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ORLAN Lendo O Vestido de Eugénie Lemoine-Luccioni, 25 de Julho, Paris (1990), da série A Reencarnação de Santa ORLAN ou Imagens-Novas Imagens / Segunda Cirurgia – performance denominada O Unicórnio (Foto: Studio ORLAN/ Cortesia ORLAN e CEYSSON & BÉNÉTIÈRE @ADAGP, Paris/ 2023)
Postado em 16/01/2024 - 1:52
“NÓS TEMOS A ARTE PARA NÃO MORRER COM A VERDADE”
Contra todos os tabus e padrões impostos ao corpo da mulher, ORLAN se insurge, ainda de forma pioneira, dos anos 1960 até hoje, a fim de instaurar a monstruosidade e a indesejabilidade

“Eu me chamo ORLAN, entre outras coisas e na medida do possível, e o meu nome se escreve inteirinho com letras maiúsculas, porque eu não quero entrar em caixinhas e eu não quero entrar na linha”, diz a artista tão logo eu me apresento antes de iniciar a entrevista. “Precisa dizer para a jornalista anterior que o meu nome deve ser escrito em maiúsculas. Tem de dizer para todos os jornalistas”, afirma, agora dirigindo-se às duas tradutoras que a acompanham nos eventos de montagem e divulgação que antecedem a abertura da mostra Tornar-se ORLAN, que fica em cartaz no Sesc Avenida Paulista, em São Paulo, até 28/1/24.

Autora de uma obra controversa e libertária, abertamente feminista e pioneira nas experiências da body art nos anos 1970, ORLAN conta que deveria ter exposto no Brasil muitos anos atrás, quando foi convidada a fazer um projeto com os Irmãos Campana para uma edição da Bienal de São Paulo. A colaboração precisou ser abortada quando a Fundação Bienal avisou o estúdio da artista que não tinha recursos para o traslado das obras. “Queriam que eu pagasse o transporte das minhas obras, um absurdo, por isso não participei da Bienal, mas sinto muito por ter perdido a oportunidade de trabalhar com os Campana”, relembra, apesar de não saber precisar a data do ocorrido.

ORLAN afirma que sua obra pode ser dividida em três partes. A primeira é uma interrogação de sua própria cultura judaico-cristã, sob o prisma crítico do feminismo. A segunda parte são as operações plásticas, modificações estéticas como a do implante de duas protuberâncias na testa, que a artista registrava em vídeo e fotografia (fez todas as intervenções cirúrgicas sem tomar anestesia geral), além de realizar transmissões em tempo real (nos anos 1980!) para o público de alguns museus. A terceira consiste no processo de sair do etnocentrismo e se voltar ao contato com vivência de culturas não ocidentais, como nas séries de hibridações de retratos seus com o de representações africanas ou ameríndias.

Na exposição no Sesc Paulista, recortes de cada uma das três etapas de sua trajetória podem ser contemplados, configurando uma retrospectiva enxuta, mas eficiente. A mostra, inaugurada no início de setembro, coincidiu com o lançamento, pelas Edições Sesc, da autobiografia da artista, Strip-Tease: Tudo sobre Minha Vida, Tudo sobre Minha Arte. A seguir, a entrevista — mediada pelas traduções do francês por Andréia Manfrin Alves e Marina Maia — que ORLAN concedeu à seLecT_ceLesTe.

Retrato nº1 Feito pela Máquina-Corpo Quatro Dias Após a Operação, 25 de Novembro, Nova York (1993) (Foto: Studio ORLAN/ Cortesia ORLAN e CEYSSON & BÉNÉTIÈRE @ADAGP, Paris/ 2023)

seLecT_ceLesTe: Gostaria de começar perguntando o que, para você, significa transformação, transformar-se?

ORLAN: A ideia de lutar contra o que é inato, a ideia de se reinventar, de se reesculpir, porque na nossa época nós temos essa possibilidade, graças às cirurgias plásticas. É a reinvenção de si, reesculpir-se. Para mim, é muito importante tudo o que se relaciona à emancipação e à tomada de consciência de si. Também ultrapassar todos os tabus e estereótipos e todas as injunções que são impostos a todas as mulheres em relação à beleza. Todo o meu trabalho interroga o status do corpo na sociedade, através de pressões, sejam elas tradicionais, culturais ou sociais, mas também religiosas e políticas, que se inscrevem na carne. E, particularmente, no corpo das mulheres.

