Conta uma reportagem do século passado, publicada em 14/3/73, que uma galeria de arte de São Paulo começava a promover o “cinema em casa”, comercializando filmes realizados em técnicas totalmente desconhecidas na época. “A ideia é uma adaptação de um mercado que começa a nascer nos Estados Unidos: o do videocassete, uma fita semelhante à de um pequeno gravador, que colocada em um receptor de TV transmite o programa escolhido pelo espectador”, diz a reportagem não assinada da revista Veja.

A galeria em questão era a Multipla, dirigida pela artista Teresa Nazar (Mendoza, 1936 – São Paulo, 2001) e a escritora Edla van Steen (Florianópolis, 1936 – São Paulo, 2018), que um ano depois de introduzir no mercado de arte brasileiro a ideia do múltiplo, criou uma pequena sala de projeção para apresentar, em modo contínuo, filmes de artistas como Carlos Vergara, Rubens Gerchman, Claudio Tozzi, e jovens cineastas como Héctor Babenco e Jorge Bodanzky.
“Estive nos EUA para me atualizar e pude perceber uma tendência geral entre os artistas visuais para trabalhar com a imagem em movimento”, disse Edla van Steen, numa época em que, para se informar e pesquisar novas tendências, era preciso pegar avião. A Sonnabend Gallery, até hoje ativa em Nova York, se preparava naquele momento para lançar os primeiros “cassetes artísticos”, mas o equipamento ainda não havia chegado ao Brasil. Foi em 1977 que Walter Zanini, diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP) , colocou em prática um projeto pioneiro, o Setor de Vídeo, um laboratório de criação e difusão da videoarte, que se fazia então com aparelhos em formato Portapak (modelo AV3400 da Sony, de ½ polegada em preto e branco).

Circulava no Brasil a arte em novas mídias audiovisuais, como slides, filmes em Super-8, 16 mm e obras sonoras, mas apenas em projetos institucionais, como o Expoprojeção 1973, curadoria de Aracy Amaral na GRIFE (Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais), que exibiu uma centena de trabalhos. Enquanto isso, a Multipla abria sua série de edições audiovisuais com “Triunfo Hermético”, filme de 15 minutos do gravurista Rubens Gerchman, cujo título tomou emprestado de um livro de ocultismo medieval. Na sequência, segundo a reportagem, viria ainda a produção experimental de Carlos Vergara, com filmes em Super-8: “Fome”, “Porcos e Faisões”, “Entradas e Bandeiras”, “Domingos da Criação” e “Carnaval”.
“Edla era muito antenada. Ela foi a primeira a fazer isso. Tunga já tinha filmes, vídeos, mas a gente não ousava tentar vender. Fomos começar a fazer isso só nos anos 1990!”, diz a galerista Luisa Strina, procurada por seLecT para comentar os 50 anos da introdução da obra de arte serializada no mercado de arte nacional, pela galeria Multipla, inaugurada em junho de 1972, em São Paulo.

