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Paz (1952-1956), de Candido Portinari, painel que integra a obra Guerra e Paz, feita para a sede das Nações Unidas, em Nova York [Foto: Divulgação]
Postado em 11/06/2014 - 7:13
Pobres herdeiros ricos
As disputas pelo patrimônio, as dificuldades de preservar a obra dos artistas e os méritos de quem sabe dividir o legado com a sociedade

 

Fitas e Mastros, pintura da década de 1960 de Alfredo Volpi, cujo legado é alvo de intensa disputa familiar [Foto: cortesia Almeida & Dale e Instituto Alfredo Volpi]
Ao se falar em herança, a ideia que surge é de fortuna. No caso de o legado ser a obra de um artista, a benesse material dos direitos autorais e da venda de obras nunca vem só: caminha de mãos dadas com uma quantidade inimaginável de complexidades, começando por manter conservado e acessível ao público o universo artístico do parente. Aos vivos fica a escolha de agir como guardiões de um precioso patrimônio criativo ou visar lucro com a exploração nem sempre moderada do espólio. Entre um e outro há nuances e questões que falam sobre o estado da arte e a forma como sua história é (des)tratada no Brasil.

MORTO-VIVO
Para qualquer brasileiro “morrer” juridicamente, é preciso fazer seu inventário. Por isso, Alfredo Volpi segue “vivo”, mesmo tendo morrido em 1988. “O espólio de Volpi não foi encerrado; até hoje o próprio artista recebe os direitos autorais em seu CPF”, explica o advogado Pedro Mastrobuono, diretor-jurídico do instituto que leva o nome do pintor e cuida da catalogação de sua obra. Isso se deve à impossibilidade de se fazer o arrolamento completo dos bens do artista, graças aos delitos atribuídos à primeira inventariante, Eugênia Maria Volpi Pinto. Com a filha do pintor destituída judicialmente, a responsabilidade pelo inventário fica a cargo do advogado Guilherme Sant’Anna.

Um grupo de 47 obras que Volpi “não vendia e não emprestava” deixou de ser listado por Eugênia no inventário e sua localização é quase toda desconhecida. Nove delas foram retomadas por meio de mandados de busca e apreensão, entre as quais dois destaques dos anos 1940, Nu de Judite e Retrato de Hilde Weber, estimados em cerca de R$ 5 milhões cada um. Para recuperar as telas de cupins e avarias, o Instituto Alfredo Volpi as cedeu em comodato para o MAC-USP Nova Sede, onde o conjunto está exposto. “Além de cobrar valores abusivos pelo uso de imagens do Volpi, a senhora Eugênia havia recolhido direitos autorais sem repassá-los para o espólio. Foi estimado que cerca de R$ 1,3 milhão deixou de ser repassado”, diz Mastrobuono. A perda monetária da outra filha, Djanira Maria da Conceição Volpi, que vive de forma simples, foi alta. “Eu não a considero minha irmã”, declara Djanira.

Com a criação do Instituto, em 2011, fazer uma exposição do pintor ficou mais fácil: o valor para uso de imagens de divulgação foi estipulado legalmente em R$ 600 cada, média do mercado. Assim que acabar a pesquisa sobre Volpi, a instituição planeja a catalogação, já autorizada pelas famílias, de modernistas como Aldo Bonadei e Flávio de Carvalho.

“A catalogação e a certificação de autenticidade dão segurança ao comprador”, diz Carlos Dale, galerista do mercado secundário que sediou até maio uma mostra de 85 pinturas de Alfredo Volpi, pelas quais pagou R$ 50 mil para uso de imagem. “É um valor justo. Antes, podia passar de R$ 3 mil em uma única foto”, reitera Dale. Para a curadora Denise Mattar, que já esteve à frente de instituições como os Museus de Arte Moderna do Rio e de São Paulo, a questão dos direitos autorais vai além. “Acho justo pagá-los, mas estamos à mercê dos seus detentores. Daqui a pouco, grandes coletivas não serão mais realizadas pela dificuldade de se obterem autorizações. Sem falar dos fotógrafos das obras, que às vezes querem receber de novo por um trabalho já pago”, diz. Para ela, a solução é reformar a lei, que prevê que os familiares detenham os direitos até 70 anos depois da morte do artista. “São praticamente três gerações. Vinte anos são suficientes, senão o número de herdeiros cresce exponencialmente e fica difícil negociar.”

Exigências bizantinas para a cessão competem com a cobrança extorsiva para a autorização de uso de obras em exposições, caso de Lygia Clark na 29ª Bienal de São Paulo (2010). À época, o curador Agnaldo Farias alegou que a inclusão da obra Caminhando foi inviabilizada pela cobrança de R$ 45 mil em direitos, pela determinação do uso de bobinas de papel vindas do Rio de Janeiro para uma mostra montada em São Paulo, e pela proibição de certos críticos escreverem no catálogo. Ao ser perguntado sobre o caso, Alvaro Clark, filho da artista e diretor da Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark, classificou a Bienal como uma “instituição pusilânime, mentirosa, que por falta de recursos inventou uma desculpa de cobrança extraordinária por parte da associação para fazer efeito perante uma imprensa sensacionalista, parecida com sua estirpe”, escreveu por e-mail à repórter da seLecT.