Refiguração de ORLAN, Desfiguração de Nova York, 21 de Novembro (1993), ambas da série A Reencarnação de Santa ORLAN ou Imagens-Novas Imagens / Sétima Cirurgia – performance denominada Onipresença (Foto: Studio ORLAN/ Cortesia ORLAN e CEYSSON & BÉNÉTIÈRE @ADAGP, Paris/ 2023)

A artista brasileira Vulcanica Pokaropa, quando fez a cirurgia de harmonização facial, ou feminilização facial, postou todo o processo no Instagram, e uma fotografia em particular, uma das imagens, que mostra a artista com o rosto enfaixado, me lembrou muito de suas fotos de processo pós-cirúrgico.

Que ano foi isso?

Faz dois anos, mais ou menos. E o que eu queria perguntar é se o processo de ter realizado as performances, as obras de modificação de seu próprio corpo, se você percebe que fundou uma visualidade que abriu caminhos, foi assimilada culturalmente e talvez tenha ajudado, entre outros fatores, as pessoas a poderem tornar públicos seus processos de transformação?

Não posso falar muito disso, porque é uma evidência: algo que se vê, principalmente no meio das pessoas trans, talvez isso tenha contribuído para retirar a culpa dessas pessoas. Mas também tem muitos artistas que me imitaram. Mas eu, em todas as áreas em que trabalhei, fui sempre muito pioneira.

É, bom, conheço a história do seu processo contra Lady Gaga, mas quando eu falo da Vulcanica Pokaropa não estou dizendo que a artista copiou o seu trabalho, ORLAN, mas que ela é uma jovem artista num mundo em que isso é possível. Você transformou o mundo de uma forma que hoje artistas mulheres trans, por exemplo, podem transformar seus corpos num corpo de mulher publicamente.

Você já disse tudo; eu não tenho nada para comentar. Você já respondeu a sua própria questão.

Tentativa de Sair da Moldura com o Rosto Descoberto nº3 (1966), da série ORLAN-CORPS (Foto: Studio ORLAN/ Cortesia ORLAN e CEYSSON & BÉNÉTIÈRE @ADAGP, Paris/ 2023)

E sobre ter fundado uma iconografia, você concorda?

Vou dizer o que eu digo sempre. O que eu quis foi atacar um fenômeno de sociedade que era a cirurgia plástica, tirando-a de seu lugar habitual. E, para fazer isso, fiz uma cirurgia plástica que não era para ficar mais bonita, mas, pelo contrário, para instaurar uma monstruosidade, uma feiura e uma indesejabilidade. Por isso, coloquei esses implantes, que normalmente são colocados nas bochechas, na minha testa. Essas protuberâncias, elas normalmente não têm a fama de trazer mais beleza. É o contrário, trazem feiura. E no início desse trabalho, nos anos 1980, todo mundo reagiu de modo muito violento contra isso que eu fiz, dizendo aquilo que já disseram sobre os impressionistas, que eles eram loucos, então eu era louca. Que não era arte aquilo que eu estava fazendo. E que era monstruoso, que era um horror. Agora, muitas vezes me olham e me dizem, “nossa ORLAN, como você é linda”, e eu falo: não, você não olhou direito, eu tenho duas protuberâncias aqui na minha testa, e me falam “fica ótimo em você”. É incrível, porque é a demonstração que eu queria fazer. Agora, essas protuberâncias que deveriam ser socialmente monstruosas são órgãos de sedução. É o meu plus a mais, meu trunfo, meu charme. Então, o que estou tentando é fazer com que as pessoas tomem consciência de tudo que nos é imposto, das nossas formatações prévias, estereótipos. Mas, para mim, a beleza é uma questão de imposição ideológica dominante, situada geográfica e historicamente.

Sobre a série realizada a partir de artefatos da cultura maia, como você responde a eventuais questionamentos sobre apropriação cultural; considerando que você é uma artista europeia, lógico, considerando também que é uma crítica do patriarcado e uma feminista, mas ainda assim uma representante desse lugar hegemônico, como defende conceitualmente essa apropriação da visualidade e simbolismo de outra cultura?