PELÍCULA, ACRÍLICO E CIMENTO
A comercialização de tiragens restritas de filmes e vídeos de fato aconteceria muito tempo depois do aparecimento de espaços para exibição desses novos formatos. Nos anos 1970, o mercado de arte contemporânea no Brasil era fundamentalmente sustentado pela produção de gravuras, e a Multipla foi pioneira em dar ao filme e à escultura produzida em série o mesmo tratamento comercial da gravura.
“Era uma época de muita politização no meio artístico e havia uma força muito grande da gravura no Brasil”, diz Fábio Magalhães, curador, gestor cultural e hoje presidente do Conselho da Fundação Padre Anchieta. “Grassman e Aldemir Martins, gravuristas, foram os primeiros brasileiros a ter destaque na Bienal de Veneza. A multiplicidade era uma ideia restrita à gravura, e Tereza e Edla ampliaram esse conceito. O múltiplo foi o espírito de uma época”, continua Magalhães.
O termo “múltiplo” foi cunhado pela galerista francesa Denise Renée (1913-2012), nos anos 1960, para designar um conjunto de trabalhos cinéticos de Victor Vasarely (1906-1997), que já havia sentenciado que “o mito da obra de arte nunca desaparecerá, e as obras de arte multiplicáveis triunfarão finalmente, graças aos benefícios da máquina”.
O conceito vinha ao encontro dos processos experimentais de jovens artistas que já não operavam só com tintas, matérias e manufaturas tradicionais da arte, mas com aço, acrílico, plásticos, alumínio, luz, fitas magnéticas, imagens técnicas e processos industriais. “Quando o artista visual recorre ao filme, não é necessariamente porque quer fazer cinema”, disse Teresa Nazar à reportagem da revista semanal. “Quer apenas utilizar um novo suporte, como já antes empregou outros materiais: o fiberglass, o acrílico, o cimento.”
“Talvez nos anos 1970, esse tenha sido o mote da época”, endossa a crítica Aracy Amaral à seLecT. “Tomoshigue Kusuno organizou, como curador, uma exposição no MAC USP só com múltiplos. Incluía trabalhos em mail art que vieram do Japão, ou seja, considerando a mail art também como múltiplo”, diz Amaral, autora de um texto para a mostra Luz, Espaço, Tempo”, que Kusuno realizou na Multipla, em setembro de 1974.
Da exposição inaugural da galeria, em 1972, participaram Aloisio Magalhães, Amelia Toledo, Amilcar de Castro, Anna Bella Geiger, Claudio Tozzi, Lothar Charoux, Luiz P. Baravelli, Mario Cravo Neto, Nicolas Vlavianos, Rubens Gerchman e Nelson Leirner, com 50 exemplares da sua célebre Homenagem a Fontana (1967), premiada na Bienal de Tóquio. Vinte e cinco anos depois da primeira coletiva de múltiplos brasileiros, o jornalista Celso Fioravante apontou, em texto na Folha de S. Paulo, que ainda restavam dois últimos exemplares da Homenagem à Fontana, à venda na galeria por preços acessíveis.




DEMOCRÁTICA
Quando a jovem arte contemporânea mal tinha um mercado que a representasse, já que as relações comerciais da arte se davam num protomercado e os interesses se voltavam majoritariamente para os artistas do modernismo e da geração concreta que os sucedeu, a Multipla colocou na cena paulistana um amplo debate sobre a legitimidade da obra de arte serializada, sua relação com os procedimentos industriais e a efetividade de suas intenções “democráticas”.
“O múltiplo não revolucionou a arte, como alguns pareciam imaginar, nem a rigor a democratizou”, colocou o crítico Olívio Tavares de Araujo, na revista Istoé, em junho de 1982. “Mas teve um mérito fundamental e inequívoco. Seu preço baixo tornou possível a convivência em casa com obras tridimensionais que não pertenciam ao universo diário. Com o múltiplo, abriram-se as sensibilidades e os olhos para um tipo de espaço escultórico que, de outra forma, nunca teria extravasado dos museus e das grandes coleções.”
O preço de um múltiplo correspondia, em média, de 10 a 20% do que custaria uma peça única dos mesmos artistas. Para se ter uma ideia, enquanto uma revista semanal custava Cr$ 4, o múltiplo de Claudio Tozzi com parafusos e gravura custava Cr$ 200. Ou seja, 50 revistas semanais.

“Teresa, Nicolas e Edla tinham essa visão de sair da obra única e fazer objetos em série e convidaram artistas que trabalhavam a linguagem da reprodutibilidade. Falava-se muito em Walter Benjamin. A gente tinha a intenção de fazer algo mais democrático”, diz o artista Claudio Tozzi à seLecT. “A galeria tinha um público e vendia muito bem. As obras eram acessíveis. Dependendo da tiragem, podia chegar a 10% do preço de uma obra única. Mas o objeto, ainda que múltiplo, era numerado e assinado, por isso era considerado uma obra única também.”

