Em 1970, no Rio de Janeiro e também dentro de um museu de arte moderna, o artista luso-brasileiro Antonio Manuel tirou suas vestes e proclamou seu corpo como a obra de arte, em uma ação que posteriormente ficou conhecida como “O corpo é a obra” e que se configurou como um dos marcos iniciais da nossa arte contemporânea. Quase 50 anos depois, qualquer noção desejada de progresso e de formação cultural é desafiada por uma avalanche conservadora lançada sobre outro corpo nu, também em um museu de arte moderna: o do artista carioca Wagner Schwartz em uma reapresentação de sua obra La Bête, criada em 2005 a partir dos Bichos de Lygia Clark, esta sem dúvida uma das artistas brasileiras que mais se dedicaram ao problema do corpo, não apenas em sua dimensão social e política, mas também em seu aspecto libidinal e – usando sua própria palavra – “fantasmático”. Esse arco de meia década, curto capítulo de um histórico muito mais amplo de amor e ódio ao corpo no Brasil, nos permite lembrar que o problema não está apenas na dificuldade de separar diferentes dimensões das relações entre gestos e corpos (um dos principais argumentos em defesa de La Bête), mas, principalmente, pela dificuldade crescente de uma nação – fruto de um longo projeto de alienação – de se deparar com uma obra de arte como um dos únicos espaços que podem operar para além das imposições moralizantes sobre nossos corpos e, com isso, encontrar outras formas de vida.
Não almejo, com este breve texto, uma explicação ou defesa da obra de Schwartz – já realizada brilhantemente por outros pensadores e críticos – mas sim apontar para as condições discursivas que foram produzidas também por nós, artistas, dentro do nosso campo de atuação, que deram vazão para essa avalanche. Pois em tempos de urgente necessidade de criação de novas formas de vida, não podemos nos deixar seduzir apenas pelas políticas corretivas que já se infiltraram nos fazeres artísticos, na forma de consensos sobre problemas urgentes que – estetizados – ganham valor simbólico e financeiro enquanto o problema se mantém.
Parto do pressuposto teórico de que certa arte politizada – que assume em sua produção um posicionamento político específico, tratando, portanto, a política como um assunto possível da obra – por vezes se aproxima da polícia, corrigindo e apontando para corpos e assim (re)estabelecendo as condições de visibilidade de corpos e coisas. Lembremos que Althusser e Rancière encontram na figura da polícia forças coreográficas a partir das enunciações de poder que emitem (“ei, você aí”; “circular, circular, não há nada para ver”), não apenas reorganizando os corpos, mas mantendo a execução de uma performance de poder.
Nesse sentido, pensar a política como assunto é abordá-la a partir de uma perspectiva positiva, ou seja, pensar o papel da arte como um modo de revelar, iluminar ou esclarecer (com a ocidental luz que cega) questões que são consensualmente políticas, tais como pobreza, discriminação, racismo, guerra, globalização. Parte-se do pressuposto de que essa revelação possui poder emancipatório, apresentando contradições encobertas pelo capitalismo e, mesmo dentro do próprio meio artístico, realizando críticas diretas ao sistema de exclusão cunhado no modernismo artístico e perpetuado até hoje. Arte participatória, artivismo, estética relacional são alguns dos principais termos para delimitar essas novas formas de aproximação entre arte e vida que reconciliam a arte com possíveis funções sociais e fins específicos para a produção. Mas também a performance art dos anos 1960 e 1970 está intimamente ligada a esse lugar, sendo inclusive um motor histórico para essas recentes práticas, que retomam seus procedimentos sem a negatividade que constituiu seu surgimento em um contexto de pós-guerras.
A contradição desse movimento politizante, à primeira vista emancipatório, é que ao se assumir afirmativamente o caráter político da arte acaba-se por instrumentaliza-la em nome de certa política. Cresce o número de pensadores que detectam e negam essa instrumentalização, dos quais vale destacar Boris Groys, Jacques Rancière, Jen Harvie, Claire Bishop e Irmgard Emmelhainz, para os quais as intenções democráticas e éticas de certa produção faz da arte design da política (Boris Groys), embelezando questões sociais (Emmelhainz) e, dando assim, apelo estético para que elas sejam mais percebidas e – porventura – transformadas. O principal ponto em comum desses argumentos teóricos é a substituição do desejo e da produção de novas formas de vida pela manutenção ou correção parcial das formas de vida já existentes, operando assim ao mesmo tempo como críticas e mantenedoras de um status quo neoliberal – que inclusive necessita da figura transgressora do artista para reforçar a imagem bastante vaga da crise.
