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Fotos: Flávio Freire/ Galeria Nara Roesler
Postado em 18/11/2024 - 6:36
Os Segredos e Feitiços de Thiago Barbalho
Em visita à individual do artista na galeria Nara Roesler, Tiago de Abreu Pinto fantasia um diálogo, em sentido literal, com uma das obras

É terça-feira e estou indo à galeria Nara Roesler visitar a primeira individual de Thiago Barbalho na sede paulistana. Ao entrar, me deparo com desenhos, cadernos, tapeçarias, telas e papéis. De início dou um passeio abrangente sem me deter em nada, até que uma criatura enorme me pede atenção. Existe uma escultura de quase dois metros no meio da sala.

Me aproximo. As paredes ao redor estão ocupadas com desenhos de grande formato feitos pelo artista potiguar radicado em São Paulo. Cada um tem mais de dois metros de altura e extensão. A escultura no centro, sua estranheza familiar, parece guardar um segredo sobre eles, como se fosse ela a autora. Consulto o mapa da exposição: “Rebento depois do incêndio” é o nome dessa esfinge densa de símbolos que, com olhos vermelhos, me convoca aproximação. 

Acompanho o trabalho de Thiago desde a vida pré-covid e sinto que, quanto mais explosivos em cores, matérias e signos, mais sua produção encobre “segredos e feitiços”, como diz o título da mostra. Me aproximo da escultura. Aproveito que estou sozinho e lanço-lhe uma pergunta:

— Então, me conte mais sobre o trabalho de Thiago Barbalho — pergunto, curioso.

Para minha surpresa, ela sorri, refletindo por um instante, como quem busca organizar uma série de pensamentos dispersos.

— O trabalho de Barbalho é uma espécie de resposta ao silêncio, ao que fica no vazio das palavras. Quando você olha para os desenhos dele, o que vê não são só formas, traços e cores. É um confronto com aquilo que falta, com o não dito. Ele começou a desenhar como uma forma de lidar com o peso das palavras que não mais o sustentavam. O desenho para ele é como um substituto, algo que toma o lugar da linguagem quando ela falha. Mas não é só isso — ela pausa, inclinando-se um pouco para a frente, como se quisesse que eu entendesse mais a fundo. — O que ele consegue é nos fazer encarar o vazio de uma forma que, ao mesmo tempo, preenche.

— Como assim, o vazio preenche?, pergunto intrigado.

— Barbalho lida com o vazio de uma maneira única. Ele usa o pó que cai ao afiar os lápis, por exemplo, e incorpora isso nos seus desenhos. Ele não vê esse resíduo como algo que se descarta, mas como parte do processo. E é justamente aí que ele nos faz pensar. Não estamos acostumados a valorizar o que sobra, o que é marginal. E mais ainda, ele usa o branco do papel como parte da composição. O que para muitos é simplesmente um fundo, para ele é matéria-prima. O branco, o vazio, vira protagonista.

Assento lentamente, absorvendo aquele discurso.

— Então ele não preenche tudo com cores e formas? Ele deixa partes em branco, intencionais?

— Exatamente. E essas partes são tão significativas quanto o que ele desenha. Elas são o silêncio no meio de uma conversa. São os intervalos entre os gestos, os momentos em que algo não é dito, mas é igualmente importante. O interessante é que ele começou a fazer isso em resposta à sua própria angústia com o vazio. Ele sentia essa inquietação, essa necessidade de preencher, mas ao mesmo tempo se perguntava por que o vazio o incomodava tanto. E foi aí que ele decidiu incorporar essa falta nos seus trabalhos, não como algo a ser resolvido, mas como algo a ser mostrado.

Inclino-me para trás, cruzando os braços, tentando imaginar aquilo.

— Isso me faz pensar sobre a nossa própria relação com o silêncio, com a falta — digo. Sempre tentamos preencher, não? Mas parece que ele está nos pedindo para encarar essa ausência de outra maneira.

— Sim, é exatamente isso. — Ela parece satisfeita com o meu entendimento. Suas gotas negras e seus olhos vermelhos me refletem. 

Ela continua: 

— O trabalho de Barbalho nos força a olhar para o que não está lá. Ele nos faz questionar por que sentimos essa necessidade constante de preencher os vazios, seja com palavras, com gestos, com objetos. Ele faz do espaço em branco uma metáfora para as lacunas que carregamos na vida. E, ao fazer isso, ele cria uma sensação de desconforto, mas também de libertação. Afinal, quem disse que precisamos preencher tudo?

Eu sorrio, e ela vê a minha curiosidade.

— Mas por que será que só agora ele resolveu se voltar para o Seridó? Será que essa falta assumida gerou a necessidade de lidar com suas raízes?

— Sim, de certa forma. Quando ele voltou para o Seridó, começou a refletir sobre o que significa estar em um lugar, pertencer a um lugar. Ele se viu no meio de uma paisagem árida, onde a luz é intensa, e começou a pensar sobre o que significa estar desconectado da sua própria história. Sabe, ele passou muitos anos em São Paulo, longe da terra onde nasceu. E essa mudança de perspectiva fez com que ele repensasse o próprio conceito de centro. O que é o centro da nossa vida? O que significa voltar às raízes?