É importante saber que se pode ler o meu trabalho em três partes. A primeira é uma distância crítica, uma interrogação da minha própria cultura judaico-cristã, portanto, da cultura ocidental. E, claro, relacionada ao feminismo. A segunda parte são as cirurgias, que são como um jogo em relação à minha imagem, da qual eu gostava muito, aliás.

E, na terceira parte, eu quis sair do meu etnocentrismo e me interessar por culturas não ocidentais. É preciso dizer que viajei bastante e conheci várias pessoas muito diferentes, no mundo todo. Sobretudo, viajei muito pela África. Me interessei muito pelas máscaras africanas, pelas quais tenho grande admiração. E também preciso dizer que me interessei muito pelo Barroco, porque o Barroco coloca em questão o que a cultura cristã nos ensina, que é escolher entre o Bem e o Mal. Na verdade, quando vemos a escultura de Bernini, à qual diferentes vezes me reportei, vemos que Santa Teresa goza com a flecha do anjo em um êxtase erótico e estático ao mesmo tempo. E toda a minha obra está fundada neste “E”, que me levou à hibridação. A gente começa a se hibridar desde muito cedo.

Quando a gente faz sexo e faz um filho, por exemplo, a gente está fazendo uma hibridação. A hibridação está em toda parte. E o que é muito interessante na hibridação é que há um encontro entre duas coisas ou duas pessoas que inicialmente se opõem, poderíamos dizer, ou estão muito afastadas, como o Bem ou o Mal, e eu trabalhei com esse “E”. Esse encontro entre duas diversidades permite criar outra entidade que não teria podido existir sem as duas outras coisas/pessoas. Para mim, é uma questão de saída do eurocentrismo e de um encontro com o outro; esse encontro não é para anular a diferença do outro, é para considerá-la. Não estou falando de apropriação cultural, falo de apreciação cultural.

O que poderia dizer além disso? Para mim, é muito interessante esse novo discurso; é um fenômeno de sociedade atual, que eu entendo bem, porque é um discurso cheio de boas intenções e, de fato, todos temos de estar atentos para isso, a todo tipo de discriminação. Durante toda a minha vida lutei contra o racismo. Por toda a minha vida tentei quebrar os muros entre as práticas artísticas, entre as divisões entre os sexos, entre as gerações, entre as cores de pele. Estou muito feliz que esse questionamento, que é um fenômeno de sociedade, me chegue hoje, mas temo que haja caricaturas, violência e censura, que podem ser exercidas por causa desses discursos, quando estes são mal-empregados, ou seja, quando eles são usados sem ponderação e, sobretudo, sem nuance.

Nu Descendo a Escada em Salto Plataforma – Visão de Ângulo Baixo com Cabeça (1967), da série ORLAN-CORPS (Foto: Studio ORLAN/ Cortesia ORLAN e CEYSSON & BÉNÉTIÈRE @ADAGP, Paris/ 2023)

Acabo de fazer uma exposição no Grande Museu do Mundo Maia, em Mérida, no México, em que me foi pedido que trabalhasse sobre a coleção de estatuária maia deles, que fizesse minhas hibridações a partir desse acervo. Inclusive, duas delas estão aqui na exposição do Sesc. E o interessante, para mim, é que o museu nunca recebeu tanto público e as pessoas que visitaram são locais, ou seja, são pessoas descendentes dos maias, são elas próprias maias. É possível ver no livro de assinaturas que há muitos elogios e nenhuma depreciação, nenhuma crítica.

Em relação à minha cultura ou qualquer outra cultura, sempre tenho os meus critérios de leitura sobre elas, que são, por exemplo, o feminismo. Nas estátuas maias, mas isso acontece também em outras culturas, o que é representado na maior parte do tempo são, antes de tudo, os homens, os notáveis, os importantes, os padres, os guerreiros, os religiosos e, eventualmente, vemos mulheres representadas como figuras maternais. Ou pessoas locais, camponesas, nada que seja muito valorizado em relação às mulheres. Então, o que fiz foi feminilizar todos, e os homens também se transformaram em mulheres. Eu sempre digo que sou um mulher e uma homem. Toda a estatuária retrabalhada é uma homenagem às mulheres. Existe esse distanciamento crítico e foi com ele que trabalhei nesse projeto.