Essa condição discursiva e afirmativa esbarra em um nível mais profundo nas bases da estrutura que pretende criticar, pois ao transformar a política em um campo de melhorias possíveis e a arte em uma ferramenta para tal, submete seus processos ao que já foi imaginado por esse modo específico de se fazer política. A verve política da performance art, agora incorporada como item de luxo em aberturas de galerias, feiras de arte e grandes exposições, tem também seu caráter reificado por essa condição afirmativa. Para ser política, é preciso que a produção pareça política, que seja possível identificá-la como tal, atribuindo às figuras que cercam essa produção um capital simbólico cada vez mais valioso: a consciência das mazelas de seu entorno e a possibilidade de encontrar saídas, operando diretamente no mundo ao mesmo tempo que valida certa configuração da sociedade como esse mundo. Vale lembrar que essa operação direta está nas raízes do termo performance, quando o linguista J. L. Austin sugere em 1968 que alguns verbos – os performativos – quando enunciados em condições específicas operam mudanças diretas no mundo ao invés de apenas constatá-lo (a noiva que diz “eu aceito”, o juiz que “declara” culpado). Mas essa mesma operação sem mediação parece cada vez mais impossível dada a velocidade de captação da performance pelo mercado da arte e as instituições que o cercam. Hal Foster, em um recente texto sobre essa apropriação das performances, comenta como disputada noção de presença na performance (na forma de um estado de arte percebido sem mediação) tornou-se uma presença zumbi. O termo nos interessa, pois refere-se a um corpo indeterminado, que não ocupa um lugar entre o vivo e o morto, entre o presente e o ausente: move-se como um humano, parece um humano, mas já está em decomposição. Poderíamos aqui arriscar também falar de uma política zumbi, na qual se olha e se reconhece a política, mas que já está decomposta.
Sigo com a pergunta, que não se resolverá nesse texto: colaboramos de alguma forma, enquanto artistas, para um regime de governabilidade dos nossos corpos que vincula liberdade de expressão com individualismo e controle? Será que, ao afirmar a política como assunto, mantemos um modo de policiamento que agora vemos se voltar contra nós? Uma saída possível para essa pergunta é proposta pela artista Hito Steyerl: não ver o que a arte mostra, mas o que ela faz (repito: o que ela faz, e não como funciona). No caminho dessa possível resposta, é no mínimo curioso pensar na sutileza na nudez de Schwartz em contraste com a absurda repercussão do fato. Deixando de lado o jogo político obviamente articulado no processo – travestido de defesa da moral e exercendo a alarmante função de cortina de fumaça para nos desviar de reais e necessárias discussões nacionais – salta aos olhos a impossibilidade geral de lidar com uma imagem tão aberta sem conseguir contê-la e, no segundo seguinte, enquadrá-la em um regime de significação moralizante. Não se tratava de uma imagem, ação ou proposição politizada, que se identificava com qualquer bandeira, causa ou assunto urgente. Se tratava de uma imagem aberta, quase impossível de se conter, enquadrar ou identificar. E justamente por isso tão assustadora. Assustadora como outro homem nu dentro de uma bolha de ar, como um boné na contramão da multidão, como um urubu sobre areia, como uma mulher com galinhas nos pés, como um superman negro que rasteja pelas ruas, como o homem que veleja até o desaparecimento. Assustadora como alguns dos relatos de experiências terapêuticas promovidas por Lygia Clark. São imagens que escapam à consciência e à culpa, e que trocam o comentário ou a crítica anunciada pelo desconcerto e pelo abismo. Ao contrário do esclarecimento humanista, o buraco negro.
Não se trata, de forma alguma, de soltar o elo inexorável entre arte e política. Pelo contrário: aumentar sua tensão, não possibilitando que uma ceda à outra na forma de instrumento. Nesse sentido, penso cada vez mais que, ao invés de afirmar irredutivelmente a performance art como modo de expressão contestadora por si, interessa também negá-la, dada a apropriação de seus significados a partir dos anos 1990, principalmente uma vez que sua possibilidade de criar mundos foi incorporada pela mídia, pela economia e pelo mercado (afinal, falamos de um momento histórico em que bots influenciam eleições presidenciais e que bitcoins movimentam o mercado). Se essa nova forma do capitalismo opera como um parasita, englobando a performance como recurso para manter sua existência, talvez seja preciso se deixar morrer para que algo novo surja. Já em 1928 Walter Benjamin apontava para essa possibilidade, na forma de uma destruição que não tem fim, ou seja, que não cria novos mundos, recusando-se a performar. Uma destruição aformativa, que apenas depõe incansavelmente, destruindo tudo à sua volta sem se preocupar com o que virá no lugar, cujo interesse único reside em criar espaços vazios – como o escrivão que, na recusa em performar seu trabalho, mora e ocupa todo o escritório, lenta e efetivamente. Mas também como o homem que deita nu no museu e deixa que façam o que quiserem com seu corpo.
Assim, no lugar da política zumbi, que exibe sua reconfortante e identificável imagem, podemos pensar o nexo entre arte e política como um lugar de assombro. Afinal, a arte é o único lugar onde se pode ensaiar essa destruição total. O buraco negro. Ou, como propôs Benjamin: a greve.
Renan Marcondes (1991) é artista plástico e trabalha com performance, entre os campos de produção e pesquisa. Atualmente realiza seu doutoramento na USP com pesquisa sobre as relações entre performance, neoliberalismo e presença a partir da crise financeira de 2008.