Admito: com toda a minha arrogância paulistana, exposições ou eventos culturais fora do eixo Rio-São Paulo me despertam – na falta de uma palavra melhor – certa insegurança. “Será que terá público?”, penso, entre outras dúvidas, sobre o porquê de não as realizar em locais de mais acesso e visibilidade. Mas não é novidade para ninguém que o mundinho das artes e, principalmente, seus agentes são exclusivistas, para não falar coisa pior. Entre paredes de cubos brancos, catálogos suntuosos e obras de arte “contemporâneas”, acreditamos estar à frente de tudo e de todos.
Mas, na primeira semana de fevereiro, felizmente, mordi minha língua. Acompanhei de perto as aberturas do projeto Arte nas Estações, idealizado pelo colecionador e gestor cultural carioca Fabio Szwarcwald, com curadoria de Ulisses Carrilho, além de produção e comunicação por uma equipe maravilhosa. As mostras levam obras da coleção do Museu Internacional de Arte Naïf, idealizada pelo francês Lucien Finkelstein, para cidades de fora do eixo Rio–São Paulo e distantes de capitais, com o objetivo de alcançar novos públicos e disseminar a produção de artistas populares.
O envolvimento de Szwarcwald e Carrilho com o museu, que abriga um dos maiores acervos de arte popular do mundo, começa em 2019, a partir da exposição-manifesto Arte Naïf – Nenhum Museu a Menos, realizada na Escola de Artes Visuais do (então presidido por Szwarcwald) Parque Lage, no Rio de Janeiro, que buscava difundir a importância desse conjunto de obras para o Brasil.
Mesmo após o fechamento da instituição, em 2016, por falta de recursos captados via leis de incentivo fiscal, e com a coleção ameaçada de deixar o território nacional, a vontade de expandir o que começaram na EAV continuou ecoando na cabeça do empresário e do curador, de forma que, em 2023, se juntam para a realização do Arte nas Estações.
Com maestria, o projeto corre a todo vapor pelas margens do sistema da arte, ocupando, simultaneamente, três cidades históricas mineiras em locais como estações de trem e escolas, contribuindo, aos poucos, para o crescente movimento de virada institucional e patrimonial nas artes.
QUEM EU QUERO NÃO ME QUER
Entre um pão de queijo e um gole de café, Fabio Szwarcwald lança, durante a entrevista que concedeu a seLecT_ceLesTe, a seguinte pergunta: “Por que não itinerar esta coleção e levá-la para lugares a que ninguém está indo?” O projeto intenciona celebrar a diversidade brasileira a partir de suas manifestações artísticas, levando cultura, história e entretenimento para diferentes locais do país, sobretudo criando novos públicos pela interação com a população local por meio de uma abordagem educacional e acessível.
“Mas essa não é a intenção de quase todos os curadores atuantes hoje no sistema da arte?”, penso. Para que as mostras se destaquem, elas devem conter algum diferencial, um “tempero a mais”. Dito e feito. A exposição Sofrência, no Paço da Misericórdia, na histórica Ouro Preto, debruça-se sobre o amor, o prazer, o gozo e o sentimento, por um viés narrativo peculiar, a meus olhos: a música sertaneja. A curadoria de Carrilho toma a eterna Marília Mendonça (1995-2021), também conhecida como a Rainha da Sofrência, como dispositivo poético, estabelecendo diálogo com obras de artistas como Mabel, Odoteres Ricardo de Ozias e Gerson, ao espalhar, ao longo da mostra, banners com trechos de suas músicas e de outras cantoras do “feminejo” – gênero que enfatiza as mulheres em composições que tematizam, sem pudor, o ponto de vista feminino sobre amor, sexo, traição etc.