Meneio a cabeça, pensativo.

— E isso se reflete nos desenhos dele?

— Sim. Os desenhos que ele começou a fazer depois dessa mudança têm uma qualidade muito diferente. Eles são profundamente enraizados na terra, no chão. Ele usa cores que evocam o solo, como o vermelho, o verde, o marrom. E o próprio papel que ele escolhe — o papel kraft — tem essa qualidade terrosa, bruta. Mas ao mesmo tempo, ele não está apenas falando sobre a terra de maneira literal. Ele está nos perguntando o que significa estar enraizado. E isso é fascinante, porque, ao mesmo tempo em que ele retorna às suas origens, ele questiona o que isso realmente significa.

— Ele está desafiando a ideia de regionalismo, então — sugiro.

— Sim, de uma forma muito interessante. Ele está jogando com as expectativas do que significa ser um artista nordestino. Existe essa ideia quase estereotipada de que a arte do Nordeste deve ser de um certo jeito, lidar com certos temas. Mas Barbalho, mesmo abraçando suas raízes, não se limita a elas. Ele está sempre misturando, sempre hibridizando. Você vê elementos de cultura popular, referências à cultura de massa, tudo misturado com símbolos e ícones que remetem à tradição. 

— Então ele não foge das suas origens, mas também não se limita a elas.

— Exato. — Ela faz uma pausa, como se considerasse um jeito de prosseguir. — O que Barbalho faz é criar um diálogo entre o passado e o presente, entre o particular e o universal, nessa ilusão. Ao usar referências de desenhos rupestres que ele viu no Seridó, por exemplo, ele não está apenas celebrando sua história, mas também questionando-a. Ele nos faz pensar sobre o que significa olhar para o passado com os olhos de hoje. Como o passado molda nossa percepção do presente.

Inclino a cabeça, pensativo. Meus olhos estão nos desenhos na parede por trás da escultura.

— Parece que ele está sempre lidando com paradoxos, com contradições — falo.

— Sim. Ele dialoga com essas tensões entre o que está presente e o que está ausente, entre o que é regional e o que é universal. É como se ele nos dissesse: “Tudo está conectado de alguma forma.” E isso reflete também no próprio processo dele. O desenho para ele é um ato de liberdade, mas também de controle. Ele vai depurando as formas, simplificando, mas nunca de forma a esvaziar o conteúdo. 

Eu sorrio, concordando.

— E nesse processo de depuração, ele lida também com o que ele viveu no Seridó?

— Sim, claro. O que ele viu e sentiu lá o levou a criar uma linguagem para tratar tudo isso. Ele começou a observar mais de perto a luz intensa do lugar, a precariedade dos recursos, a própria terra. E isso se reflete nas cores e nos traços que ele usa. Mas ao mesmo tempo, ele está lidando com algo maior. Está pensando na história do Brasil, nas histórias apagadas, de novo na presença da falta, e em como a sua própria história pessoal se entrelaça com essas narrativas maiores. 

— É como se ele estivesse tentando reconstruir uma memória — digo baixinho, para ninguém ouvir que estou conversando com aquela escultura.

Eu me recosto na parede, agora mais relaxado, e por um instante o silêncio entre nós dois vira parte da conversa. Ela olha o tempo todo para a frente pensativa, enquanto eu absorvo as palavras que haviam sido ditas sobre o trabalho de Barbalho, com sua mistura de ancestralidade e contemporaneidade, o desconforto do vazio e a densidade dos traços  — tudo parece cada vez mais claro. Porém ainda há algo, uma última questão pairando no ar.

— No fundo, tudo isso me faz pensar em algo mais profundo — digo, finalmente quebrando o silêncio. — É como se ele estivesse nos perguntando, ou talvez se perguntando, o que os homens das cavernas estariam pensando quando olharam para o mesmo céu que temos sobre nós hoje.

— Exatamente. Barbalho nos leva de volta ao começo, ao mais básico. Às primeiras impressões que o ser humano teve do mundo, quando tudo ainda era novo, mas também assustador. Quando os primeiros seres humanos olhavam para o céu, o que eles viam? O que eles sentiam? Aquele mesmo céu que nós olhamos hoje, e que agora entendemos como parte de algo muito maior, era para eles um mistério, algo incompreensível. E de certa forma, o trabalho de Barbalho nos faz retornar a esse estado. Ele nos lembra que, apesar de todo o nosso conhecimento, ainda carregamos esse sentimento de mistério, de não saber exatamente o que estamos vendo e fazendo. Ele nos coloca de volta em contato com esse olhar primordial, o mesmo lançado àquele céu do passado.

É como se eu compartilhasse o mesmo pensamento daquela criatura.

— Então, talvez o trabalho dele seja uma tentativa de nos lembrar que, no fim, somos todos os mesmos — concluo, olhando para os desenhos maiores lá no fundo. — Homens das cavernas, habitantes das grandes cidades, olhamos para o céu e para a terra com a mesma mistura de admiração e dúvida.

Ela fica em silêncio. E acompanha o meu olhar ver em seu reflexo uma nuvem passar lá fora.