Tozzi, que na época também experimentava com película de cinema – fez quatro filmes em Super-8: “Grama”, “Seio”, “Fotograma” e “A Morte da Galinha”, que integraram curadoria de Aracy Amaral –, realizou dois múltiplos para a galeria. “Um deles era um objeto com parafusos que reúne um readymade, o parafuso, objeto industrial, e um elemento manual, pessoal, o desenho serigrafado. O outro objeto era uma caixa de acrílico que tinha um pó de gesso dentro. Naquela estrutura rígida, industrial, o espectador podia manipular a peça e criar a própria forma”, conta.
MÚLTIPLAS FORMAS DA GRAVURA
Além de atuar como editoras e produtoras das peças – coisa inédita no mercado –, as diretoras do espaço ainda tinham um projeto curatorial. Foi de Van Steen a ideia de aproximar Marcelo Grassman e o mexicano José Luis Cuevas para uma edição de gravuras em água-forte e água-tinta elaborada a quatro mãos, em 1974. “Foi um casamento perfeito”, comenta Fábio Magalhães sobre o encontro entre os dois artistas, que tinham a morte como tema. “A gravura sempre esteve no projeto da galeria”, diz Magalhães. Os principais expoentes dessa técnica integraram exposições individuais e coletivas. Renina Katz realizou uma individual com obras em xilogravura, gravura em metal, litogravura e serigrafias produzidas entre 1968 e 1974; e Fayga Ostrower, com xilogravuras e serigrafias.

Arte internacional também circulava no bairro paulistano do Brooklin, onde a galeria se instalou, desbravando outra área da cidade. Nos arquivos constam uma coletiva de gravura internacional contemporânea: com 33 artistas da Holanda, Japão, França, Mexico, Itália, EUA, Israel e Alemanha; uma individual de François Morellet, com pinturas, gravuras e múltiplos, em março de 1976, e um intercâmbio com uma galeria de edições, de Zurique e Genéve, com trabalhos de Jean Tinguely, Le Corbusier, Gianfredo Camesi, Jean Baier e Gido Wiederkeh, entre outros.

A lógica industrial da produção em série, aplicada até então exclusivamente à gravura e ao design de utilitários, chegava à escultura. Nos primeiros dez anos de atuação, a galeria de Nazar e Van Steen produziu e comercializou todo tipo de escultura múltipla ou de gravura aplicada a novos materiais: em aço, de Amelia Toledo; em chapas de aço e plástico, de Fernando Lemos; em lâminas de aço inoxidável, de Amilcar de Castro; em vídeo temperado, de Lothar Charoux; serigrafias em acrílico, de Carmen Bardy; serigrafia em alumínio, de Teresa Nazar (Mulher, 1972).
Outros encontros célebres – entre linguagens e artistas – se deram na Multipla, como o lançamento de Poemóbiles, livro-objeto de Julio Plaza e Augusto de Campos, em março de 1975, em tiragem 1.000 exemplares, contendo 13 poemóbiles. O interesse da Multipla em livros refletia a outra atividade profissional da escritora Edla van Steen. Em novembro de 1974 ela lançou na galeria seu segundo livro, Memórias do Medo, ilustrado com gravuras especialmente elaboradas por José Luis Cuevas, expoente do surrealismo mexicano, que ganhou um prêmio na Bienal de São Paulo, em 1959, foi exposto na galeria em 1973 e se tornou grande amigo da escritora.
Livros de artista também tiveram ali seu lugar. Anésia Pacheco Chaves expôs o que chamou de “obra-livro”, quando a alcunha “livro de artista” ainda não era uma certeza. Uma reportagem na Folha Ilustrada em 22/6/75 anunciou: “O insólito e solitário caminho de Anésia”, com texto literário de Lygia Fagundes Telles e um surpreendente depoimento da artista: “Os 25 cadernos que apresentarei na Multipla não estarão à venda. Isto não implica em atitude contra o comércio de arte, porque, apesar de discordar de todo o esquema, penso que uma contestação deveria se colocar em termos muito mais pertinentes do que um gesto individual, principalmente quando nós, artistas, precisamos aceitar muita coisa para poder sobreviver”. No texto, a artista argumenta que o mercado, em vez de funcionar como ponte, obstrui a comunicação do artista com seu público. “Só interessam às galerias, aos leilões e financiamentos bancários as obras consagradíssimas, já digeridas pelo público.”
“Jovens não tinham vez, não tinham galeria”, confirma Luisa Strina. “Eu, nessa época, não tinha galeria. No Rio, tinha a Paulo Bittencourt, que trabalhava com o Cildo (Meireles). Mas em São Paulo fui eu quem comecei com a representação de artistas, um ano depois”, diz Strina, que se prepara para comemorar os 50 anos de atividade de sua galeria, em 2023.


