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Vista interior da escultura CapiDançaBaribéNois, de Ernesto Neto, inaugurando a sala artística Estádio na Oficina Francisco Brennand [Foto: Eduardo Ortega]
Postado em 18/12/2023 - 6:06
O rio como sujeito social e artístico
CapiDançaBaribéNois, escultura-rito de Ernesto Neto para a Oficina Francisco Brennand, irriga os novos caminhos da instituição pernambucana

Das experiências que produziram muitos sentidos neste ano de 2023, devo destacar a viagem que fiz ao Recife, em novembro, para acompanhar CapiDançaBaribéNois. O rito-instalação, concebido por Ernesto Neto para a Oficina Francisco Brennand, promoveu um espelhamento afetivo do desenho fluvial do rio Capibaribe e teve efeitos de irrigação e agregação sobre a geografia humana e artística da cidade.

Instalada no galpão Estádio, da Oficina Brennand, até meados de 2024, CapiDançaBaribéNois é uma escultura de 47 metros de comprimento, confeccionada em crochê e preenchida de folhas secas, em representação de uma jiboia. Mas é mais que isto. É um objeto permeável, poroso, que passou por uma centena de mãos até chegar ao seu destino final; foi tecida, dançada e carregada coletivamente em cortejo de três dias a partir da foz do Capibaribe. “O processo construtivo é um exercício de alimentação da escultura”, diz Ernesto Neto à seLecT_ceLesTe. “O processo é cheio de poesia, mas vocês sempre recebem a obra de arte pronta. Então, eu comecei a querer trazer esse lugar a público. O rio plantou essa ideia em mim.”

Cenas do cortejo de saída de CapiDançaBaribéNois na Praça do Marco Zero [Foto: Eduardo Ortega]

ENCONTRO COM O RIO
Que as cidades brasileiras nasceram nos rios e lhes deram as costas é sabido. Mas em Recife a história é um pouco diferente, porque a cidade, que surgiu como porto de Olinda, nos arrecifes da bacia de três grandes rios – o Capibaribe, o Beberibe e o Tejipió –, tem uma qualidade essencialmente fluvial, que está começando a ser resgatada em projetos públicos. Do tupi, Rio das Capivaras, o Capibaribe é onipresente no estado pernambucano. Nasce no agreste, em Poção, e ao longo de 248 km banha 42 municípios do estado e nove bairros do Recife, até virar mar.

CapiDançaBaribéNois convocou os participantes a molhar os pés nesse rio. Na praça redonda do Marco Zero, o cortejo ritualizou a orixá das águas doces. O Ponto de Oxum foi tocado, dançado e cantado pelos integrantes do Maracatu Real da Várzea, do Coco de Duas e do grupo Rivus, seguido por amigos, artistas, jornalistas e curiosos que, vestindo batas de tiras de chita colorida, tecidas em crochê de dedo, formaram um corpo-jiboia, rodando sob o sol forte de quase dezembro. “A dimensão da coletividade é presente desde sempre na obra de Neto. Ele faz parte de uma geração de artistas que entendeu que a instalação do trabalho é uma ação”, diz Clarissa Diniz, curadora da exposição, à seLecT_ceLesTe. “Em um primeiro momento, é a festa que tem a dimensão de rito, mas a experiência da floresta traz pra ele uma outra dimensão ritualística, menos anárquica, mais litúrgica, que tem um desenho”.

Cenas do cortejo de saída de CapiDançaBaribéNois na Praça do Marco Zero, com o Maracatu Real da Várzea, Coco de Duas e grupo Rivus [Foto: Eduardo Ortega]

O desenho da escultura é revelado pelos participantes da roda que, depois de desenrolar o crochê, colocaram a jiboia na embarcação. Nas duas horas de navegação até o bairro da Várzea, onde está situada a Oficina Francisco Brennand, a escultura testemunha nas margens o retrato da desigualdade social do país. “O rio Capibaribe é um sujeito social, marcado por populações ribeirinhas”, continua Diniz. “É onde as pessoas encontram seu sustento, sua comida. Mas a poluição dele é fruto de um racismo também ambiental, no modo como essa poluição é organizada racialmente na cidade, com direito ou não ao esgoto, à moradia.”

Navega-se da pobreza extrema dos casarios de palafitas aos metros quadrados mais caros da cidade. “Os prédios aqui têm nomes que edificam a história açucareira, como Maison Casagrande”, diz o jornalista pernambucano Bruno Albertim, meu companheiro de viagem, ao passarmos por um bairro urbano que antes era engenho.