Um dos painéis de Guerra e Paz, de Candido Portinari, feitos entre 1952 e 56 para a sede das Nações Unidas, em Nova York, e em exibição no Grand Palais de Paris, até 9 de junho [Foto: Cortesia Projeto Portinari]
CATALOGUE RAISONNÉ
Além da conservação de espólios em espaços para o público, como o Museu Lasar Segall, a Fundação Iberê Camargo e o Instituto Tomie Ohtake, nos últimos 30 anos, tornou-se comum no País a catalogação da obra de artistas falecidos por meio de projetos criados com essa finalidade específica. No exterior, o modelo é regra, valendo para nomes como Matisse, Modigliani e Picasso, entre tantos outros. Quem saiu na frente no Brasil foi João Candido Portinari, fundador e diretor há 35 anos do Projeto Portinari.

“Percebi que o MoMA-NY tinha muito mais informação sobre meu pai do que todos os museus brasileiros”, diz ele. Hoje, a empreitada tornou-se exemplo internacional com mais de 5 mil obras arroladas, certificado de autenticidade expedido pela Casa da Moeda e um site que exibe as obras em uma linha cronológica. A cobrança de direitos autorais é analisada pela finalidade e, em caso de uso educacional ou para catálogos, nem acontece.

Por seu altruísmo, o projeto depende de financiamento externo. “Seguimos à mercê de imprevistos financeiros. Agora mesmo vivemos uma ameaça muito grande, pois uma empresa que nos patrocinou nos últimos dois anos não poderá continuar. Estamos descobertos, o que nos faz voltar a buscar recursos desesperadamente. Não temos ainda autossustentação”, diz João Candido.

Assim, vender obras da coleção deixada por Candido Portinari ao filho único tornou-se um meio de sobrevivência. “Sempre que a situação fica insustentável, sou obrigado a dilapidar o patrimônio da família”, diz o herdeiro, que estuda a inscrição do Projeto como Organização Social (OS) – figura jurídica que, ao contrário da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), recebe recursos públicos para se custear.

No que depender do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), projetos como esse continuarão sem uma categoria própria de financiamento. “As instituições que se criam para levantar o legado de um artista podem contar com a lei de incentivo à cultura. Não há que falar em compensação financeira para cada ato cultural que um particular venha praticar. Os mecanismos que o governo oferece, complementados por leis estaduais e municipais, abrem muitas possibilidades de amparo e estímulo”, disse Angelo Oswaldo, presidente do Ibram à seLecT.

À cultura resta competir com o esporte na busca pelo incentivo com renúncia fiscal. O decreto que regulamenta o Estatuto dos Museus dá poderes para o órgão do MinC declarar qualquer obra como de interesse público, mas não cria formas de apoio a iniciativas que preservam esse bem.

Outro na mesma situação é o Projeto Leonilson, que Ana Lenice Dias Fonseca da Silva, irmã do artista falecido no início dos anos 1990, toca paralelamente ao trabalho como psicóloga. “Infelizmente, não contamos com apoio governamental. Prefiro vender uma obra para custear o projeto a ficar articulando. Recebo vários representantes públicos que prometem mundos e fundos e nunca mais voltam. Converso com alguém e logo ele muda de cargo ou termina o mandato, fica tudo pela metade”, diz a herdeira.

Sem título (1986), de Leonilson [Foto: Romulo Fialdini / cortesia Projeto Leonilson]
ACONSELHAMENTO PROFISSIONAL
Quando se viu tendo de lidar com a obra de José Leonilson Bezerra Dias, Ana Lenice diz ter levado “um susto muito grande”. “Sou psicóloga, tenho uma irmã decoradora, a outra é pedagoga, meu irmão é administrador, ou seja, nosso relacionamento com o meio artístico era zero”, diz ela. Segundo a crítica Lisette Lagnado, chamada pela família para ajudar a fundar o projeto, o início foi inspirado no exemplo de Hélio Oiticica. “Eu tinha na cabeça o mito do Projeto HO. Conversei com Lygia Pape (que, a pedido de Hélio, deveria cuidar da obra do artista) e chamei Marcelo Araújo, que trouxe sua experiência no Museu Lasar Segall”, conta Lagnado.

A orientação das famílias por parte de pessoas especializadas é fundamental para a conservação e valorização monetária e conceitual da obra. Quando não quer se envolver diretamente, é comum o herdeiro transferir a custódia para uma galeria, caso de Geraldo de Barros (Luciana Brito Galeria), Hélio Oiticica (Galeria Nara Roesler) e Sergio Camargo (Galeria Raquel Arnaud). Foi a gestão de Arnaud que impediu a reforja não autorizada de uma escultura de Camargo por um dos donos da Galeria Transversal, João Grinspum Ferraz, em 2012. “O processo ainda não foi arquivado porque não há comprovação de que as obras foram destruídas”, conta Arnaud.

Além de cuidar da venda das obras de Camargo, a galerista fundou o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), com o intuito de mapear e difundir as obras de Sergio Camargo, Wyllis de Castro e Amílcar de Castro. Incluída inicialmente na lista, a obra de Mira Schendel acabou saindo da instituição porque “a filha da artista (Ada Schendel) começou a ficar enciumada”. “Mas vai sentir falta da catalogação no futuro”, adverte a marchande.

Mas, afinal, é bom constatar que o ciúme é um sentimento que passa longe de herdeiros dos projetos mais reconhecidos, como Portinari e Leonilson. João Candido nem gosta de ser chamado de herdeiro. “Sou só um cidadão brasileiro que está fazendo seu trabalho da melhor maneira possível. Antes de me dedicar à obra de Portinari, sempre fui uma pessoa de trabalho”, diz. O que fica evidente por sua simpatia e pelo sucesso da iniciativa que dirige. Neste caso, afortunadas são a memória de seu pai e a história da arte brasileira. Alguns espólios devem morrer de inveja.

*Reportagem publicada originalmente na edição #18

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