NOVOS ARES
Uma reportagem na Folha da Tarde, em julho de 1972, anotava que São Paulo contava com nova galeria de arte, “nova por ter sido recentemente inaugurada, mas principalmente pelo tipo de arte que expõe”. Além de inaugurar uma nova concepção de arte, a galeria Multipla desbravou uma nova zona da cidade, deslocando-se do centro comercial – os Jardins – para o bairro do Brooklin. Instalada na Av. Morumbi, 7.990 em uma casa reformada pelo arquiteto Ennes Silveira Mello.
A fachada era uma atração. Com uma faixa de vidro na altura dos olhos, despertava curiosidade de quem passava pela rua. “O bairro do Brooklin não era movimentado como os Jardins, mas a galeria ficava ao lado de uma churrascaria e o pessoal que esperava o carro olhava com interesse para essa vitrine fininha, era muito intrigante”, conta Silveira Mello, então marido de Edla. As vernissages lotavam. “Tinham até um caráter político”, conta Ricardo van Steen, filho de Edla, que aos 14 anos era convocado a fazer os embrulhos dos múltiplos nas vendas de Natal. “Geraldo Vandré vinha tocar na varanda, me lembro dele tocando Disparada”, diz Ricardo.


“É um dever cultural registrar a importância histórica da proposta de Teresa Nazar e Edla van Steen dentro da Galeria Múltipla, criando um mercado que desafiava a escassez como qualidade intrinseca”, diz a artista Maria Bonomi à seLecT. “A Arte Multiplicada (na Galeria Multipla) veio a inovar hábitos do colecionismo e desvincular a unicidade como qualidade artística. Portanto, transformando e questionando o status quo da sociedade tradicional e burguesa, habituada a valores conservadores. Detonando a jequeira de um mercado tradicional e míope alheio às tendências mundiais. Digo mais. Na ocasião, as calças jeans exatamente iguais eram o sonho de consumo, pois, pela similitude, nos modernizavam e energizavam simbolicamente. Tereza e Edla, ambas artistas sensíveis e determinadas, sintonizaram com esta tendência e provocaram os artistas a criarem seus originais com a possibilidade de serem seriados e os colecionadores a cada um possuir o seu Vlavianos, seu Fernando Lemos… Bonomi etc. Não era necessária uma fortuna, os preços eram acessíveis e todos poderiam investir! Nazar e Van Steen continuam revolucionárias até hoje! Essas, sim, as grandes marchands!”, diz Bonomi.


UN METALÚRGICO NO ATELIÊ
No final de 1971, o escultor Nicolas Vlavianos (Atenas, 1929 – São Paulo, 2022) foi convidado por Edla van Steen a produzir 50 obras iguais para serem distribuídas como presente de Natal pela empresa Eternit. Vlavianos executou uma peça múltipla em cimento amianto, material que não era proibido na época. O artista grego vivia há dez anos no Brasil, casado com Teresa Nazar. Ambos eram professores na Fundação Armando Álvares Penteado. Seu ateliê ficava no mesmo bairro do Brooklin, nos fundos de sua casa. Sua poética se equilibrava na borda entre a arte e a indústria. Era um artesão do aço inox e de materiais industriais pesados, que transitava pelas figuras orgânicas dos corpos humanos, pássaros, árvores. Foi assim que, ao som das soldas, lixadeiras, serras mecânicas, cortadeiras e furadeiras, nasceu a Múltipla, em junho de 1972.
Myrine Vlavianos, filha dos dois artistas, está criando um instituto para a guarda e difusão de sua obra. Prepara também um documentário e um livro sobre Nicolas Vlavianos, com texto de Veronica Stigger e fotos de Romulo Fialdini, com lançamento previsto para outubro de 2022.

