Ao bater os olhos no envelope transparente sobreposto à imagem de capa do livro Silent City, da artista porto-alegrense Letícia Lampert, sinto como se estivesse recebendo um convite para uma volta pelas ruas de Kaohsiung, em Taiwan, ilha a menos de 200 quilômetros da costa leste da China. Mas o que de início pode parecer um inofensivo passeio turístico se transforma, ao longo de 76 páginas e 39 fotografias, em um trajeto inquietante em meio à realidade ficcional dos anúncios publicitários e políticos que acrescentam camadas de (des)informação às ruas.
Antes de percorrer as páginas impressas e conversar com a própria artista, eu nada sabia de Kaohsiung. Descobri que possui uma população de 2,7 milhões de habitantes, que corresponde a mais de 10% da população total do país insular. Sendo uma metrópole, portanto, não deve ser exatamente quieta. O silêncio da cidade está apenas na capa. No título do livro.
Da primeira à última página, as únicas palavras são “Silent City”. Estão serigrafadas sobre o envelope plástico que envolve a publicação e a transparência do invólucro faz com que o texto preencha justamente o ponto vazio do outdoor que traz uma mulher sorridente. A propaganda publicitária que estampa a página está fixada sobre um prédio comercial em uma rua qualquer de Kaohsiung. O espaço, de portas fechadas, tem motocicletas estacionadas em frente às folhas de ferro baixadas.
Ao folhear o livro – impresso em papel couchê no formato 21×28 cm –, imagino que me movimento pela cidade a pé, mas, por um instante, me ocorre que poderia pegar emprestada umas das motos para seguir mais rápido, ao longo do conjunto de páginas fotográficas coloridas. Turista estrangeira que sou, no entanto, ainda assim sigo sem pressa.
À medida em que avanço pela publicação, que se assemelha a um encarte publicitário, percebo recortes da arquitetura de um grande centro urbano, como tantos outros: edifícios de maior e menor porte disputando o espaço ocupado por carros, bicicletas e muitas motocicletas como a minha, do tipo scooter – essas, sim, um símbolo contemporâneo das populosas cidades asiáticas.
No trajeto recebo sorrisos e mais sorrisos. Sinais de positivo e de coraçãozinho com as mãos. Punhos masculinos em riste. Seios fartos. Corpos magros. Bocas e olhares insinuantes. Do alto das placas, esses retratos vigiam as ruas e jogam seu poder de sedução aos passantes. Não estão apenas estáticos nas alturas, mas também em circulação, estampados nas laterais dos ônibus que vão e vêm pela cidade.
Mas as pessoas com quem me relaciono nas páginas de Silent City são, na verdade, modelos retratados para campanhas publicitárias ou figuras públicas envolvidas na campanha eleitoral para a prefeitura em 2018, ano em que Lampert participou de residência artística no espaço Pier-2 Art Center.
No período em que esteve lá acompanhada de artistas locais e estrangeiros, sem dominar o idioma daquele país, Lampert se viu diante das imagens, porém incapaz de decifrar os textos ao redor dos retratos posados. A informação sobre a presença de homens e mulheres da política local nos outdoors, inclusive, demorou para chegar ao seu conhecimento.
TRADUZIR O ILEGÍVEL
Por mais que os trânsitos internacionais sejam progressivamente mais fáceis e ligeiros, andar por um país sem compreender o idioma oficial pode ser uma experiência perturbadora. Ou libertadora. Tudo depende de como cada pessoa lida com as próprias vulnerabilidades em um ambiente de caracteres ilegíveis.
Fotógrafa que se concentra em questões da arquitetura e do urbanismo, diante da incompreensão dos textos nos outdoors de Kaohsiung, Lampert decidiu reproduzir o estranhamento nas páginas impressas do livro. Para isso, utilizou ferramentas digitais de edição e apagou toda e qualquer palavra escrita de anúncios publicitários e placas informativas. Em destaque na paisagem, restaram retratos embaralhados de modelos e figuras políticas em poses e gestos corriqueiros.
Encerro o passeio por Kaohsiung dobrando uma esquina que não sei qual é ao chegar à última página do livro e penso que o silêncio das imagens é repleto de ruídos à espera de interpretações. O trabalho de Letícia Lampert lança um olhar de desconfiança sobre a aparente tranquilidade de trejeitos e sorrisos, suscitando perguntas a respeito do que está de fato exposto no espaço público. No jogo da sedução das imagens, quem diz o quê?
Selecionado na Convocatória de Fotolivros de 2022, que é parte do Festival ZUM, Silent City permaneceu em suspenso por quatro anos principalmente por conta da pandemia de Covid-19. O fato de enfim ganhar corpo no contexto das eleições brasileiras não é mera coincidência: foi uma resposta da artista à profusão de peças de marketing político e fake news que circulam pela internet a fim de seduzir e persuadir eleitores.
Afinal, seja nas ruas de Taiwan ou nas redes sociais do Brasil, a oferta de um produto ou a promessa de futuro em uma propaganda eleitoral têm a mesma aparência e só um olhar crítico e indagador pode ser capaz de lidar com as artimanhas da imagem.
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Iriz Medeiros participou do Laboratório de Escrita Editorial da seLecT, na plataforma Zait. É jornalista, editora e graduanda em história da arte pela UFRGS
Silent City
Letícia Lampert
76 pgs, R$ 85
www.leticialampert.com
Vídeo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=-ErRfWdhVTA