Em uma via de mão dupla, Sofrência propõe a revisão histórica do termo arte Naïf – proveniente do francês, que significa ingênuo, sem malícia ou pecado –, deslocando artistas autodidatas do lugar de inferioridade imposto pela academia para posicioná-los como criadores, como qualquer artista contemporâneo. Em paralelo, define o sertanejo universitário como narrativa, desafiando o preconceito classicista em torno do gênero musical, unindo, ao mesmo tempo, dois públicos que, teoricamente, não se encontrariam. A própria expografia sugere, segundo Carrilho, encontros em um ambiente “divertido” em meio a cores vibrantes e cortinas de miçangas, tudo em torno de um sentimento comum, real, íntimo e verdadeiro: a sofrência.
ESSE ANO EU NÃO MORRO
O conjunto da mostra prova que artistas populares têm o poder da síntese e que pautavam, muito antes de o sistema abrir os olhos para o assunto, questões raciais, de classe e de gênero, nos fazendo questionar o que é, de fato, arte contemporânea. Com toda a arrogância colonial e eurocêntrica que o mundo da arte herdou, o sistema negligenciou essa produção, caracterizando-a como inferior, ou, como o próprio nome já insinua, ingênua, posicionando-a em segundo plano.
A Ferro e Fogo, que ocupa a Estação Ferroviária de Conselheiro Lafaiete, convida o público a desconfiar dessa tal ingenuidade imposta à arte popular e perceber em cada fatura a densidade das denúncias presentes na exposição. Obras de Ozias, Dalvan e Aparecida Azevedo, datadas dos anos 1990 até 2000, denunciam a história extrativista do Brasil. Com representações de rebeliões de trabalhadores, uma natureza ameaçada e uma política dominada por militares, os artistas autodidatas registram o passado, mas com olhos já no futuro. Em um modo de ver e pensar surrealista, cada obra ali exposta prova que o popular é também massivo.
Nesse sentido, o título da mostra faz referência à canção da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano, que, ao marcar uma geração, narra os acontecimentos que assolam a vida do cidadão brasileiro, e ao livro A Ferro e a Fogo (1996), de Warren Dean, sobre a devastação da Mata Atlântica brasileira. A mostra é uma homenagem à insubordinação do povo brasileiro e dos povos originários que, ao longo de sua história, lutaram pelo que é seu de direito.
DEIXA A VIDA ME LEVAR
Entre o Céu e a Terra, em cartaz no Museu de Congonhas, na cidade homônima, abraça o fato e a ficção na busca por tornar esse sistema ainda mais complexo. Agora o visitante se depara com uma discussão ainda mais atual: a identidade brasileira a partir do imaginário cultural. Pinturas de Ozias, por exemplo, artista destaque da mostra, abordam questões identitárias da cultura brasileira, como o folclore e as tradições religiosas.
Partindo das representações pictóricas de divindades, seres mitológicos e figuras fantásticas, a mostra não apenas discorre sobre crenças espirituais, mas, sobretudo, gira em torno da ideia de que “um povo brasileiro” também depende da crença, independentemente de qual seja, para persistir. Fruto de uma miscigenação plural e violenta, a ideia de Brasil repercute até hoje preconceitos e verdades propagadas em mais de cinco séculos. Assim, a partir do imaginário dos artistas populares salvaguardados pela coleção do Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil, os cultos são muitos e variados, de Ogum a Jesus Cristo, do Lobisomem ao Papai Noel, dos rituais religiosos que marcam a passagem dos anos ao culto de imagens em museus, finalizando a trilogia de exposições recontando nossa história por um viés, até então, encoberto.
As três exposições vão itinerar durante seis meses pelas três cidades, acompanhadas de um amplo programa educativo que parte de um processo de escuta, para o diálogo e a construção coletiva com os públicos participantes. O projeto tem como pano de fundo uma luta para manter a coleção no Brasil, uma vez que ela não apenas se encontra desalojada de sua antiga sede, mas também é cobiçada por compradores estrangeiros. Promover a visibilidade das importantes obras que a compõem, investigar as diferentes narrativas da arte e do Brasil que ela possibilita contar e envolver uma diversidade de públicos com todas essas questões são as apostas dos organizadores nesse horizonte ideal que mantém no país, aberto e vivo, o seu patrimônio cultural e a sua própria história.