Le Slow de L’Artiste, Manifestação Je Suis Slowsexuelle (2021), em Paris (Foto: Studio ORLAN/ Cortesia ORLAN e CEYSSON & BÉNÉTIÈRE @ADAGP, Paris/ 2023)

 

Queria fazer uma pergunta relacionada ao trabalho de Paul B. Preciado.

Ele é formidável.

Preciado intitula Eu Sou o Monstro Que Vos Fala, um livro que contém a íntegra de seu discurso a uma sociedade de psicanálise, que você certamente conhece…

O livro é formidável.

…e, por ele ser um homem trans, vai dizer que se autodenomina monstro, pela maneira como a psicanálise, que é masculina, eurocêntrica e branca, patologiza as pessoas dissidentes de gênero. O mundo, hoje, já é um lugar acolhedor para os “monstros”, ou seja, todos os que se desviam da norma? A gente já chegou nesse lugar ou não?

As coisas mudam muito lentamente. A partir do momento que não nos encaixamos na norma, que é imposta, podemos ter graves problemas. Penso nos homossexuais, por exemplo, que, pelo menos na França, não sei como isso acontece no Brasil, ainda são agredidos, assassinados, apenas porque são homossexuais. É muito difícil mexer nessa norma, sobretudo porque as religiões existem e dizem que os homossexuais vão contra a natureza, uma vez que existem muitos héteros que comem os seus parceiros, que fazem os mesmos atos dos homossexuais. Então, é difícil mudar a mentalidade em relação às religiões. Eu sou muito radical. Acho que as religiões deveriam ser erradicadas, porque todas as religiões são feitas por homens, para os homens, para manter o patriarcado e a misoginia. E as religiões colocam na cabeça das pessoas que elas detêm a verdade. E se as outras pessoas vão contra essa natureza e esses padrões, elas são más por isso, porque são as religiões que detêm a verdade. Então, elas criam as guerras. Para mim, as religiões são terríveis; além disso, elas impedem, por exemplo, de mostrar o corpo. Atualmente, isso é inacreditável. Não para os homens, mas, por exemplo, uma mulher não pode mostrar o seu seio. Isso é um enorme delírio, um tabu religioso. Falam que não podemos mostrar um seio a uma criança, pois as crianças chuparam, morderam, entortaram os seios e tiveram aquilo diante dos olhos. E sabem o que é um seio. Se a gente acredita em Deus e acha que Deus fez os seres humanos à sua imagem e semelhança, isso significa que todos os corpos são grandes obras de arte e que é preciso mostrar essas obras de Deus, não somente as obras, mas a própria sexualidade: a culpa é de Deus, se a gente trepa.

Tudo isso é um grande delírio. É alucinante pensar nisso. E as pessoas são formatadas dessa forma. Devia ser proibido impor uma religião a um jovem que ainda não é capaz de pensar por si mesmo, de escolher por si mesmo. É um abuso de poder, isso deveria ser realmente proibido.

Então, se a gente sai da norma, a gente se torna um monstro. Existem muitos bairros em que, se a gente se veste de uma certa forma, a gente é aceita, mas se a gente usa essa mesma roupa em outro bairro, a gente já se torna um monstro, alguém que deve ser eliminado. Sou contra todo tipo de comunidade, porque elas se fecham em si mesmas, com hábitos estereotipados que elas querem impor a todo mundo. Os monstros, para mim, atualmente são os homens que assediam, que violentam, que estupram, que matam. Uma coisa terrível de pensar é que a sociedade produz esses homens: às vezes, as mães, os pais também, mas a maioria das vezes as mães. Há muitos monstros à nossa volta. Falaram que a mulher era o monstro do homem. E que o Barroco era o monstro do clássico. Eu sempre cito Nietzsche, o filósofo alemão, para dizer que nós temos a arte para não morrer com a verdade. Felizmente, a arte existe.

"EU SOU MUITO RADICAL. ACHO QUE AS RELIGIÕES DEVERIAM SER ERRADICADAS, PORQUE TODAS AS RELIGIÕES SÃO FEITAS POR HOMENS, PARA OS HOMENS, PARA MANTER O PATRIARCADO E A MISOGINIA"