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Postado em 25/08/2011 - 10:23
Outras naturezas
Após séculos de domesticação, a paisagem ainda é tema e estratégia de criação para artistas e designers holandeses, como Levi van Veluw e Koert van Mensvoort
Paula Alzugaray

 

Primeiro, o controle do nível do mar. Logo, a criação de zonas ecológicas no ambiente urbano para estimular a geração de novos biótipos. Nos Países Baixos, a natureza é tão programada e artificial quanto o ambiente urbano. Mais da metade da terra foi elevada das águas. Num país onde quase um terço de sua área e 60% de sua população vivem de fato abaixo do nível do mar, o controle da paisagem é condição básica de sobrevivência. A luta pela conquista da terra sobre o mar começou a se organizar no século 14 e desde então é tamanha que, além de ter gerado uma das mais sofisticadas infraestruturas de tecnologia ambiental do planeta, deu origem a uma palavra. Landscape (paisagem, em inglês) deriva do holandês Lantscap, que significa criação da terra, ou terreno cultivado. E é no momento em que as técnicas de drenagem e de construção de aterros se tornam uma realidade, no século 16, que a paisagem passa a ser incorporada como gênero na pintura holandesa.

Com o trabalho de várias gerações de paisagistas, engenheiros ambientais, agrônomos, geólogos, urbanistas e arquitetos, hoje todo e qualquer metro quadrado desse país tem a peculiaridade de ter sido planejado para um propósito específico. Os diferentes estágios de manipulação da natureza
ensinam que, hoje, na Holanda, é impossível encontrar uma distinção precisa entre natural e artificial; natureza real e natureza fabricada. O conceito está em permanente revisão e surgem, ano após ano, novas “estéticas da natureza”. Segunda natureza, pós-natureza e próxima natureza são algumas delas.

Levi van Veluw: a terra inteligente

Na série Landscapes (2008), Levi van Veluw usa sua própria cabeça como suporte para quatro paisagens, que sugerem as quatro estações do ano. Nesse trabalho em fotoperformance, o artista negocia com as tradições do retrato fotográfico e da pintura de paisagem. Ao eleger nos quatro retratos sempre o mesmo posicionamento transversal em relação à câmera, com corte um pouco abaixo dos ombros, van Veluw adota como parâmetro visual a mesma tipologia dos primeiros retratos em daguerreótipo. Esse modelo, por sua vez, remonta ao retrato pictórico flamengo, do século 15, que conferia individualidade ao modelo.

Sobre essa base neutra, a cabeça fotografada em 3/4, van Veluw aplicou diferentes texturas e materiais, compondo quatro paisagens. “Usei os valores da natureza para criar um contraponto aos valores do retrato. Procuro balancear esses dois valores”, diz o artista, que inaugura individual na galeria Ronmandos, em Amsterdã, em 21 de maio. Mas, para além da vontade de dialogar com a tradição do retrato, há pelo menos outro bom motivo para van Veluw eleger a cabeça como base sobre a qual repousa sua visão de natureza. O mato que cresce em sua cabeça acaba por nos lembrar que é o intelecto humano, afinal, o agente de transformação da natureza.

“No futuro, não haverá natureza selvagem, toda natureza será controlada pelo homem e não poderá funcionar sem nós. Nós controlaremos os sistemas ecológicos.” Na fotoperformance de van Veluw, não são apenas a paisagem e o retrato que são colocados em balanço. Transformação (da paisagem) e repetição (do suporte) também são forças em tensionamento. A alternância de paisagens sobre o mesmo suporte acaba por advogar pela continuidade de um cenário controlado, em que as estações do ano se sucedem docilmente umas às outras. No calendário fotográfico desse jovem artista holandês, não há espaço para a imprevisibilidade que, em uma onda ou em uma intempérie climática, pudesse vir a alterar a perfeição dessa natureza fabricada.

Koert van Mensvoort: a próxima natureza

A natureza tornou-se uma categoria cultural. A partir desse pressuposto – compartilhado por nove entre dez cidadãos do mundo –, o artista, editor e designer Koert van Mensvoort começou a explorar a ideia de que os poderes naturais estão se transferindo da natureza para um novo campo: o cultural. “As plantas, animais, átomos e o clima são cada vez mais governados pelo homem. Ao mesmo tempo, produtos da cultura que costumavam ser controlados, tendem a nos superar e a se tornar autônomos”, apontou van Mensvoort no ensaio Exploring Next Nature (Explorando a Próxima Natureza), seu primeiro texto sobre esse conceito criado em 2004, publicado no livro Next Nature Pocket (140 páginas, à venda na amazon.com).

De lá para cá, procurando mapear e pensar sobre as formas que a natureza assume quando é provocada pelo homem, van Mensvoort cultiva a tribo Next Nature no Facebook, Twitter e em um blog que conta com a participação de autores de diversas especialidades. O Mundo Não É um Desktop, N de Natureza, Ecologia: um Novo Ópio Para as Massas, Nós Deveríamos Clonar Neanderthals? e Fake for Real são alguns dos ensaios publicados em posts diários no blog www.nextnature.net.

“A natureza é transformada por uma cachoeira de invenções. Já que o verdadeiro propósito da tecnologia é nos emancipar das forças da natureza, ela também pode dar forma a uma nova definição, uma próxima natureza, que pode ser tão selvagem e imprevisível como sempre. Só recentemente começamos a nos dar conta de que a natureza não é uma entidade rígida e estática, mas uma força dinâmica que muda como nós”, diz o artista.

Fake for Real é um jogo de memória que especula sobre as relações dúbias e incertas entre realidade e cópia, natureza e artifício. Os pares não são idênticos: eles confrontam objetos de naturezas diversas: fotografias de folhagens sem retoques e folhagens fotoshopadas; a Terra em fotografia de satélite e vista pelo Google Maps; A Mona Lisa original e sua cópia. À medida que o jogo avança, nos damos conta de que imagens são sempre mais reais que o real. “Tenho de enfatizar que não penso que a dicotomia entre natureza e cultura seja totalmente obsoleta. Acho que os limites entre como definimos natureza e cultura estão aumentando e não desaparecendo”, diz
van Mensvoort