Se o imprescindível Zózimo Bulbul (1937-2013) é um marco de pioneirismo e vanguarda no cinema nacional com Alma no Olho na década de 1970, é certo que, a partir dos anos 2010, surge uma geração brilhante e inquieta que herda o ímpeto de contar histórias sobre outro país existente dentro do Brasil, que o mainstream não foi capaz de mostrar com exatidão e detalhe. Day Rodrigues, ladeada por contemporâneos como Juliana Vicente, Viviane Ferreira, Gabriel Martins e André Novais, entre outros, é uma dessas contadoras que leva para as telas narrativas que precisam de amplidão no inconsciente coletivo e são protagonizadas, sobretudo, por mulheres negras de diferentes origens, costumes e prismas. Autora de O Corpo da Terra, filme que integrou a exposição Terra que nos representou na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, em 2023, e que ganhou o inédito Leão de Ouro, a diretora, roteirista, pesquisadora e professora aborda, nesta conversa com a celeste, a inventividade cinematográfica de seus pares; a poética de suas não ficções; a religião nas tramas de sua filmografia; e a obra em processo de realização Entre Nós, Vive o Rio, comissionado pelo projeto Águas Abertas. Conforme Ekedy Sinha, uma das sacerdotisas mais importantes do candomblé, pertencente ao Terreiro da Casa Branca de Salvador, é necessário “falar sempre da nossa religiosidade, do nosso povo, da nossa cultura, como a gente se reconhece”. Principalmente porque tudo está diretamente relacionado com o meio ambiente.
Uma característica latente em sua filmografia é contar histórias a partir das visões e vozes de mulheres negras brasileiras, direcionadas também pelo seu próprio lugar de fala. Mulheres Negras – Projetos de Mundo (2016), premiado nas categorias Júri Popular e Direção no 21º Cine PE – Festival Audiovisual, é um exemplo disso. Que novo cinema é possível modelar, considerando o elitismo que marca a tradição cinematográfica nacional, quando você assume esse lugar narrativo?
Day Rodrigues: As últimas duas décadas foram importantes para as narrativas dissidentes, no Brasil, não só por uma reivindicação dos grupos sub-representados, historicamente, nas mídias hegemônicas, assim como nas obras cinematográficas que circulam em mostras, festivais e outros circuitos. E foi dessa maneira que pude encontrar um eixo de direção e produção para o filme Mulheres Negras – Projetos de Mundo, que trouxe à tona um sonho antigo de viajar com uma obra artística e, principalmente, de dialogar política e esteticamente via protagonismo de mulheres negras. Dessa forma, nos anos 2010, a minha geração despontou com arranjos independentes que se tornaram referência, na contramão dos estereótipos negativos e subalternizados do cinema nacional.
Você fez um movimento de retornar à sala de aula, lecionando na Escola da Cidade, em São Paulo, como professora colaboradora da pós-graduação. Enquanto partícipe de uma geração que tem arregaçado as mangas para produzir um novo cinema no Brasil, preocupado em refletir na tela a diversidade de nossa identidade negra e indígena e suas questões, qual a importância de essa prática estar ligada a pedagogias radicais?
DR: As produções cinematográficas são pensadas em escalas hierárquicas e reprodutoras das violências de raça, gênero, classe e sexualidade, se pensarmos nas escolas de cinema formatadas em projetos pedagógicos desconexos à representação propositiva da maioria da população brasileira. Por isso, depois de algumas premiações internacionais importantes, apesar de um status de destaque para o meu trabalho como diretora, notei que havia uma falta de legitimidade pelos produtores, executivos e diretores-gerais dos projetos, nos bastidores. Numa reflexão profunda, sobre a minha continuidade como cineasta, entendi que rever o formato de aprendizado dos espaços acadêmicos, por uma educação antirracista, seria uma maneira de compartilhar as minhas experiências e métodos de criação e, assim, tornei-me docente.

A temática religiosa pela via do candomblé está presente em meus filmes desde 2016, quando dirigi Mulheres Negras – Projetos de Mundo. Esta foi a minha primeira direção cinematográfica, quando pude atrelar a pesquisa sobre a representação de mulheres negras com uma busca longa sobre os meus antepassados e ancestrais. Relacionado aos temas mencionados, também me conectei ao candomblé, mais precisamente à Mãe Eleonora e seu terreiro e território, no interior de São Paulo. Ao passo que sou iniciada, torno-me uma mulher de fé, agradecida pelas experiências junto à religiosidade de matriz africana e à defesa das forças humanas e não humanas. Por outro lado, soma-se aos debates antirracistas o meu compromisso com a continuidade e o legado do Axé.
Esteticamente, O Corpo da Terra apresenta-se como um filme documental, entretanto, sua poética narrativa aponta que há outras formas de criar nesse gênero, utilizando elementos simbólicos e , inclusive, ficcionais, para contar histórias não ficcionais. Esse é um caminho pertinente daqui para a frente na sua linguagem?
DR: Depois da realização de uma série de obras audiovisuais para as plataformas de streaming, que usava recursos de entrevistas e materiais de arquivo, decidi por novos métodos e, atualmente, me vejo disponível para estudar a ficção junto ao real do documentário, como linguagem disruptiva ao status quo. Portanto, investigo maneiras de contemporanizar junto ao cinema negro fabulações, cenas e imaginários habitados por tensionamentos e revelações das subjetividades em reconstrução.
Uma Geografia das Desigualdades é um filme com brilhante contribuição da arquiteta Joice Berth, que abre os olhos das pessoas para os territórios onde elas circulam todos os dias. Visto que algumas problemáticas colocadas nessa obra se relacionam com a forma como São Paulo lida com o Rio Pinheiros e seu entorno, o que pretende abordar em O Rio Vive Entre Nós, produção comissionada que mostrará em Águas Abertas?
DR: O Rio Vive Entre Nós é uma oferenda cinematográfica para as águas que, no candomblé de nação ketu, representam uma entidade/orixá. Sem água não há vida, porque não há fertilidade nem transformação pelo bem-estar de um território. Na primeira visita técnica que fiz ao Rio Pinheiros, senti tristeza e indignação, porque sabia que ali não ocupávamos, com dignidade, tamanha a violência e arrogância do projeto urbano de São Paulo pela morte assistida do rio pelos humanos. Atualmente, meu principal foco de pesquisa cinematográfica trata a ancestralidade negra e indígena como ponto central do legado de resistência das vidas subalternizadas, pelo trauma escravocrata e migrações nordestinas dos anos 1970 e 80. Portanto, para esta obra, pretendo abordar como o Rio Pinheiros é nosso antepassado e devemos nos desculpar. Faremos uma oferenda ao rio, com esse filme.

DR: A água é o símbolo da coragem para a continuidade sem limites, como referência de não sujeição, imersa no poder da vida que não se submete à estagnação ou limites dos projetos de morte das cidades, que não respeitam tal força de renovação para todos, humanos e não humanos. Por isso, eu sou candomblecista, como forma de pedir Agô e aprender com as mais velhas como produzir em linguagem artística a resistência com vida próspera.
Entrevista publicada originalmente na celeste #5 – Desvio em março de 2025