela, acrílica e da fotografia. Com sua destreza técnica, a artista manifesta capacidades, belezas, inteligências e memórias esguias, aquosas, que se guiam à permanência de forma tão insistente e sábia quanto delicada, fugidia. Márcio Junqueira é professor, poeta e artista visual nascido em Feira de Santana (BA) e constrói uma pesquisa muito sólida e relevante sobre masculinidades negras, suas homoafetividades e homoerotismos. Pensando também a relação entre ficções e inscrições das realidades, o artista vê o corpo, documentos e matérias como veículos de comunicação afetiva e poética. 

De Jacobina (BA), Milena Oliveira é artista bordadeira fotógrafa e escultora. Também sobre intimidades e minuciosidades versam suas obras que têm alto teor de intimidade, independente do tema no qual se debrucem e nos levem a desaguar. O tempo, a construção e a relação que a artista estabelece na feitura de cada obra já dizem mais do que as imagens e palavras presentes poderiam revelar. O artista Rayana França, também de Feira de Santana, constrói obras que ecoam e em si mesmas propõem encontros entre corpos e natureza. Os elementos minerais e corpóreos apresentados pelo artista criam uma atmosfera quase surrealista de tão orgânica, fluida e natural. Outro artista que também se debruça sobre algum grau de expansão é Wesley da Silva. Nascido em Rio Negrinho, Santa Catarina, o artista tem sua pesquisação/prática artística concentrada na infância e na brincadeira como fontes fundadoras. A criança é evocada não como corpo alheio ao ambiente artístico, mas como ambiente no qual estamos o tempo todo, mesmo que fugindo, presentes. 

O ESPAÇO EXPOSITIVO NÃO RECEBEU UMA EXPOSIÇÃO, MAS SIM PARTE DE UMA AÇÃO QUE SÓ EXISTE NA RUA. A AÇÃO EXPOSITIVA DO CAB FOI UMA RARA DEMONSTRAÇÃO DA VERDADEIRA DERRUBADA DO CUBO BRANCO
Chamada no Instagram do Circuito de Arte em Boteco para a terceira edição, que rola neste sábado, 12/4, no bairro Dois de Julho, em Salvador [Foto: Reprodução IG/ @cabsalvadorr]
Vista da exposição no Espaço Xisto Bahia que ocorreu paralelamente ao CAB_02 [Foto: Reprodução IG / @cabsalvadorr]

Trazer um pequeno conjunto de artistas do CAB para o espaço expositivo deve ter sido, sem dúvida, uma tarefa muito árdua. Primeiramente porque curadoria séria é curadoria difícil, baseada em critérios que vão além do gosto ou desgosto pessoal da pessoa curadora em relação às pessoas artistas e/ou seus trabalhos. Os rigores são outros: pesquisa e, a partir dela, a proposta curatorial. Sem falar na dimensão da arquitetura… 

Segundamente porque Salvador ainda (talvez para sempre) carece de ser contemplada em toda sua genialidade expansiva que se retroalimenta e produz/reproduz o que chamamos de corpo da cidade. Terceiramente porque o espaço expositivo não recebeu uma exposição, mas sim parte de uma ação que só existe na rua. A ação expositiva do CAB foi sobretudo uma rara demonstração da verdadeira derrubada do cubo branco. Mais: demonstra a dispensa do museu e das galerias como único espaço de memória, cultura, arte e comunicação no que se refere às artes plásticas. 

Necessariamente, é preciso estar na rua para sentir, entender e viver o CAB. Ali o que vimos foi a lembrança da memória coletiva de uma ação também coletiva e absolutamente democrática. A ação expositiva foi um afluente que vem de outro afluente (CAB) que deságua nesse grande rio (cultura) que alimenta o corpo de Salvador (cidade).