icon-plus
Exposição Entre Construção e Apropriação, com obras de Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman
Postado em 28/05/2018 - 6:47
Os anos 1960 na veia no Sesc Pinheiros
Crítica da exposição Entre Construção e Apropriação, com obras de Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman
Paulo Sergio Duarte

Revisitar obras de arte de um passado muito próximo é não somente fonte de prazer estético, como educativo, para olhar o presente. É o caso da exposição Entre Construção e Apropriação – Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos anos 1960, com curadoria do poeta e crítico João Bandeira, até 3 de junho, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Ali vamos encontrar preciosos momentos de algo que deveria estar dentro de nós, e, no entanto, não se encontra por uma simples razão: a pobreza de nossas instituições e coleções públicas em institucionalizar a arte contemporânea. Afinal de contas para que existem instituições? Para institucionalizar, mas como sempre, no Brasil, elas existem para não institucionalizar nada. Onde estão salas dignas de modernos como Guignard, Goeldi, Ismael Nery? Digo o mesmo para aqueles bem reconhecidos e “oficializados” como Portinari e Di Cavalcanti, onde o jovem artista em formação e o grande público podem encontrar um conjunto significativo de suas obras reunidas em número razoável – digamos doze ou quinze obras de cada um? Em nenhum lugar. Que dirá Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman. Daí essa exposição ser um acontecimento ímpar. E por muitas razões.

Primeiro, pela força da escolha. O curador, além de inteligente, tem olho. E vou logo dizendo que isto está escasso nas curadorias contemporâneas que misturam alhos com bugalhos, e conseguem mesmo matar artistas fundamentais pela forma como os mostram. A exposição no Sesc Pinheiros apresenta uma ótima seleção de obras, toda cercada por um cuidado de demonstração da potência estética que se revela logo quando se entra no espaço. Tive ocasião de formidáveis descobertas. Artistas que conheço bem, como Antonio Dias e Rubens Gerchman, têm lá obras que eu não conhecia, uma de cada um. E de Geraldo de Barros, nunca tinha visto nada dessa fase. Com cerca de cinquenta e três anos de frequência a exposições de arte do meu tempo, isso me surpreendeu.

Mas vamos às obras. Geraldo de Barros, ao abandonar o concretismo, na maior parte das obras, torna-se sombrio. Há algumas exceções, They are playing, O fumante ou Futebol. O resto é penumbra. Geraldo consegue pintar uma noite nova, com ocres e pretos dos casais, muito próximos de uma angústia comum nos anos 1960 do que era chamado de “fossa”. Os quadros são uma espécie de nosso Antonioni de A Aventura, de A Noite e O Eclipse sob a forma de pintura. A questão existencial está muito presente e sempre de uma forma sensual, onde a relação pode chegar a extremos como em Cena do sofá III (fantasia agressiva). João Bandeira, em seu texto do catálogo da mostra, chama a atenção para esse aspecto: “Salvo pouquíssimas exceções, os quadros compartilham um clima soturno, para o que colabora a cor preta – que, por assim dizer, pauta a ambientação das cenas, de modo geral estabelecendo oposição com áreas igualmente homogêneas em amarelo”. Eu diria um amarelo quase ocre. E, um pouco além dos cartazes de publicidade utilizados nesses quadros, as explorações de Geraldo de Barros chegam mais perto de Antonioni do que as tentativas cinematográficas bem frágeis realizadas por aqui. A única exceção é Luiz Sergio Person, com São Paulo S.A., um filme referência e indispensável na nossa cinematografia.

O que esses artistas estavam fazendo naquele momento era captar as tensões subjacentes a uma nação subdesenvolvida que se industrializava de forma acelerada – não existia essa de “emergentes”. Se os artistas da sociedade de consumo avançada podiam se apropriar abertamente, sob a forma de ready mades, das primeiras páginas de jornal, das latas de sopa e caixas de sabão, das páginas de história em quadrinhos e estampá-las diretamente nas telas, aqui no Brasil as fortes tensões que prenunciavam o golpe de estado civil-militar e suas consequências não permitiam o exercício da razão cínica tão comum à pop americana. A Nova Figuração no Brasil não tem nada de pop e o curador sabe disso, afirmando no seu texto: “filiar o que eles fizeram diretamente à arte pop seria uma simplificação equivocada”.

Gerchman capturava como ninguém os anseios dos mais humildes desde as páginas de jornal com oferta de emprego por correspondência até as novas habitações de classe média baixa, as “caixas de morar”. Quem diria, nós que reclamávamos da ditadura com seu programa de habitações populares do BNH (Banco de Nacional de Habitação) de 56 metros quadrados veríamos hoje o “Minha Casa Minha Vida” do Partido dos Trabalhadores, que admite “caixas de morar” de 36 metros quadrados? Gerchman ia aos ícones da época, as “misses”. Deformando-as, nunca as retratava como um pop, elas não estavam lá, lindas, como nas páginas da revista, como uma obra pop. Fazia o mesmo com os heróis do esporte. Na exposição também se encontra Lindonéia, a Gioconda dos subúrbios, talvez uma das suas obras-primas. Nara Leão viu e descreveu o quadro para Caetano, que, sem vê-lo, compôs a canção.

Em Antonio Dias a tensão se eleva, e muito; estamos diante de uma obra de alta voltagem. A seleção de obras expostas é impecável – e digo mais, rara. Nesses trabalhos de Antonio temos a demonstração de uma das mais elevadas intuições de interação entre psicanálise e história que se pode encontrar na história da arte. E não estou falando de história da arte brasileira, nem só de arte dos anos 1960. Podem recuar ao Surrealismo dos 1920, podem ir a qualquer experiência da pop. Ninguém vai encontrar o que o filósofo Lyotard, nos anos 1970, irá chamar de “economia libidinal”, mais bem retratado, anos antes, numa manifestação plástica, como o trabalho de Antonio Dias desse período. E, prestem atenção, há uma ousadia plástica inédita, as pinturas explodem para a tridimensionalidade, ejaculam – desculpem-me o termo – literalmente em direção aos nossos olhos.

Entre Construção e Apropriação é, enfim, uma exposição exemplar, que merece ser apresentada em outros lugares. E, além disso, a linha do tempo montada pela curadoria, que acompanha a exposição, é mais uma obra inédita sobre os anos 1960 no Brasil, que deveria ser preservada para ser mostrada em outras ocasiões.

Paulo Sérgio Duarte é crítico e historiador de arte. Professor e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, é autor de Anos 60 – Transformações da arte no Brasil (Campos Gerais, 1998), entre vários outros livros.

Serviço

Exposição Entre Construção e Apropriação – Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman nos Anos 60. Curadoria: João Bandeira
Até 3 de junho de 2018
Terça a sábado, 10h30 às 21h30. Domingo e feriado, 10h30 às 18h30
Local: Espaço Expositivo (2º andar) do Sesc Pinheiros, rua Paes Leme, 195, São Paulo, SP
Grátis. Estacionamento pago. Metrô Faria Lima.