O Parque do Ibirapuera é um desses clichês que não perdem o charme, apesar da fórmula desgastada (e dos monumentos comemorativos de capítulos vergonhosos da História do Brasil). Após décadas de existência, o projeto conserva a essência de parque/jardim público. Desde que esteja aberto, pois seus portões fecham entre meia-noite e cinco da manhã. Desde que, também, não se tente entrar em um dos edifícios que ocupam o Parque, nos quais o filtro de público é mais rigoroso. Em um deles, ontem, inaugurou mais uma edição da SP-Arte.
Do lado de dentro, uma nova intervenção de M.I.A. para a trajetória da maior feira de arte do país (e para o Ibirapuera). Sem aparentar preocupação com a chegada de funcionários do evento, o artista pixou a palavra “NEGRO” junto à pergunta: “Cadê a arte preta?”. O suporte era um painel que corresponde à parede externa do estande ocupado pela parceria da Almeida & Dale Galeria de Arte com a italiana Galleria Fonti e, ao mesmo tempo, a um dos “muros” que delimitam a Arena Iguatemi, espaço de fórum, simbolizado por uma arquibancada semicircular, patrocinado por um Shopping: naquele momento, ocupado somente pelos convidados do evento.
Do lado de fora, uma nova instalação de Mauro Neri, também conhecido como “veracidade”: Memórias Móveis Murais, protagonizada por uma série de telas verticais de grandes dimensões, remanescentes de mostras passadas (institucionalizadas), montadas em forma de labirinto. O artista tem a ocupação de áreas externas de feiras de arte nacionais e internacionais como estratégia de seu trabalho – como na ArtRio, no Rio de Janeiro, e nas Art Basel, em Basel (Suíça) e Miami (EUA). Se, na tradição ocidental, a tela atende a demanda de trânsito da obra de arte, para um artista que parte da arte pública, ela serve para que ele possa se instalar onde lhe for conveniente. Os tradicionais muros paulistanos, pelos quais é conhecido, têm os seus limites.
Entre painéis individuais e polípticos, destacam-se o desgaste gerado pelas intempéries (chuva, sol, vento, poeira etc.) e as fotoperformances do artista, que surge em poses espelhadas com os desenhos de corpos nus rotacionados que estão em outras telas que integram o conjunto. Como em um conto visual kafkiano contemporâneo, Mauro aparece atormentado e engolido pelo planejamento e pela burocracia exigida para ocupar a rua, materializada pela colagem de recortes de cópias de diversos documentos, como: seu RG e CPF; matérias de jornais sobre a disputa do espaço público entre os artistas e a Prefeitura; pedaços de documentos sobre projetos de intervenções públicas realizados junto a outros artistas, como autorizações da Prefeitura; mapas da cidade; estudos para murais de grande escala. Entre as sobreposições, que desenvolve desde 2009, também há sua tipografia na assinatura de seu nome de rua e em termos como “cartograffiti”, “debatepapoético”, “imargem”, entre outros, que categorizam a profusão de suportes, questões e assuntos reunidos. A argumentação da obra inclui os preços: de 50 mil a 50 reais.
Entre o labirinto de telas, estão espalhadas diversas casas em formatos de mochilas, bolsas e carrinhos de compras, com um desenho simples que remete aos desenhos de crianças, marcando a influência da sua atuação como educador. Diante da ocupação ordenada e asséptica do edifício moderno de Oscar Niemeyer, repleta de fórmulas tão desgastadas quanto o clichê Ibirapuera, o aparente desprendimento e ingenuidade de Mauro Neri no gramado parece quase uma utopia. Mas não é, sua obra existe e essa é apenas uma de suas facetas. Jogando também do lado de dentro das instituições, com exposições e vendas regulares, há um estudo contínuo, preciso e crítico dos sistemas de arte.
Ao ouvir o comentário de um passante, “Para expor aqui deve ser muito mais barato”, Mauro reagiu: “Você ouviu isso? Mal sabe ele que ainda posso tomar uma multa”. Fim do 2° dia de feira. O Parque fechará em breve. Mauro dormirá aqui, para vigiar os trabalhos. Às vezes, conta com a ajuda da empatia de alguns guardas do Ibirapuera.
Daniele Machado é historiadora da arte. [@danielemachado____]
Instagram do artista: @reveracidade