Era um papel de formato retangular, comum, preenchido com as faíscas do carvão, no clássico jogo do claro e escuro.
Eu olhava um desenho cumprindo seu dever de ser honestamente o que se mostrava na primeira leitura. Mantinha a cor cinza sobre o antigo e pálido terreno, abrindo uma janela para sua moradora que, embora idosa, eu nunca tinha visto por essas bandas; até que encontrei Arissana e fomos apresentados.
Disse-me que seu nome é Dona Josefa, chegou no papel há pouco e veio de longe. De cara lembrei-me de Dona Betinha, uma senhora que era minha vizinha nos tempos de infância.
Mais baixo que o muro de nossa casa era eu quando menino, de modo que a via apenas nos encontros que se davam de manhã cedo, quando eu saía para a escolinha e ela saía para varrer a calçada com a piaçava. E ia. Iniciava o percurso na porta de sua casa de muro verde e parava só no batente da casa alta, atravessando a frente da casa de vô (onde a gente morava) e mais outras três casas de gente que nem me lembro. Esperava-me sentadinha no batente da casa alta, com as pernas balançando, pés ralando o meio-fio; e, quando eu saltava o degrauzão, escorando-me entre ela e a fachada, entregava-me a pequena garrafa térmica, cheia até a metade de café, toda enroladinha num pano de prato. Não fala nada pro seu pai, dizia.

Não entendia muito bem por que Dona Betinha fazia aquilo e nem tinha idade para entender; cuidar do que não era seu, as calçadas não sendo suas e eu não sendo seu parente. Até que um dia na aula, depois de merendar o café com broa e banana, Tia Zita ensinaria para a gente a nova lição: ‘I’, de índio.
E todo mundo repetiu em voz alta. ‘I’, de índio. E mais uma vez. De novo. E de novo. E seguiu, dizendo que o nome de nossa cidade vinha dos índios e que em todo lugar tinha índio. Tataravós, oca, milho, abril.
Numa Aracaju do início dos anos 1990, com o abominável crescendo o preço de tudo que era coisa, a gente se aldeou e era Dona Betinha a mais velha do lugar.
Em uma noite, quando mamãe reclamou a papai que não tínhamos mais açúcar, gritou ao velho para ir pedir à vizinha. Meu acabrunhado pai, com o seu ‘H’ de homem e honra, não gostou. “Não é pra você, é para os meninos.” Papai foi ao quintal, estendeu o braço sobre o muro, e num passe de mágica a xícara voltou branquinha. Depois que eles se separaram, saímos dali e tudo ficou longe; e nunca mais vi Dona Betinha. Mas lembro que na altura de ainda eu novinho, chegou lá por casa a notícia atrasada que ela tinha se encantado.
Até eu encontrar Dona Josefa foi um andar de mundo. Mesmo letrado e com o bucho cheio, era preciso me aldear de novo; e foi aí que encontrei Arissana sem ela nunca ter ouvido falar de mim. (Esse negócio de riscar papel – quando deixam a gente riscar – junta gente diferente para falar sobre gente muito parecida).
Nitidamente somos de naturezas distintas, nossos lugares de fala são díspares e provavelmente dividimos pouquíssimas coisas em comum, para além do campo de atuação profissional, mas quando a ouvi falar que era por aquele terreno que dava pé, pedi licença para um abraço e partilhei o café como se fossemos crianças em alguma Aracaju ou Porto Seguro perdidas no tempo. Foi exatamente por ali que deu pra ir driblando os regimes maiores e externos que insistem em delimitar tanto o tamanho do lugar em que a gente vai crescendo quanto o alcance de nossa fala para além da própria aldeia, tentando redimensionar a vontade intrínseca e persistente que o artista tem de dizer algo sobre ela. É riscando papel que ainda conseguimos ser ouvidos, numa brecha que a arte e seu sistema de vez em quando permitem, desvirtuando a regra geral de um país marcado pela desigualdade que gera mais silêncio do que desenhos. Mesmo com o lápis e o papel na mão, imaginando serem estes os instrumentos, vamos percebendo que para falar o idioma da área é preciso conhecer sua gramática, pois assim condicionaram; e descobrimos que existem outras camadas de diferenciações: falando de um jeito é bom, falando de outro jeito não, falando de um lugar é bom, falando de outro lugar não é bom. Dentro, estamos supostamente conversando entre pares, embora longe de dividirmos as mesmas condições de trabalho. A diversidade também revela as desigualdades, sotaques, cantos, gritos – e permissões.
Dos mais distantes, percebemos que a arte pode ser aplicada como um lugar destinado ao acolhimento de sentimentos pessoais. Não é incomum assistir a algum artista imerso em tentativas de impactar o leitor por vias da tradução de algum ponto oriundo de seu emocional, sem rebater noutras questões. Isso soa imensamente legítimo (pois não há apenas uma única maneira de produzir arte), mas a distância entre ler um trabalho desse perfil e um trabalho no qual o artista se torna canal para outras histórias é imensa. Ouvir Arissana falar de Dona Josefa atravessa a história da própria artista, da retratada, dos seus próximos, de mil outras histórias que fizeram de si ponte. O ‘eu’ em Arissana é um pronome radioso, em escala muito maior do que o cacoete discursivo de alguns que investem na arte podendo ser abraçados e ter seus tamanhos ampliados em outras áreas que lhe servissem mais instrumentos, a superar alguma questão estritamente particular. Mas sei que a arte é gentil a ponto de acolher também esse tipo de fazer, quase como uma terapia. E tudo bem se assim é; desde que sempre tenhamos arissanas.
Confesso que antes de ver Dona Josefa, mal lembrava de Dona Betinha. Devo tê-la perdido nessas confusões da vida adulta; e peço até perdão ao seu e ao meu espírito pela falta. Diante disto, penso que se Arissana conseguiu desencantar minha antiga vizinha sem nunca a ter conhecido, usando um papel, um carvão e a figura de sua senhora amiga, não sei sobre o que ela não conseguiria dizer nesse mundo, dentro ou fora de sua casaldeia: quando a procuramos para saber mais sobre o seu lugar, acabamos ganhando mais notícias dos nossos lugares. Talvez, como fizeram dizer Dona Josefa e Dona Betinha, o mundo seja mesmo um só.
Alan Adi é artista visual. Vive e trabalha no Rio de Janeiro e em Sergipe. Sua pesquisa discute temas que ficaram condicionados ao Nordeste, evidenciando a produção artística da região e construindo obras que discutem questões relacionadas à formação da sociedade brasileira. Expôs recentemente na coletiva Sobre os Ombros de Gigantes, curadoria de Raphael Fonseca, na Galeria Nara Roesler