O cortejo é interrompido antes de chegarmos à área rural da cidade, na propriedade que um dia foi o engenho da família Brennand, na Mata da Várzea do Capibaribe, e que hoje é um jardim metafísico. Os convidados são convidados a desembarcar no Cais do Parque do Caiara para seguir de carro, enquanto o artista e a escultura continuam por rio, atravessando uma das áreas mais precarizadas e conflituosas da cidade. A Ilha do Bananal, bairro de Iputinga, vulgo comunidade do Detran, está conflagrada por gangues do tráfico. “Quando a gente começou a transitar pelo rio, ele trouxe um monte de circunstâncias. A circunstância da sujeira, a circunstância social”, diz Neto.

Desigualdade social nas margens do Capibaribe [Foto: Paula Alzugaray]

ALIMENTAÇÃO, AGREGAÇÃO E ACOLHIDAS
CapiDançaBaribéNois é uma ação generosa. Tanto no processo de construção coletiva, de assimilar e apresentar outros artistas, quanto em seu deslocamento. Em movimento similar à ação geológica da água do rio, que sedimentou a terra da cidade de Recife, a escultura-rito vem agregando muitas outras vozes do sertão e do agreste pernambucanos e da periferia recifense. Por exemplo, em vez de repisar o canônico “Cão Sem Plumas”, histórico poema de João Cabral de Melo Neto para o Capibaribe, o projeto traz à luz o cordel de Sula Patricio, poeta e agente de saúde da cidade de Vertentes, próxima à nascente do rio, que escreveu na parede os versos de seu cordel S.O.S Rio Capibaribe.

Com um violão na mão, cantora e compositora agda, na abertura e terceiro dia do rito [Foto: Eduardo Ortega]
Para o terceiro dia de ritos, veio cantar na inauguração a compositora agda, de Santa Cruz do Capibaribe, fazendo uma música de relatos, repentes, narrativas, correspondências e testemunhos. Nas profusões de imagens cantadas em seu primeiro álbum, lançado no início de 2023, não esqueço da cena que agda viu da janela do caminhão do seu amigo Lolo, em uma das viagens que fazia com ele até Arcoverde, “olhando a estrada, conversando a vida, o tempo, percebendo os movimentos que a natureza faz na serra”, como ela canta. Na rapidez da estrada, uma mulher, com uma foice na mão e, no brilho da foice, lhe “prendeu a vista”.

Colaboradora em processo de “alimentação” da escultura, preenchendo-a com folhas secas [Foto: Eduardo Ortega]
Paredes do galpão Estádio tomadas pelo mural dos artistas do coletivo Iputinga Sociocultural [Foto: Eduardo Ortega]

A canção “Paricida”, feita a partir dessa imagem – que depois se desdobra em fruta, jerimum, menino, mato, chão, terra, poeira, cor vermelha, cinza e verde –, me fez ver que CapiDançaBaribéNois também revela muitas Recifes. Ilumina, involuntariamente, outros acontecimentos da cidade, pelos locais onde passa. Como a exposição individual de Jeff Alan, que até 28/1 está em cartaz na Caixa Cultural, um dos edifícios históricos da praça Marco Zero, e que tive conhecimento porque participei na roda de maracatu no primeiro dia. As 57 pinturas da exposição Comigo Ninguém Pode mostram as feições e as texturas de personagens reais da periferia da cidade, “uma urbanidade recifense precariamente construída sob o amargo da cana de açúcar”, segundo o curador Bruno Albertim.

Se a escultura de Neto é, como ressalta Clarissa Diniz, uma estrutura que, como a água, não tem forma fixa – “uma forma em formação, eternamente, uma presença da água enquanto pensamento, um princípio da liquefação e da mudança” – faz todo sentido que este texto extravase suas bordas, se espraie e registre aqui esses outros caminhos aos quais, involuntariamente, ela me levou. Irrigações indiretas.

Vista da exposição Comigo Ninguém Pode, individual de Jeff Alan, em cartaz até 28/1 na Caixa Cultural [Foto: Paula Alzugaray]

Paula Alzugaray viajou a convite da Oficina Francisco Brennand

Serviço
CapiDançaBaribéNóis, de Ernesto Neto
Até julho de 2024, Estádio, Oficina Francisco Brennand,
Propriedade Santos Cosme e Damião, Rua Diogo de Vasconcelos, s/n, Várzea, Recife, Pernambuco
ceramicabrennand.com